Você está em um campo de trigo, o sol está brilhando no céu azul e há uma casa à tua direita. Enquanto a porta abre, imagens piscam em frente os teus olhos e, de repente, você está em uma mesa com uma mulher de cabelos longos e dourados alimentando um bebê. Sem reconhecê-los ainda, uma inexplicável sensação de felicidade te inunda, uma sensação muito próxima a de rever entes amados. Imagens piscam novamente e agora você se encontra em uma espécie de mercado, tudo parece muito familiar – quase como se você já tivesse vindo aqui antes –, porém junto de uma dor crônica que retorna a encher a tua cabeça e sons conflitantes ao que os teus olhos veem, a tua visão embaça por um momento, tornando tudo muito próximo de um mero sonho.
Sentindo fome e uma leve dificuldade para respirar, você abre os teus olhos e percebe um teto de madeira à cima. Uma leve dor em teu peito te compele a olhar para baixo te permitindo a ver que está em uma cama, vestindo roupas secas e novas. Questões inundam a tua mente mas logo são interrompidas pelo som de uma porta abrindo e, enquanto você olha para a direção dela, uma mulher de cabelos médios, negros como carvão e olhos marrons e doces feito chocolate, entra trazendo um copo d'água:
– Você tá acordado!
Ela diz em um tom de surpresa – agradável – enquanto se aproxima, já te entregando o copo:
– Toma, você deve tá com sede.
Você pega o copo mas sem dizer coisa alguma, ainda sentindo-se confuso quanto a como veio parar aqui. Ela percebe isso e logo se apresenta, também explicando o porquê de você aqui, suspeitamente informativa:
– Você deve tá bem confuso. Meu nome é Thaís eu sou a dona da taverna aqui na vila Cœur D'Argent. Prazer em te conhecer, haha.
– ... Ontem à noite, eu, o meu marido e o Lord Cœur D'Argent estávamos caçando quando te achamos inconsciente no meio da estrada perto do rio. A gente então te trouxe aqui mas você ficou desacordado até agora. Qual é o seu nome?
Como um farol para um navio, as palavras da Thaís te ajudam a navegar por todas as perguntas tempesteando dentro da tua mente e a focar em um único ponto, mesmo assim, você possui memória nenhuma de quem você é ou de onde vem. Pânico ameaça a se apossar da tua mente mas a desconcertante memória das vozes chamando pelo nome torna-se útil:
– E-Eu não sei… Acho que é… O-Orion.
– Hmm… Não é muito surpreendente, ehe. Você tinha bastante sangue no seu rosto quando te encontramos, talvez você tenha batido a cabeça…
Enquanto fazendo uma curta pausa, uma expressão de confusão ocupa a sua face e provoca a Thaís a pensar em voz alta:
– Mas estranhamente você não tinha nenhum ferimento, hmm…
Ela percebe que você a escutou e então tenta disfarçar, com um ton de boas-vindas:
– De qualquer forma, é um prazer te conhecer, Orion~.
Quase que imediatamente após ela terminar as suas palavras, o teu estômago ronca altamente e você se lembra do quão faminto está, Thaís ri por um segundo em resposta e depois se levanta, seguindo em direção ao guarda-roupas à esquerda da cama. Após pegar algumas roupas mais quentes, ela as entrega a você, sugerindo:
– Você dormiu tanto que deve tá faminto, não é mesmo? Haha. Veste essas roupas e quando estiver pronto, vamos lá embaixo que eu preparo alguma coisa para você.
Ela depois sai do quarto para te esperar no corredor, te dando um pouco de privacidade. Enquanto trocando, você percebe estar com a cabeça um pouco leve e com os pulmões doendo. A princípio acha estranho mas uma vez já vestido, ignora tais desconfortos e segue para o corredor.
Lá, enquanto descendo as escadas em direção ao salão, Thaís te conta:
– O Lord Édouard provavelmente vai querer falar com você, eu vou ter que chamá-lo mas não se preocupe, ele já deve tá aqui então não vou demorar muito.
Imediatamente ao alcançar o salão, você percebe o quão cheio o lugar está: Há pessoas de todos os tipos sentadas às mesas conversando e bebendo; algumas até dançam em um espaço mais aberto em frente – do que parece ser – um palco; o ar cheira a comida deliciosa e recém-preparada; o cômodo é bem iluminado e por mais lotado que esteja, Thaís ainda encontra uma mesa vazia onde te deixa para depois seguir para o balcão.
