Não era a primeira prova a que assistia: quando Aleksey e Morena se graduaram como Alquimistas, dois anos antes, ele havia aturado quase seis horas enquanto os cinco alunos aspirantes ao título atravessavam um labirinto absurdo e desnecessário, sendo obrigados a usar cada um dos cinco elementos para resolver problemas de lógica. Fora ainda pior do que o presente. As provas normalmente aconteciam no meio do ano, no auge do inverno, na semana que era mais noite do que dia. O frio já era o início dos testes: uma Entropia que não consegue se manter aquecida sem o auxílio de roupas não merece o título de Alquimista, quiçá o de Alquimista Extraordinária. Se os alunos e professores que decidiam assistir à prova não conseguiam se esquentar sozinhos, o problema era inteiramente deles. Ivan sempre detestara a ideia, mas quase morrer congelado para assistir a uma provinha não era nada comparado ao que ele poderia fazer por quem amava.
Nada disso o impediu de agradecer a todas as santas e acender velas dedicadas a todos os seus ancestrais quando Morena lhe contou que, dessa vez, haveria uma prova extra durante a primavera, perto do encerramento do ano letivo. Isso resolveria vários problemas de uma vez: Morena e Aleksey se graduariam quase um ano antes do tempo certo, ele não seria obrigado a passar tanto frio, e daria motivos para os outros nobres os respeitarem. Perfeito.
Agora, já não parecia uma ideia tão boa. Ivan sentia a ponta dos seus dedos formigando e, pela primeira vez, estava tão ansioso quanto as pessoas que enchiam as arquibancadas, tão curioso quanto elas para saber o que aconteceria na prova. Os minutos pareciam se arrastar e a ansiedade se acumulava em sua garganta, os milhares de cenários que havia imaginado com Aleksey se misturando em sua cabeça.
Era sempre um mistério o que os professores inventariam como teste. A prova de graduação de Alquimista Extraordinária nunca se repetia, mas sempre acontecia no mesmo anfiteatro: era uma construção quase tão antiga quanto o kremlin que abrigava a Azote, a escola das Alquimistas, com uma arena circular enorme que podia ser transformada em qualquer extravagância que quisessem. As arquibancadas se estendiam pela parte leste da arena e Ivan colocou seus óculos, franzindo a testa no esforço de tentar distinguir algo na névoa que escondia o espaço à frente. Voltou o olhar para a base da arquibancada, onde as quatro Entropias que tentariam o título se aglomeravam. Aleksey, o único que estava sentado. Ivan observou enquanto o rapaz passava uma mão na coxa esquerda, num gesto quase automático, e sentiu seu coração se apertar.
Será que tinha feito os cálculos corretamente? Se tivesse costurado um ponto fora do lugar, Aleksey podia não aguentar sequer começar a prova.
Levou um susto quando Tamara sentou-se ao seu lado sem aviso, se jogando na arquibancada. Sua cunhada acenou para os amigos que estavam sentados mais acima nos assentos e esfregou as mãos uma na outra, assoprando para esquentá-las, enquanto esticava suas pernas compridas o máximo que podia no espaço estreito entre os bancos.
— Sabe o que seria ótimo? — falou ela, sem nem se dar ao trabalho de cumprimentar Ivan. — Se a prova deles fosse manter todos nós aquecidos enquanto assistimos.
— Você acha que eles iriam gastar a preciosa energia que poderiam utilizar para convocar tempestades com algo tão mundano? — respondeu ele em tom sarcástico. Tirou um par de luvas do bolso e entregou a Tamara. — Aqui, trouxe para você. Costurei um feitiço térmico nelas.
— Eu já te disse que você é meu cunhado favorito?! — Tamara exclamou enquanto vestia as luvas.
— Eu sou seu único cunhado, lisitsa — respondeu, com um desenho de sorriso no rosto.
— Não se apegue aos detalhes, Vanya. — Tamara deu de ombros, apoiando os cotovelos no joelho e se inclinando para a frente. — O que você acha que vai ter dessa vez? A do meio do ano foi completamente bizarra, eu não sei como ninguém nunca morreu num negócio desses.
Ivan se sentiu enjoado e olhou para a arena novamente, apreensivo. Ele nunca havia pensado que alguém poderia morrer antes, mas agora parecia extremamente plausível e cada vez mais provável.
— Você já veio assistir a alguma aula deles? — Ivan voltou os olhos para a arena, mexendo em sua aliança, tentando distrair seus pensamentos. — As provas não são tão diferentes assim, e em geral testam a resistência ou a habilidade. Como eles trabalham com magia bruta, as duas coisas são importantíssimas e os professores tentam levar todos ao mais próximo do limite para ver até onde os alunos conseguem ir sem perder o controle.
