Uma vez de volta a taverna, vocês dois sentam-se ao balcão enquanto a Maebh – que esteve aqui desde a hora em que saíram – faz um inventário das garrafas do bar. O silêncio é intenso, a pele do Sigmundo está levemente avermelhada e os seus olhos fixam-se à superfície do balcão como se uma verdadeira guerra decorresse dentro da sua cabeça, você não sabe bem dizer o porquê, mas acha que tem algo a ver com a sua dificuldade com as pessoas.
Os eventuais sons de garrafas de vidro batendo umas nas outras e da Maebh escrevendo no papel ecoam do bar, a tua mente não consegue parar de pensar que ela – disfarçadamente – presta atenção em todos e quaisquer movimentos vindos de você com grande apreensão – medo, até – mas a parte lógica do teu cérebro descarta essa ideia como apenas paranoia.
Enfim, os sons relaxantes da lareira à tua direita te trazem paz junto com o conforto providenciado pelas suas chamas, pensamentos aleatórios se proliferam e algo de interessante se destaca dentre eles: Por mais que se sinta consideravelmente bem de corpo e mente – excluindo a amnésia –, você tem encontrado dificuldades para focar desde ter acordado, anda disperso de forma que – sente – nunca ter sido antes.
– Voltamos!
Te desconectando dos teus pensamentos, a voz do Jorge ecoa após o ranger das portas. Ele e o Lord Édouard seguem em direção ao balcão para sentar-se junto de você e do Sigmundo enquanto a Thaís segue para ou outro lado avisando:
– O almoço sai em cinco minutos ~.
Enquanto ela guarda o seu rifle atrás do bar, Jorge se prontifica:
– Eu te ajudo!
Ela e a Maebh simplesmente trocam um breve olhar de preocupação, respondendo logo depois:
– Não, não, amor... Você quase botou fogo na cozinha toda a última vez que tentou cozinhar. Não se preocupe, eu e a Maebh já damos conta por hoje.
Sentando-se de novo, Jorge protesta mesmo reconhecendo a sua derrota:
– A, ok… Mas foi só uma vez… Foi um acidente...
Com o fim das palavras do Jorge enquanto as duas já seguem para a cozinha, você o pergunta:
– Então, como foi a caça? Encontraram a Besta?
– Não, mas encontramos algo de interessante… Os rastros que seguimos hoje tavam bem bagunçados e lideravam para lugar nenhum, parece que a Besta tá fugindo de algo.
Jorge responde de maneira entusiasmada até, como se já possuísse teorias sobre do que a Besta esteja fugindo, mas o silêncio do Lord Édouard rapidamente rouba a tua atenção. A sua falta de palavras junto com a maneira como nem parece escutar o mundo ao redor sugerem que ele está pensando em algo preocupante, algo que você – por algum motivo – suspeita escapar do conhecimento dos outros. Você pensa em confrontá-lo mas no exato momento em que está prestes a abrir a sua boca, Jorge nota a situação do Sigmundo:
– Você tá bem aí Sigmundo? Tá com cara de quem vai se declarar para alguém, hahaha.
A face de Sigmundo passa para um forte ton de vermelho instantaneamente enquanto nega de forma até que incriminadora:
– Não não não! E-Eu… Eu estava pensando sobre algo, é só isso!
Jorge continua brincando:
– Eu sei que a Maebh é bem bonitona, mas acho que você é um pouquinho jovem demais para ela, haha. Mas não se preocupe! Idade é aquela coisa que você ganha não importa o que faça… Infelizmente. Mas a vantagem é que não precisa fazer muito, é só não morrer. Hahahaha!
A sua risada é estrondosa e incontrolável enquanto o Sigmundo lança palavras atrás de palavras tentando se explicar, quase oblívio ao fato de que a “dica” do seu colega foi apenas uma piada. Mas mesmo com a comoção dos dois, o lord continua a observar a lareira, aprofundado em seus pensamentos ainda mais. Qualquer intuição que você antes tinha antes sobre ele esconder algo, agora é uma certeza mas antes que possa perguntar o que é, Thaís e Maebh já começam a trazer tigelas e pratos de comida resultando em você e os outros ajudarem a montar a mesa.
