A luz do ataque acorda Aglia assustada, ela se senta em sua cama afastando mechas de cabelo dos olhos, ela percebe o olhar curioso e preocupado de sua irmã Lilla na cama ao lado. Os olhos azuis, claros como o gelo, a encaravam por baixo dos cabelos castanho-dourados ainda desarrumados.
— Mesmo sonho? — Questiona retomando a ação de calçar suas botas marrom-avermelhadas sobre as calças verde-musgo..
— Sempre. — Suspira, os olhos violetas, profundos como o canto das sereias, fitando as cobertas.
— Está tudo bem?
Rox surge a porta do quarto, a pele pálida de seu rosto fino e delicado contrastava com cabelos ondulados e negros como obsidiana, onde uma trança inacabada se destacava, o sobretudo negro estava desalinhado, como se vestido às pressas.
Aglia fita os olhos dourados do irmão, pequenos resquícios de âmbar ainda teimavam em aparecer.
— Tem certeza de que não é alguma visão? — Ele alinha o sobretudo negro, conjurando chamas nas mangas e bainha da vestimenta.
— Sonhar por tanto tempo com a mesma visão? Não, é muito improvável. — Aglia dirige-se a cômoda ornamentada, entre as camas pegando sua usual camisa e calças verdes, diferenciados apenas pelos tons distintos.
— Além disso, já transferi esse sonho para a bola de cristal algumas vezes e mesmo assim continuo a ser atormentada por ele. Parece ser realmente apenas um sonho. Os únicos detalhes que sei são do pouco que consigo distinguir ou que apenas saiba, como em qualquer sonho. — Complementa acariciando as roupas em sua mão.
— O que me incomoda é que você tenha esse sonho com uma certa frequência, em especial durante o festival de Gaia. — Manifesta Lilla finalizando o trançado na franja. — Se fosse eu a ter esses sonhos poderíamos dizer que são lembranças de alguém, mas você nunca demonstrou essa habilidade.
— Ainda assim não podemos descartar completamente essa possibilidade. — Enuncia Rox ao completar sua trança com um adereço dourado.
— Eu não sei... há algo estranho sobre isso, essa noite sonhei com o ataque diversas vezes. — Aglia suspira. — Estes sonhos estão cada vez mais frequentes e reais.
— Essa foi uma noite estranha para mim também. — Ambas encaram Rox curiosas. — Tive um sonho em que nuvens negras se agrupavam rapidamente transformando o dia em noite.
— Meninos, o café está pronto! — Chama uma voz feminina da cozinha no andar abaixo.
— Vou deixá-las terminarem de se vestir. — A porta do quarto fecha atrás de Rox.
— Deveria falar com nossa mãe sobre essa noite, também podemos pesquisar um pouco na biblioteca depois de voltarmos do festival. — Continua Lilla ao vestir o casaco de meia manga roxo mesclado ao azul das barras, onde arabescos dourados adornavam a peça.
— Ela provavelmente vai responder o mesmo de sempre, que é um pesadelo comum, que são imagens criadas pela minha mente por causa da morte dos nossos pais no ataque. — Aglia suspira pesadamente enquanto laça sua bota marrom depois de trocado seu pijama.
— E você acha que não são. — Replica começando três pequenas tranças de cada lado nos cabelos de Aglia, degrade entre vermelho sangue na raiz e branco em suas pontas.
— Não dessa forma, concordo que deva ser relacionado a perda de nossos pais, mas não sinto como se fosse mera imaginação.
— Nossos sonhos podem nos enganar, deveria saber disso irmã. Essas guerras têm afetado a todos nós, é normal ter pesadelos assim. — Lilla sorri ternamente.
Ela une as tranças menores em uma última trança atrás da cabeça de Aglia.
— Obrigada Li. — Ambas se abraçam.
— Por mais quanto tempo vão se arrumar? — Grita Rox da escadaria.
— Fica quieto Rox! É você quem leva uma vida para escolher uma roupa! — Lilla grita em resposta deixando o quarto enquanto Aglia ria das implicações de seus irmãos gêmeos.
Aglia veste seu casaco marrom-claro, conjura pequenas flores nos galhos que o adornam e segue à cozinha, caminhando lentamente pelo deck deslizando sua mão pela proteção feita de galhos massivos.
Pensamentos corriam por sua mente, mas nada parecia segurar por mais de alguns milésimos de segundo. Mesmo tentando se concentrar sua mente corria para todos os lados.
