A música tocada pelo quarteto de cordas é tão agradável quanto divertida, alguém que você de alguma forma, sabe ser o teu amigo enche o seu prato enquanto fazendo graça sobre alguma coisa – devido a maneira como sorri –, porém você não consegui ouvir bem sobre a música alta.
O frio que a tua mão direita antes sentia devido a temperatura do ar noturno é subitamente extinguido por um toque quente e confortante, sendo puxado para longe do teu amigo você olha à frente encontrando uma mulher muito bonita que parece te conhecer e, em um piscar de olhos, vocês dois agora dançam em frente ao palco onde está o quarteto de cordas. A tua vista é grudada a face dela, admirando a absoluta perfeição que vê; o seu perfume, sutil mas ainda viciante, traz uma sensação familiar de borboletas no teu estômago e ansiedade ao teu coração, ela percebe isso e então pergunta:
– O quê?
– O que o quê?
Uma resposta típica de um tolo apaixonado, escapa da tua boco com tamanha determinação que parece quase como se tivesse vindo de um roteiro e dispensa o teu controle... Algo está errado.
– Você está me olhando daquele jeito engraçado de novo, haha.
– A!… É qu-que você está muito bonita hoj-
Tuas palavras são então cortadas abruptamente enquanto, por uma fração de segundos, a face da mulher parece estar coberta em cortes e machucados.
– H-ho… Hoje.
– Só hoje?! Hmm… Então você não me achava bonita antes? Haha.
Ela te provoca, depois te dando um beijo apaixonado mas antes que o teu coração possa pular uma batida, nojo preenche a tua mente enquanto o pútrido gosto de sangue invade a tua boca. Ao abrir os teus olhos uma fera horrível e coberta em queimaduras toma o lugar da moça e com a sua boca aberta e cheia de dentes afiados, avança em tua direção enquanto gritos ecoam ao teu redor:
– POR QUE VOCÊ NÃO ME PROTEGEU?! EU NÃO ERA BONITA O BASTANTE PARA VOCÊ?! FOI ISSO???
Querendo gritar mas não conseguindo pois já vomita, você acorda abruptamente tremendo e sentindo-se oco por dentro, mas não oco por estar vomitando todas as truas entranhas – figurativamente dizendo –; Oco em não ter mais uma razão para continuar vivendo.
Sentindo um odor forte de ferrugem, você tenta manter os teus olhos abertos por um instante mas assim que vê o cobertor encharcado de sangue, você os fecha novamente sentindo que está prestes a vomitar mais uma. Levantando-se, você olha para a cama preocupado demais para se importar com a ânsia que sobe à tua garganta e em um reflexo de fuga, você embola os cobertores de forma a esconder o sangue, abre a porta do teu quarto com grande cuidado para não fazer muito barulho e saí correndo. Você desce as escadas apressadamente e passa reto pela Thaís e o Jorge sem responder o bom dia deles, ao passar pela porta de entrada da taverna e para fora, a luminosidade – por mais nublado que os céus estejam – estranhamente causa os teus olhos a doerem. Porém, o pânico te faz ignorar a dor e, seguindo para trás da taverna onde o lixo é jogado e então você se desfaz dos cobertores.
Depois de se certificar que tudo estava certo e se nenhuma gota de sangue passou dos cobertores para a tua camisa, você pensa por um momento, recuperando o teu fôlego:
– “O que no submundo foi aquilo?! Eu fiz alguma coisa de errado?! Aquela fera… Aquilo não pode existir, não, não, não, NÃO!”
– “Por que o sangue??? Eu não tenho ferimento algum, tenho? Exceto a amnésia eu me sinto bem, não faz sentido que eu fosse vomitar sangue, não faz sent-… Uma maldição?!”
– “Não, não, não, não… Como?! Por quê?!… Lembre! Lembre! Lembre!”
– “… Espera. Os moradores desta vila… Se eles descobrirem que eu estou amaldiçoado… Eles vão me chutar para fora, fora onde têm uma Besta atacando as estradas!”
Andando de um lado para o outro, os teus pensamentos escalam exponencialmente tanto em absurdo quanto em confusão. Eventualmente, respirando fundo e se aclamando, você tenta ser mais sensato:
– “Eu não sei o que foi isso… Pode ser uma maldição ou uma doença...”
