Dois Pintores de Criação ainda conjuravam água para parar o incêndio e ventos para lançar a fumaça para longe através das janelas. Enquanto isso meus professores carregavam Ronan e começavam a colocar bandagens nele. Sua pele estava empolada, marcada por manchas vermelhas e roxas, e algumas picadas tinham se transformado em bolhas horrendas de pus. A sorte é que já havia poções contra o veneno dos escorpiões pega-luz
Ao mesmo tempo, dois médicos da escola aplicavam pomadas em minhas pernas, enrolavam meu pé ferido pelo martelo. Depois que todos nos cercaram e os professores começaram a perguntar o que houve, comecei a chorar. Se eu falasse minhas intenções, ainda que não tivesse conseguido achar algo para curar a Kin, talvez me prendessem. Isso me fez perder o ar, somada a raiva de ter sido usada por Ronan.
— Elsa, por favor, precisamos saber o que houve! – Nem a voz gentil do professor Sh-Rorin me acalmava. Nunca mais conseguiria confiar em alguém.
— O que estava fazendo na Zona Proibida da Biblioteca? – gritou a diretora, que já me deu alguns esporros ano passado, mas parecia estar mais assustada do que zangada. Quando levantei a cabeça, até a Kyara apareceu, perguntando o que houve. Nossos colegas e curiosos se amontoavam na porta da biblioteca, quase derrubando os professores e a bibliotecária.
— Elsa, por favor, não chore! Pode confiar em nós! – disse Sh-Rorin, e meu choro só piorou.
— Não… eu não confio! Quando confiei, ele me enganou! Eu… eu só queria…
— Eu manipulei a Elsa para entrar na Zona Proibida!
A voz rouca de Ronan se sobrepujou aos meus soluços. Estava sentado e os médicos corriam para cobrir sua pele com ervas. Até seu braço bizarro estava queimado, com escamas caindo, deixando todos confusos se cobriam ou não aquilo de remédios. Ele tossiu algumas vezes antes de continuar:
— Dei a ela uma poção de pesadelo após ela acudir a Kin quando passou mal. Os pesadelos foram para que ela sentisse mais medo de perder sua amiga. Aproveitei que ela procurava um livro para a Kin… – Ele tossiu mais antes de continuar, falando baixo: — Aí eu obriguei ela a desativar as armadilhas da sala. Precisava de alguém pequenino para isso. Disse que mataria a Kin se ela não fizesse o que eu mandasse…
— Seu desgraçado! Como você pôde ameaçar a Elsa e minha irmãzinha? – ouvi a Kyara gritar, e quase que os alunos a ajudaram a atropelar os professores para esmurrá-lo.
— Monstro! – gritou a diretora, que o estapeou. Os médicos nem fizeram questão de impedir, afastando-se. — Como pôde fazer isso com uma criança? Sua própria aluna?
— Você envergonha nosso mundo! – exclamou outro professor. — Envergonha as dádivas dos deuses! E a menina ainda veio nos pedir socorro para salvar você!
— Ativei uma armadilha por acidente – disse Ronan, cuspindo sangue. Ele me olhou com seriedade, talvez culpa ou outra coisa que corria em seus olhos sobre mim. Nunca saberei. — Ainda tentei matá-la, mas Elsa voltou e me salvou… ela não tem culpa de nada.
— E o que queria lá dentro? Esse braço maligno? – berrou a diretora. — Ali só há maldições e coisas horríveis! Já chega! Dane-se que a Ordem queira preservar a história do nosso mundo. Professores, parem de conjurar água! Que essa desgraça queime de uma vez por todas!
Solucei um pouco mais e recuei dos professores, com medo de saberem a verdade, de que eu quis aquele poder perigoso tanto quanto Ronan.
— Elsa, está tudo bem! Não vamos te ferir! Está segura agora!
— Ele disse que eu podia confiar nele! – falei entre os soluços. — Eu não quero mais confiar em ninguém!
Não sei por quanto tempo a confusão durou. Só lembro de horas depois tentar pular nos braços da minha mãe quando ela foi trazida às presas para a escola, mas minhas pernas não tinham mais forças. Ela e a Kyara ficaram comigo na enfermaria enquanto os médicos cuidavam de mim. Depois, me ofereceram uma poção para dormir. Minha mãe até cheirou e analisou sua cor para me dar certeza de que não seria enganada de novo. Aceitei a poção de bom grado porque eu realmente precisava dormir.
Ronan me salvou. Talvez para ficarmos quites… não sei ao certo. Eu só queria dormir e acordar daquele pesadelo; e quando a poção começou a me deixar tonta, ouvi que a Kyara tinha conseguido socar Ronan e que todas as aulas foram canceladas naquela tarde. Tombei no colo da mamãe e senti mais uma lágrima escapando.
Kin, me perdoe. Não conseguirei te salvar.
***
Sonhei com a Kin. Estávamos no bosque da escola sob o sol da tarde. Ela parecia ótima, pintando os peixinhos do lago, rindo e se divertindo. Acho que eu sabia que era sonho porque lhe perguntei:
— Você melhorou? Achei que estava no hospital.
Kin estava de costas para mim e demorou a me responder. Seus pincéis também pararam de deslizar sobre o papel.
— Elsa, vou ter que fazer uma viagem, mas vai ficar tudo bem. Eu só vim te agradecer pela ajuda e te fazer um pedido.
Quando Kin se virou para mim, não usava o uniforme da Ordem. Ela estava vestida de branco e seus braços ainda tinham bandagens. Algumas tinham pequenas folhas medicinais.
— Viagem? Para onde?
— Vou realizar meu sonho um pouco mais cedo! Por isso, preciso que cuide da minha irmã. Ela vai ficar triste enquanto eu estiver fora. E por favor, não brigue com meus pais.
Hesitei antes de responder.
— Mas é para onde? É para outro hospital? Não posso ir junto? Você não tinha outras coisas que queria fazer, como passar de ano com as notas mais altas…
Kin sorriu para mim e fez um não com a cabeça.
— Vou ficar bem e ainda terei que cuidar de algumas novas criaturas. Deixei algumas desenhadas para você ver. Então, só peço que não se esqueça de mim. Não se esqueça que eu desenhei até meu último minuto. E se disserem que fui irresponsável, não se importe com isso. Você sabe mais do que qualquer um o quanto eu amo desenhar! E, para onde vou, poderei fazer isso todos os dias, sem dor ou medo! Nunca mais viverei em guerra com meu corpo! Se cuida, está bem?
— Mas… eu não entendo!
— Não precisa entender! Só não seja tão rabugenta. Onde estarei, vou ficar de olho em você! Ouviu, mocinha?
Senti meu rosto esquentar e um nó na garganta. Ela ainda sorria docemente, mas porque aquilo me entristecia?
De repente, os peixes que ela desenhou brilharam e saltaram das páginas. Eles começaram a voar como pássaros, como se tudo em volta fosse um grande e límpido oceano. A noite caia e pequenas estrelas pontilhavam o céu, que estava transformando-se do roxo ao azul escuro.
Kin já tinha desaparecido dali, mas, não sei como, ela ainda parecia estar presente.
O próximo é último capítulo de O pintor de Estrelas!
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