Aglia esfregou os olhos antes de descer a escada ornamentada que se estendia ao centro da sala. Estava cansada, tanto física quanto mentalmente. Não suportava mais ser atormentada pelo mesmo sonho, ter seu passado escondido de si. Tudo que desejava era descobrir a verdade.
Lilla e Rox ajudavam animados Delfin, a guardiã dos irmãos, a terminar de preparar a mesa, ambos discutiam sobre o festival de Gaia, Lilla comentava sobre as músicas ao passo que Rox falava como sentia que a própria Gaia parecia estar presente durante o festival, comemorando junto dos magos, assim como os outros deuses.
— Bom dia.
— Bom dia. — Responde Delfin, os cabelos, azul-acinzentados, assim como os golfinhos que lhe dão nome, presos por um meio rabo de cavalo deixando sua franja cair sobre o olho esquerdo.
A cor de seus cabelos e de seus olhos, azuis como safiras, deixavam claro que a maga era uma ninfa da água, mestiça entre um tritão e uma maga.
— É muito divertido fazer aniversário no dia de Gaia, — Lilla espalhava os braços pela cozinha, forçando os outros a desviarem. — é como se a cidade toda estivesse comemorando nosso aniversário.
— A melhor parte são os fogos que encerram o festival.
— Você adora fogo não é Rox?
— O que posso dizer? É uma tendência genética. — Responde com um largo sorriso e uma piscadela.
— O senhor do fogo e das trevas. — Lilla faz uma reverência.
— Prefiro apenas do fogo. — Ele desvia o olhar para o chão.
Lilla hesita por um segundo. — Desculpa. — Diz Lilla sentando-se sem olhar para o irmão.
Aglia senta-se a mesa em silêncio ainda pensando sobre o significado de pesadelos tão frequentes e porque apenas ela tinha algum tipo de pesadelo sobre o ataque que matara seus pais.
Lilla possuía uma memória excepcional, devido ao seu dom da retrocognição, a capacidade de ler o passado, mesmo assim ela não se lembrava de nada de antes ou durante o ataque, e mesmo Rox que sempre fora sensível a dor alheia e com o dom da premonição, a leitura do presente, era ignorante quanto ao ocorrido.
Aglia apenas brincava com uma fatia de broa enquanto Rox e Lilla, jogada sobre a mesa, retornaram a discutir sobre o festival e quais seriam os planos do dia, que certamente incluíam os bolinhos de amora de Cassady, uma antiga amiga de escola dos trigêmeos.
— O que foi Aglia? Mal tocou na comida. — Questiona Delfin percebendo a falta de interesse da maga.
— Só estou um pouco cansada, não é nada.
— Ela sonhou a noite toda com o ataque. — Comenta Lilla corrigindo sua postura.
— Aglia, você sabe que não deveria se preocupar tanto com coisas que estão no passado. — Diz Delfin num tom mesclado entre a melancolia e o cansaço.
— Eu sei! — Grita Aglia se levantando, os outros a olham assustados. — Já me disse isso milhares de vezes! — Os olhos mais escuros. — Porque não conta a verdade! — Ela bate as mãos na mesa. — Quem eram nossos pais? Você nunca fala nada sobre eles!
— Aglia...
— O que há de tão importante que não possa nos contar? — Interrompe.
Delfin se levanta.
— Aglia, seus pais eram cavaleiros reais, eles morrem protegendo a cidade, será que não pode entender isso? — Lagrimas rolavam pelo rosto de Aglia. — Eles me pediram para cuidar de vocês três, e foi o que fiz, vocês são meus filhos também. — Como a água de um pequeno rio, as palavras de Delfin eram límpidas e calmas.
Aglia se deixa cair na cadeira enquanto limpa as lágrimas de seu rosto.
— Desculpe Delfin, eu não sei o que... Me desculpe.
— Está tudo bem, não há do que se desculpar. Eu entendo sua frustação, é natural. — Delfin acaricia os cabelos de Aglia.
Lilla e Rox observavam Aglia estupefatos pelo comportamento incomum da irmã, mas logo ela se acalma ambos voltam a planejar as atividades que fariam nos dois dias de festival de Gaia. Rox vez ou outra a espreitava preocupado.
Tendo desabafado suas frustrações Aglia pôde juntar-se à conversa e aproveitar um pouco do café da manhã. Delfin comia em silêncio observando os garotos, refletindo, no entanto os trigêmeos estavam tão absortos em sua discussão que mal perceberam a ninfa.
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