– “... Eu não sei o que farão comigo caso descubram...”
– “... E eu nem sei se a Besta da qual falam que está atacando as estradas não é só um mero lobo ou outro animal selvagem… O que me derrubou o outro dia poderia muito bem ser um javali por exemplo…”
Lembranças da silhueta daquela noite piscam em frente os teus olhos:
– “Não, não… Eu lembro o que me derrubou… Aquilo não era um javali… Não podia ser…”
Uma última pausa e você volta para a taverna, pensando no caminho:
– “Não vou contar nada para ninguém até eu descobrir mais sobre o meu passado e o que está acontecendo aqui…”
Passando pelas portas principais você cruza caminhos com o Sigmundo que, pela primeira vez, olha para o teu rosto:
– Bom di…
– Bom dia.
A tua resposta é curta e afiada, também oblívia a como as palavras dele foram interrompidas uma vez que o Sigmundo viu a tua face. Inconscientemente, enquanto vocês dois seguem em direção ao balcão, você esfrega o teu rosto – em busca de sangue, provavelmente –, o Sigmundo parece mais do que satisfeito com não estender a conversa e permanece quieto. Uma vez que vocês estão próximos o bastante, Thaís os cumprimenta:
– Bom dia Orion, bom dia Sigmundo.
– É… Tá tudo bem Orion? Você passou correndo com tanta pressa…
– A, si-sim, é… Desculpa, eu não estava me sentindo muito bem…
Sentando-se ao lado do Sigmundo – que parece se esforçar para esconder o seu desconforto com a tua proximidade – você adiciona:
– Eu tive que jogar fora os cobertores…
– Tudo bem, eles estavam com os seus dias contados mesmo haha. Depois eu deixo uns novos lá no teu quarto, ok?
Você então a responde apenas balançando a tua cabeça em afirmação. Ela procede a colocar dois pratos e xícaras em frente de você e do Sigmundo perguntando:
– Café?
Enquanto a Thaís coloca um pouco de café nas xícaras, você e o Sigmundo já começam a comer, Jorge coloca uma mão sobre o ombro do Sigmundo dizendo:
– Agora, coma bem. Não apenas esse café foi feito pela melhor chef do mundo…
Ele olha para Thaís como um artista olha para a sua musa.
–... Mas para crescer grande e forte você precisa comer bastante, se todos nós morrermos na caça, você e o Orion serão a última linha de defesa da vila, Hahaha!
Já se esquecendo de tudo o que aconteceu nos últimos 10 minutos, o humor do Jorge te contagia, expressando um sorriso notável nos teus lábios. Se não tivessem tamanha – supostas – diferença de idades, um poderia facilmente confundir o Jorge como o irmão mais velho e o Sigmundo como o mais novo, dadas as interações entre os dois. Tanto que você não consegue se controlar e rí, o que causa o Sigmundo a afundar – ainda mais – entre os seus ombros, envergonhado. Porém, uma abrupta sensação de fome e um alto ronco do teu estômago faz você a vítima das risadas também.
Mesmo após um momento do silêncio tomar o ar, o Jorge mantém uma expressão engraçada na sua face, até trocando olhares com a Thaís como se estivesse pedindo permissão para contar um segredo do qual está muito animado. Finalmente, em um tom de quem não consegue mais se conter, ele fala:
– Então, hãããã.... Vocês sabem como já faz um tempo que estão presos aqui na vila sem fazer nada de legal?
Você balança a tua cabeça em confirmação enquanto o Sigmundo continua afundado entre os seus ombros, desejando que todos sumissem. Logo, ainda com dificuldades para não fazer parecer ser grande coisa o que está prestes a falar, Jorge procede:
– Bom... Não é cem por cento de certeza mas, éééé... Um passarinho me disse que o Lord andou considerando chamar vocês para nos ajudar a caçar a Besta... E que, talvez, hoje ele vai ensinar vocês dois a atirar uma arma....
–… Mas é só um rumor, só isso. Se perguntarem, n fui eu que contei, ok? Hahaha.