Com tudo pronto, todos começam a sentar, exceto Maebh:
– Eu tenho algumas coisas para resolver em casa, então temo que não posso ficar hoje…
– O quê? Mas eu pensei que você almoçaria com a gente…
Thaís protesta, com uma tristeza palpável nas suas palavras e uma expressão de preocupação na sua face. Maebh então responde, tentando confortá-la:
– Desculpa, eu realmente não posso ficar… Mas prometo um outro dia.
– A… Certeza? Mas sem falta da próxima vez então, certo?
– Aye, bom almoça para vocês.
Ela balança a cabeça em afirmação, já se despedindo, o que causa a Thaís a se prontificar:
– Deixa que eu te acompanho até os portões então, amiga…
– Não, não precisa. Eu.. Ficarei bem.
Com tristeza já escapando o sorriso que ela apresenta à Thaís para não soar mal-educada, Maebh se despede de todos e enquanto ela sai da taverna Thaís senta-se ainda carregando uma expressão de preocupação. Mesmo assim, logo todos começam a comer – quase como se tal cena fosse mundana a eles – . Você percebe o quão pesado o ar está e começa a desconfiar que há algo sobre a Maebh que as pessoas estão escondendo de você.
Após a refeição, enquanto o Sigmundo parte para algum lugar e ambos a Thaís e o Jorge preparam a taverna para a noite, você senta-se no bar ao lado do Lord Édouard e sucumbe à tua curiosidade:
– A Maebh está bem? Digo… Qual é a história dela? Ela pareceu tão triste na hora que foi embora...
Sem tirar os seus olhos do copo de bebida, Lord Édouard diz após um pequeno segundo de silêncio:
– É uma longa história…
Reconhecendo que talvez esteja perguntando sobre coisas que não deveria perguntar, você controla a tua curiosidade e prepara-se para levantar-se, mas quase como se não se importasse, o lord começa – ainda observando o líquido avermelhado-escuro no seu copo –:
– Durante a guerra do Conquistador, eu fui contratado por um dos seus comandantes para uma missão secreta, uma missão de reconhecimento antes que as suas tropas pudessem começar uma invasão. Eu e alguns outros soldados mercenários entraríamos escondidos na ilha de Érie pelas margens sul e coletaríamos informações sobre as tropas inimigas e suas formações...
– ... Uma semana depois voltaríamos às margens para sermos retornados ao continente por um grupo de piratas que ele havia contratado também, entregaríamos toda as informações coletadas e teríamos nossas recompensas. Era suposto a ser um trabalho simples, sem complicações. Isso é, até o capitão dos piratas aparecer…
Ele rí brevemente de forma sarcástica, mas logo continua após uma pausa:
– Era mon frère… Jacques. Mon frère que fugiu de casa dez anos antes daquele dia, mon frère de quem eu não escutava notícias desde quando entrei no Exército Mercenário… Mas ainda assim, lá estava ele, mon frère que eu conhecia desde a sua nascença. O mesmo Jacques de quando éramos crianças, com a única diferença que ele era um pirata agora…
Uma mistura de nostalgia e melancolia expressam-se em sua face mas apenas por um segundo e de forma sutil. Ele toma mais um gole e então continua:
– Nem mesmo dez minutos após nos aproximarmos às margens de Érie, enquanto ainda descarregávamos os suprimentos para a missão, a praia começou a encher com pessoas. A princípio, pensamos que eram soldados e que de alguma forma fomos descobertos mesmo com a total escuridão da noite, mas estávamos errados...
– Essas pessoas eram civis e estavam preparando alguma forma de execução, não parecia ser algo que fosse prejudicar a nossa missão até Jacques ver a moça que estava prestes a ser queimada viva… Eu sugeri que eles saíssem de imediato já que os suprimentos que tínhamos descarregado já seriam o bastante, mas mon frère já estava além de perdido, ele já lançava ordens para os seus camaradas preparar uma missão de resgate. Conhecendo-o, qualquer discussão seria em vão, alors, invadimos a execução com armas em mãos...