Ainda mesmerizado pela “atmosfera” do lugar, você começa a notar que as pessoas que dançavam, agora param para se sentar, e, como algumas das que estavam conversando, agora abaixam o as suas vozes enquanto uma mulher em um vestido verde sobe ao palco e começa a cantar.
O seu vestido é acentuado por detalhes dourados que contrastam bem com o verde; a sua pele é pálida e cheia de sardas e os seus olhos são de um verde tão vivo e intenso que você não consegue não olhar para eles, porém, ainda mais curiosamente, o seu cabelo é de um tom prateado e com um brilho quase que flamejante. Por mais belo que seja, parece estranho para alguém da sua idade, mesmo assim, ninguém parece notar – ou se importar – com isso e por um bom motivo... Pois seu canto é simplesmente mágico. Você não consegue distinguir em que idioma ela canta, mas sua prazerosamente baixa e doce voz, misturada com a melodia e emoção da música, te faz sentir-se calmamente feliz por dentro de maneira fortemente melancólica.
Quando você está prestes a se perder na música, Thaís volta com uma garrafa de cerveja e um copo vazio em suas mãos, acompanhada também por um homem que carrega uma torta e um prato com talheres. Após colocar tudo na mesa em frente de você, Thaís anuncia o menu:
– Prontinho! Um pouco de cerveja e uma torta de carneiro, bom apetite~.
– … A! Eu também quero apresentar o meu marido, o Jorge, ele me ajuda a manter este lugar de pé, haha.
O homem é alto e de pele bronze-avermelhado. Ele te cumprimenta com um grande sorriso e aperta a tua mão tão entusiasticamente que você sente como se o teu braço estivesse prestes a ser arrancado. Ele adiciona depois, com um sorriso caloroso manifestando-se em sua face:
– Então quer dizer que o seu nome é Orion? Muito prazer, qualquer coisa que precisar, é só falar comigo ou com a minha mulher, estamos aqui para ajudar.
O que provoca a Thaís a lembrar:
– A é! Eu não consegui encontrar o Lord aqui, então ele deve tá na mansão, eu vou ter que ir lá...
–... Enquanto isso aproveite a torta, é a especialidade da casa.
Com a Thaís indo atrás do Lord Édouard e o Jorge voltando a cuidar do balcão, você começa a comer. Realmente a torta é muito saborosa - assim como a cerveja -, mordida após mordida e gole após gole, o teu cérebro começa a funcionar melhor com o saciamento da tua fome. Os sotaques da Thaís e do Jorge são diferentes a ponto de você não conseguir decifrar de onde vem, porém escutando às outras pessoas na taverna, torna-se claro que você não está mais em sua terra natal, entretanto... Há uma leve familiaridade presente na arquitetura e nas pessoas.
Distraído pelos teus pensamentos, você acaba terminando a torta mais rápido do que o esperado. Olhando ao teu redor sem saber o que fazer, você vê a Thaís conversando com um homem em frente à entrada e, depois de um tempo, eles vem até você para que ela o introduza:
– Orion, este é o Lord Édouard Cœur D'Argent, filho da Senhora Marie Cœur D'Argent e o atual regente da vila.
Vocês dois se cumprimentam neutralmente e, uma vez que ele se senta, Thaís o pergunta:
– Milord, gostaria de algo para beber?
– Non, merci. Eu supervisionarei a patrulha depois disto.
Ele veste um sobretudo e chapéu pretos; carregando também um rifle em suas costas; o seu rosto acomoda uma expressão focada e a sua pele é de um tom tão próximo ao bege e quanto queimada pelo sol – muito próxima a de ciganos estrangeiros –. Por mais que as roupas tornam bem óbvio, o seu jeito de se carregar e a maneira como fala expressam que aqui, em frente de você, está um homem que lamenta a morte de alguém, alguém muito próximo e, por algum – inexplicável – motivo, você tem a impressão de que o animal que te atropelou na noite anterior tem algo a ver com a lamentação deste lord.
Enquanto Thaís deixa vocês dois a sós, ele já procede:
– Orion… O teu nome me soa familiar, de onde você vem?
– E-Eu não sei.
– Hmm... Thaís me disse que você provavelmente bateu a cabeça antes de te encontrarmos, você se lembra de alguma coisa?
Você considera contar sobre as vozes e ter acordado às margens do rio, mas logo decide o contrário – temendo que te vejam como um lunático –:
– Não, não… Eu me lembro de nada.
