Foi minha mãe que me acordou. Ela não sorria, mas me abraçou apertado. Meu pai também saiu mais cedo da loja de ervas e nos esperou na porta de casa. Disse que iríamos ao hospital ver a Kin.
Algo em mim já me dizia que ela tinha morrido, e isso me calou a viagem inteira. Perguntei-me se deveria ter ficado mais tempo ao seu lado, ao invés de perder meu tempo tentando ajudá-la ou concentrada em outras coisas…
O céu estava aos poucos sendo tomado pela claridade. Nós, Pintores, nos guiamos muito pelas estrelas. O meu nome veio de uma constelação chamada “Elsa Brilhante”. Diz uma lenda que uma menina chamada Elsa começou a pintar todos os dias para repovoar uma floresta que foi incendiada nos tempos de guerra. Ela pintou tanto que ela se transformou em tinta. A constelação tem sete estrelas e é uma das mais bonitas do Véu Cintilante.
Na carruagem com meus pais em silêncio, busquei no céu a constelação. Porém, quando achei que tinha encontrado, percebi que ela estava com um ponto brilhoso novo, de cor amarelada.
— Pai, a constelação Elsa não tinha sete estrelas? Tem um ponto amarelo no meio!
Meu pai tirou os olhos do cavalo e olhou na direção que apontei. Ele arregalou os olhos. Mamãe também esfregou os seus, para ter certeza de que o que via não era loucura.
— Acho que é… bem, não importa agora! Depois pesquisamos… — desconversou o meu pai.
***
Eu esperava a notícia de que minha melhor amiga havia falecido. Encontrei seus pais chorando na entrada do hospital e tive certeza disso. Mas havia alguma confusão, porque muitas pessoas estavam correndo para lá e para cá, carregando panos e vidros de remédios. Alguém passou atrás de mim com uma maca.
— Viemos assim que soubemos – disse meu pai primeiro. — Eu posso levar a Elsa para o quarto da Kin?
A mãe dela fungou em um lenço e me olhou nos olhos. Para minha surpresa, ela sorriu:
— Elsa, obrigada por tudo! Mas quando chegar lá, cuidado para não cair. A Kyara está lá ajudando os médicos a consertar as paredes.
O que estava acontecendo? Será que a Kin estava viva?
Antes que eu perguntasse, meu pai e minha mãe tomaram minhas mãos e subimos as escadas. Nos corredores seguintes vimos mais pessoas correndo. Uma delas passou por mim com alguns tijolos nas mãos. Também havia um cheiro novo no ar, como um perfume. Era cítrico e forte, mas causava uma estranha paz. Foi quando eu vi o que houve.
— Oh, Elsa! Você veio!
Kayra soltou seu grandíssimo pincel ainda brilhando com a Seiva Escarlate e correu para me abraçar. Senti ela chorar no meu ombro e quase minhas próprias lágrimas me impediram de ver o rombo no corredor.
As paredes e tijolos estavam brilhando em dourado, como se fosse uma névoa. Do quarto da Kin só restou parte do chão e pedaços do estrabo da cama de hospital. Podíamos ver o sol entre as montanhas ao longe.
— Os Deuses do Véu Cintilante desceram ao hospital hoje por volta das quatro da manhã – começou a dizer meu pai. — Eles escolheram Kin para ser o novo Pintor de Estrelas! Seu poder foi tão intenso que desapareceu com seu quarto e parte da sacada do hospital!
— Ninguém se feriu, mas todos que estavam doentes melhoraram hoje – ouvi minha mãe dizer. Não aguentei mais resistir. Abracei Kyara e chorei com ela. — Recebemos um pombo-correio da Kyara e decidimos que era melhor você mesma ver. Filha, eu sinto muito, mas agora… agora a Kin está bem!
Não consegui ouvir bem o que disseram depois por causa dos meus soluços. A última coisa de que me lembro desse dia foi a Kyara dizer que Kin me deixou de presente um novo mundo. Um planeta nasceu sob a luz de uma das estrelas, ou melhor, de um dos sóis da Constelação Elsa. O primeiro planeta que ela pintou.
Kin não tinha ido embora porque ela estava viva entre as estrelas.
***
Meu nome é Elsa Sândalo. Sou filha de fazendeiros dos povoados do Sul, fornecedores de ervas medicinais. Hoje, faz dez anos que minha melhor amiga, Kin, se tornou a nova Pintora de Estrelas, algo próximo de um deus, e responsável por criar estrelas, planetas e suas formas de vida. Em sua memória, todas as suas aquarelas foram compartilhadas com o mundo em um livro lindo editado por sua família. Todos que a conheceram, mesmo depois de dez anos, estão voltando a desenhá-la e homenageá-la no aniversário de sua partida.
Amanhã começa meu primeiro dia como Guerreira-de-Tinta. Eu e minha turma iremos nos transportar para o planeta Terra, para restaurarmos a fauna e flora destruída por uma guerra que, infelizmente, foi causada pelos próprios terrestres. Eles não podem ver nossa raça e acho que é melhor que seja assim. Os deuses pediram que nós cuidássemos apenas da natureza por enquanto, e não temos permissão de interferir no curso da vida da Terra.
Kin criou até agora dois planetas novos e seis estrelas. E no norte, dois meteoros caíram, fornecendo mais matéria-prima para produzirmos a Seiva Escarlate. Ainda não temos como ir até lá, mas sabemos por alguns estudiosos que vai levar alguns séculos para que as chamas do planeta em nascimento se acalmem para dar à luz aos oceanos. Será a partir deles que nascerá toda a nova vida.
Enquanto isso irei proteger o mundo que Kin tanto amou, assim como as pessoas que ela sempre quis ver sorrindo. Estou voltando a confiar nas pessoas, mas ainda não aprendi a ser tão flexível como a água, algo que Kin sempre gostava de pintar. Acho que estou menos rabugenta, aprendendo aos poucos a levar a vida com a mesma leveza que ela sempre demonstrou.
Ser uma Guerreira-de-tinta é uma grande responsabilidade e às vezes me assusto um pouco. É graças ao apoio de meus pais, amigos e os conselhos de veterana de Kyara que me mantenho firme em meu objetivo.
Ainda gosto de estudar insetos como passatempo e me aventurar em florestas atrás de novas descobertas. O mundo e as pessoas estão mudando aos poucos, mas algumas coisas nunca irão mudar. Uma delas é o quanto gostávamos da Kin.
Que você esteja em paz e sem dor, minha amiga, onde quer que esteja.
Fim
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