– .. Ela deve ter feito algo de muito ruim pois o povo lutou bravamente, fazendo o possível e até o impossível para que não os interrompêssemos. O caos reinou, foi um banho de sangue, alguns deles gritavam “traidora”, “bruxa”… “Bean sidhe” ou seja lá o que queria dizer, mesmo enquanto morriam…
– Eles estavam começando a nos matar em grandes números quando, provavelmente em um sinal que ele combinou com os que permaneceram no navio, Jacques jogou uma tocha ao ar e tiros de canhão choveram sobre a praia, matando muitos dos civis... E quase que nós também. Foi a irresponsabilidade típica de mon frère mas não imagino que teríamos escapado sem.
Ele pausa brevemente, tomando o último gole do seu copo e então continua:
– Aquela mulher era a Maebh e de forma poética até, o controle dela sobre o coração de mon frère era quase que bruxaria. E não digo isso de forma banal… Não. Logo após retornarmos ao navio e eles terem se conhecido, Jacques imediatamente decidiu desertar a missão e retornar para Sialav. Após conversarmos mais sobre isso, eu decidi vir junto, não sou um para acreditar em superstições mas também não sou oblívio à forma como mon frère se comportava quando apaixonado. Até descobrir mais sobre a história da Maebh, eu não me sentia seguro deixando-os seguirem viagem sozinhos…
–… Dissemos adeus ao navio e aos camarades do Jacques no porto das Terras Baixas e depois viajamos pelo interior, evitando cidades e vilas grandes por causa da nossa deserção. Finalmente depois de três semanas chegamos em casa. Ma mère ficou muito feliz em nos ver de novo e gostou muito da Maebh também, ela até os presenteou o chalet às bordas da lagoa depois quando se casaram. Maebh nunca contou a ninguém exceto à mon frère o porquê seria queimada viva aquele dia, mas ela não fez nada também que me suspeitasse muito. Logo, com o tempo, deixei de lado as minhas perguntas…
–… Por alguns meses a vida foi bem tranquila e ninguém apareceu procurando por mim ou mon frère, cobrando nossa deserção, mas tudo mudou em uma noite: Eu e mon frère estávamos voltando de uma tarde de caça, um pouco mais tarde do que o normal quando a Besta nos atacou… Até então havíamos apenas ouvido rumores sobre ela mas os descartamos apenas como meras superstições… E infelizmente, a vida de mon frère foi o custo desse descuido.
Você percebe como a voz do Lord Édouard carrega um ton de responsabilidade, quase como se ele se culpa pela morte do seu irmão. Ele respira fundo, recompondo-se e depois continua, de volta ao mesmo ton de indiferença que você veio a associar a ele:
– Após isso, Maebh começou a se distanciar cada dia mais do resto do mundo, ela não saía muito do chalet e sempre que se passasse perto da trilha que leva lá, era possível escutá-la chorando. Só depois que a Thaís apareceu e as duas começaram a ser amigas que ela voltou a sair de casa, mesmo que só um pouco. Do que a Thaís me contou, cantar aqui tem ajudado a Maebh bastante em cooperar com a dor mas ela continua evitando as pessoas…
–… Alors, ela é uma boa pessoa, dê tempo a ela e você verá isso.
Ele adiciona enquanto levantando-se e depois começa a seguir em direção à saída. Você, confuso, pergunta:
– Onde você vai?
– Checar as patrulhas e se há novas notícias sobre a Besta… É a minha responsabilidade.
As suas palavras escoam pelo salão e depois são seguidas pelo bater da porta, o silêncio seguinte convida ainda mais questões à tua mente, mas junto a elas um leve sentimento de insatisfação se expressa, quase como se a história que o Lord Édouard te contou não está completa.
Pelo resto do dia, você permanece na taverna fazendo nada exceto refletir mais perguntas sem respostas quanto tudo e nada ao mesmo tempo. Após se encher no jantar, você se deita na cama e segundos antes de apagar, pondera:
– “Será que a mulher do meu sonho ainda está viva? Talvez ela poderia me ajudar a recuperar as minhas memórias?”
Ainda não se sentindo cem por cento você falha em desenvolver a fundo essa questão e inevitavelmente adormece, escutando o vento soprar.
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