Ele respira fundo então, causando-te a temer que saiba que está mentindo, porém antes que você possa dizer qualquer outra coisa, os seus lábios se abrem e a sua voz ecoa monotônica:
– D'accord… Não vou mentir, você veio em uma hora não muito boa…
– ... Existe uma… Besta, um demônio o povo gosta de dizer, que recentemente apareceu por esta região e anda terrorizando a nossa vila. Eu, Thaís e Jorge andamos caçando essa besta enquanto os poucos guardas que restam patrulham os arredores da vila, porém não estamos fazendo muito progresso…
–... Escutamos rumores que ela anda atacando caravanas de mercantes e alguns viajantes nas estradas, logo sugiro que fique conosco ao menos até que a tua memória volte. A Thaís e o Jorge são boas pessoas e te providenciarão abrigo e comida, mas você precisa saber que por causa da Besta o comércio para fora tem sofrido e os suprimentos da vila estão baixos. Todos em boa saúde estão ajudando. Logo, se escolher ficar, precisaremos que ajude também. Está de acordo com isso?
– Si-Sim, sim…
Você responde um tanto que hesitante.
– Bien, demain eu trarei alguém para te mostrar a vila, por agora, vamos ver se está tudo bem você ficar por aqui.
Vocês dois seguem para o balcão onde o Jorge está servindo algumas bebidas e a Thaís anotando em uma agenda. Os três começam a conversar até que a moça que estava cantando se aproxima, ao chegar em frente de você, uma estranha presença – de alguma forma – torna-se notável e ela se surpreende com a tua percepção, ao ponto de até dar um passo para trás enquanto te olhando com ressalvas – e um pouco de medo também –, mas antes que qualquer um de vocês dois possa dizer algo, Lord Édouard vira em sua direção e então ela procede a chamá-lo em um tom sério e frio:
– C'mere, precisamos conversar.
– O que é?
–… Em particular.
Ela adiciona enquanto olhando para você de forma desconfiada. O lord nota isso e a segue para o lado do palco. Enquanto os dois se distanciam, Thaís entrega a agenda para o Jorge dizendo:
– Amor, você pode terminar isto pra mim? Eu vou preparar pra fechar.
– Sim sim, o seu desejo é uma ordem, Haha.
Jorge responde descontraidamente, colocando de lado a toalha que usava para secar um copo e depois, guardando-o em um armário na parede. Tentando esconder o seu sorriso, Thaís rapidamente te avisa enquanto segue para as mesas:
– Eu só vou falar pro povo sair e depois já te mostro o seu quarto, tudo bem?
Balançando a tua cabeça em resposta, você não consegue evitar de perceber como o Lord Édouard e a cantora ficam olhando para você de momento a momento enquanto conversam. Curioso, você decide perguntar ao Jorge:
– Quem é ela?
– Ela? A, é a Maebh, Maebh Ó'Bron… Ela e a minha mulher são boas amigas, ela também era casada com o Jacques, o outro lord que também era irmão do Lord Édouard.
Ele responde terminado de escrever na agenda e depois a coloca de lado. Lord Édouard retorna a vocês enquanto Maebh - ainda ao lado do palco - veste uma capa cinza, preparando-se para sair. Jorge está prestes a dize algo mas uma estranha fraqueza espalha-se pelo teu corpo e você perde o equilíbrio por um segundo, quase caindo no chão.
Ajudando-te, o lord pergunta:
– Você está bem?
– Sim sim, eu só... Perdi o equilíbrio.
– Volte a descansar então, amanhã nos falamos.
– Eu te ajudo!
Jorge então te acompanha em direção as escadas enquanto o Lord Édouard sai da taverna. Após te deixar no teu quarto, Jorge vai em busca de roupas extras para você. Não leva muito tempo e então Thaís aparece com uma pequena pilha de roupas e um cobertor em suas mãos:
– Estas são do meu marido mas acho que vão servir em você. Eu também trouxe um cobertor a mais caso sinta frio de noi-
Enquanto ela continua te explicando quanto os horários de funcionamento da taverna, você encontra dificuldades em focar nas sua voz, já que um milhão de perguntas sobre tudo o que aconteceu até agora inundam a tua mente mais uma vez. Por fim, você tenta não ser rude e se esforça mais para escutá-la terminar:
– … Bom, eu acho que isso é tudo. Se precisar de alguma coisa, a gente tá no último quarto a direita, é só bater na porta, entendido?
– O-Obrigado… Po-Por tudo…
– Sem problemas! Tenta descansar um pouco mais. Tenha uma boa noite~!.
– Boa noite.
Sentindo-se cansado demais para até mesmo trocar de roupas, você se deita de qualquer forma logo após a Thaís sair do quarto e, então, adormece assistindo – pela janela – a neve cair do lado de fora da taverna.
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