Por mais divertido que seja observar a expressão do Jorge tentando conter a sua ansiedade para ouvir o que vocês têm a dizer, você não consegue evitar de olhar para o Sigmundo, mais especificamente, o quão pálido o seu rosto acabou de ficar. O Jorge nota isso também e tenta animá-lo:
– Ó! Você já está até camuflado, a Besta nem saberá o que a atacou, Hahahaha!
Porém, o Sigmundo continua a fixar o seu olhar para o nada em sua frente, com a sua pele começando a ficar branca feito neve e o seu corpo a congelado como gelo. Thaís coloca as suas mãos em seus quadris e olha para Jorge de maneira afiada, causando-o a protestar:
– O quê? O garoto só tá congelado por, por… Ansiedade. É! Ele mal pode esperar para ir caçar! Não é garotão?
Com essa última parte, ele dá um tapa de camaradismo nas costas do Sigmundo mas o garoto permanece em shock, resultando na Thaís a agravar o olhar de decepção que lança ao seu marido. Com o passar de um segundo demasiadamente silencioso e tenso, Jorge protesta:
– Hmm… É… Ao menos ele não tá tendo um ataque de pânico, né?
– Amor!
Thaís diz, apontando para Sigmundo com o seu olhar e depois – como se tivesse perdido a esperança de que o seu marido fosse parar de brincar – adiciona:
– Sabe, eu preciso de mais lenha para preparar a janta mais tarde.
– A! Sim sim, antes do almoço eu busco.
Ele responde como se fosse algo para depois. oblívio do verdadeiro motivo por trás das palavras da Thaís. Logo, ela o lança aquele olhar que mulheres lançam aos seus maridos apenas quando suas presenças não são mais bem vindas.
– A… Você quis dizer agora?
– Sim, agora.
– A, ok… Eu to… indo... então.
Ele sucumbi, porém não sem piorar a situação ainda mais –mesmo que suas intenções são bondosas, você supõem –:
– Eu to indo então… A, mas não se preocupe Sigmundo, a Besta pode ter matado um montão de gente já mas não se preocupe, pode contar comigo que você vai ficar bem!
Batendo de leve nas costas do Sigmundo mais uma vez, Jorge diz de forma a confortá-lo, porém dado a sua escolha de palavras o efeito acaba sendo o extremo oposto: O rosto do Sigmundo desafia as leis da biologia e anatomia humana embranquecendo ainda mais; as suas mãos seguram o garfo e a faca com tanta força que se não fossem feitos de metal provavelmente já teria quebrado e a sua face passa a apresentar a mesma expressão que alguém carregaria após descobrir a exata data e hora da sua morte.
Thaís levanta as suas mãos para os lados à altura dos seus ombros enquanto ainda mantendo seus cotovelos próximos de seu corpo, expressando surpresa e frustração.
– Lenha para o fogão, entendi…
Jorge responde enquanto uma expressão de tristeza misturada com arrependimento ocupa a sua face, percebendo a situação e saindo o mais rápido o possível. Com uma – quase materna – expressão de preocupação na sua face, Thaís segura as mãos do Sigmundo e, olhando profundamente nos seus olhos, tenta acalmá-lo:
– Sigmundo, tá tudo bem ter medo, ninguém vai te julgar. E se você não quiser ajudar na caçar, podemos ir falar com o Lord Édouard quando ele chegar.
Do momento em que as suas mãos seguraram as do Sigmundo a até quando as suas palavras terminaram, toda a cor que a face do Sigmundo perdeu voltam quase que instantaneamente, em um vermelho impossivelmente forte.
– E-Eu preciso pen-pensar…
Ele responde, com uma voz tão quieta quanto os paços de uma raposa e a sua face ainda vermelha como um tomate, levantando-se do balcão e depois seguindo em direção a uma das mesas sob as janelas. Depois sentando-se, colocando seus cotovelos sobre ela e a sua cabeça apoiada nas suas mãos, fixando o seu olhar firmemente na superfície da mesa parecendo muito como se tivesse visto um fantasma, um espectro ou algo tão além das noções de realidade que a sua mente se encontra em um dilema impossível.
A Thaís olha para você com o mesmo olhar de confusão que você a olha e, então, sem o uso de palavras vocês dois concordam em dar espaço ao Sigmundo enquanto esperam o Lord Édouard chegar.
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