— Parece muito esperto colocar a escola quase toda para assistir algo que tenta levar a especialização mais volátil ao limite — zombou Tamara, esfregando as mãos mais uma vez e levando às bochechas.
Ivan compartilhava da opinião da cunhada, principalmente depois das horas que passou estudando as atas de exames anteriores com Aleksey, buscando padrões nas provas e calculando probabilidades. Tudo parecia extremamente desnecessário. Parou de mexer em seus anéis e tirou o relógio do bolso pela milésima vez, incapaz de se livrar do nervosismo. Ainda faltavam cerca de trinta minutos para o início da prova e ele xingou baixinho. Não havia sido tão inteligente assim chegar mais cedo para pegar o lugar mais próximo possível da arena, porque agora Ivan tinha certeza de que iria morrer do coração.
— Eu preciso fumar — disse, se levantando de forma brusca enquanto buscava seu isqueiro dentro de um dos bolsos. — Você guarda meu lugar?
— Não sei, não, você sabe que não sei dizer não para meninas bonitas — comentou Tamara e Ivan revirou os olhos de forma dramática. — O quê? É verdade. Mas posso pensar no seu caso se você me arrumar qualquer outra coisa que me impeça de congelar quando voltar.
— Mais uma? Eu já te trouxe as luvas. Você não era abusada assim, sua irmã está sendo uma péssima influência para você — brincou Ivan, mas tirou o próprio cachecol, estendendo para a garota.
— Talvez a culpa seja sua, que faz tudo o que a gente quer. — Tamara pegou o cachecol com um sorriso, enrolando-o ao redor da cabeça para cobrir suas orelhas. Com um gesto de mão, disse: — Vai logo, senão vai perder o começo.
Apesar do fluxo de alunos subindo a arquibancada, todos abriram caminho com facilidade – uma das vantagens de estudar para ganhar o título de Extraordinária era que, ao precisar lecionar para os alunos mais novos, não havia diferença alguma entre ele e os professores titulares na cabecinha deles. Terminou o cigarro às pressas e voltou para seu lugar se encolhendo com o vento cortante. Tamara estava no mesmo lugar, escondida embaixo do capuz de sua capa, com o cachecol enrolado na cabeça. Ivan abriu sua capa e ela se aninhou contra ele, numa tentativa de esquentá-los melhor.
— Quem você acha que vai passar? — a menina perguntou, depois de algum tempo em silêncio.
— Morena e Aleksey, com certeza. Hadassa e Nara? Duvido. — Ivan voltou os olhos para a frente, onde os quatro alunos haviam se posicionado na beirada da arena.
Faltava pouco agora.
— Você só diz isso porque é sua esposa e seu amigo — Tamara provocou, e ele quase riu.
— Eu estudo com todos eles há dez anos. — Ivan nem precisava se defender. — Eu acho que a essa altura eu já tenho uma boa avaliação da capacidade de cada um dos meus colegas.
— Você tem um caderninho? Me diz que tem. Eu imagino você anotando. — Ela posicionou os braços como se estivesse escrevendo no ar, movimentando as mãos de forma dramática. — Irina Irinovna, fraco domínio da arte, péssima no desenho de círculos alquímicos, não consegue resolver uma equação nem sob tortura. Nota: dez de cem.
— Uau, você realmente odeia Irina Irinovna. Ela é tão incompetente assim? — ele se divertiu.
— Você conhece o tipo. — Tamara gesticulou vagamente. — Não tem um pingo de aptidão mágica, tem um lugar garantido no exército se tiver a especialização certa, e ainda se acha no direito de torcer o nariz pra gente que pode dar uma surra nela com magia de olho fechado.
— Gente tipo você.
— Ah, eu ainda estou em um nível aceitável na escala imaginária dela. A pobre da Kisa que sofre, coitada. Irina vive inventando história sobre ela para a Guarda Platina.
Enquanto isso, Khristina, a amiga de Tamara que nascera numa vila minúscula no oeste de Argon, era filha de uma padeira, sem uma gota de sangue nobre nas veias, e uma das mais hábeis do ano de Tamara. E ainda assim, algo na família de Irina Irinovna e na linhagem ridícula da qual ela viera a convencera de que era tão melhor do que Kisa que poderia inventar histórias sobre ela para a guarnição do exército que sempre vigiava a Azote.
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