Um forte aroma de café alcança o teu nariz e inunda os teus pulmões, porém o gosto na tua boca é muito mais amargo, quase como se houvesse tomando um remédio muito forte. Em um estado entre acordado e dormindo, você sente resquícios de um mal-estar tão intenso que um poderia brincar que você acabou de retornar da morte. Ainda assim, é apenas quando você vira para o lado que percebe estar na tua cama, o conforto das cobertas sobre o teu corpo e a fraca mas quente luz de uma lâmpada a vela te fazem querer permanecer assim para sempre mas um crescente desconforto dentro da tua mente faz algo parece estar errado.
Olhando para fora da janela, já é noite mas nenhum som vem do andar inferior – contrário ao que é normal –, mais além, o teu cérebro descobre apenas agora a ausência de qualquer memória das últimas horas ou de como você veio parar aqui. Ainda sentindo-se um pouco tonto você tenta sair da cama, apoiando-se na mesinha ao lado, você coloca os teus pés no chão apenas para imediatamente se assustar com o som de alguma coisa caindo, o breve salto em adrenalina no teu sangue te proporciona a força necessária para espantar o sono que ainda ameaçava a tomar posse de você e então, continua a seguir caminho para fora do quarto.
As tábuas de madeira da escada rangem com cada passo que você desce, o salão principal da taverna está absolutamente vazio, as luzes apagadas – sendo que a única fonte de iluminação são as janelas derramando a pouquíssima luz das estrelas que as apontam –, o ar apresenta-se quase como uma cortina gélida e estática. Tudo isso se mistura de forma a criar uma atmosfera macabra que provoca os pelos na tua nuca a se levantar.
Você para em frente a porta largamente aberta da cozinha procurando por algum sinal da Thaís e do Jorge mas encontra apenas uma panela cozinhando sobre o fogo, junto de alguns legumes meio cortados em cima de uma tábua e uma preocupante falta de presença humana, quase como se tivessem partido com pressa.
Logo quando você está prestes a se perder em pensamentos, o bater de peças de armaduras de um grupo de guardas correndo em frente à taverna quebra o silêncio, a tua curiosidade te persuade a seguir em direção à entrada, você obedece quase que sem pensar mas assim que agarra a maçaneta, algo estranho captura a tua atenção: À alguns paços de distância de onde está, em frente à lareira, há um suspeito vazio, quase como se as mesas e cadeiras foram movidas durante a limpeza e nunca retornadas para os seus devidos lugares depois. Algo coça no fundo da tua mente mas os apressados passos vindos do lado de fora da taverna atiçam a tua atenção mais uma vez.
Abrindo a porta e tomando o primeiro passo, o congelante ar da noite já supera o desconforto que o de dentro da taverna te causava, sendo frio o bastante para fazer com que a pele do teu rosto se sinta sólida como pedra. Ainda assim, guiado por uma curiosidade quase que primitiva, você fecha a porta atrás e olha para uma grande multidão formando-se do outro lado da praça central, em frente à mansão Cœur D'Argent.
Estranho o bastante, por mais que estejam à uma distância razoável, você n consegue ouvi-los, logo começa a caminhar em sua direção. Com cada passo as vozes tornam-se mais e mais claras: Aparentemente trata-se de alguma coisa quanto os guardas não estarem deixando as pessoas saírem da vila e… Um horário de recolher obrigatório? Antes que possa escutar mais para entender o que ouviu, você tromba em uma figura vestindo uma capa cinza e que já movia para longe da multidão:
– D-Desculpa, eu estav-
As tuas palavras são cortadas subitamente quando a figura vira o seu rosto à tua direção e você vê que é a Maebh. Antes mesmo de te reconhecer, a sua "máscara" cai por um breve segundo revelando surpresa misturada com medo, mas ela rapidamente as esconde outra vez e retorna a seguir o seu caminho com passos mais apressados agora, rumo os portões principais.
Antes mesmo do teu cérebro conseguir processar o que aconteceu, você encontra-se de pé sozinho em meio a praça com a Maebh já fora de vista. Vendo a multidão se aquietar gradualmente como se algo estivesse prestes a acontecer você corre em sua direção apenas para parar à dois ou três passos de distância, estranhamente sem fôlego, porém antes que possa refletir na peculiaridade desta perda de energia, uma voz chama pelo teu nome:
– Orion! Estamos aqui!
Ainda com as mãos sobre os teus joelhos mas – estranhamente – já se sentindo melhor, você olha para frente e vê a Thaís e o Jorge acenando para você dentre a multidão. Quase que instantaneamente, você começa a andar em direção à eles notando que a tua fatiga sumiu de alguma forma, como se – de alguma forma – o susto ou a própria presença da Maebh tivesse a provocado.
– Você já tá se sentindo melhor?
– Você nos assustou àquela hora…
Thaís pergunta e o Jorge comenta logo após, interrompendo a tua linha de pensamentos.
– Hmm, si-sim, eu acho que....
Você então olha ao teu redor e lembra de uma das tuas perguntas:
– O que está acontecendo aqui?
– A! Hoje mais cedo, um pouco depois de você ter desmaiado, os guardas foram de porta em porta falando para as pessoas não saírem de casa depois das oito da noite, falando que eram as ordens do Lord…
–... Aí essa multidão começou a se formar a mais ou menos uma hora atrás.
Jorge responde e então a Thaís adiciona: depois
– Alguns moradores também falaram que os guardas não tão deixando eles saírem da vila sem se quer explicar o porquê…
Quando você está prestes a processar o que te foi dito, a porta da mansão abre e de lá o Lord Édouard, Lady a Marie e um homem desconhecido saem.
– Milord, por que não podemos mais sair das nossas casas à noite?
– Milord! Eu preciso viajar para a vila vizinha ainda esta noite para poder visitar um parente doente mas os guardas não estão querendo abrir os portões.
– Milady, o teu filho enlouqueceu! Ele ordenou um toque de recolher!!!
Por mais que – quase todas – as pessoas ainda estão se comportando de forma respeitosa, é difícil de não perceber a frustração nas suas vozes. Com as reclamações tornando-se mais e mais numerosas, a Lady Cœur D'Argent bate a sua bengala no deck – de forma muito similar até, a um juiz batendo o seu martelo – e, uma vez que a multidão se acalma, ela começa:
– Como alguns de vocês já devem ter ouvido, o jovem Sigmundo desapareceu esta tarde após ele, o meu filho e o Orion terem sido atacados pela Besta fora dos limites da vila. Enviamos um grupo de resgate imediatamente mas assim que entraram na floresta a Besta tomou a vida de dois dos guardas integrantes…
A breve calma que a multidão manteve enquanto a Lady falava é quebrada assim que ela menciona a morte dos soldados. Lástimas e palavras de desespero ameaçam a se multiplicar de forma exponencial mas Lady Marie gesticula como se não tivesse terminado de falar ainda:
– Porém, no caminho de volta, os guardas restantes encontraram este mercador…
Ela aponta para o estranho que está ao lado do seu filho, ele parece ainda estar muito assustado para falar qualquer coisa e olha para a multidão com ansiedade, escaneando cada uma das pessoas com olhos apreensivos, quase como se a Besta estivesse se escondendo entre elas.
Por um momento quando ele olha para você, um pico de ansiedade salta no teu coração, como se esperasse que ele talvez te reconhecesse, mas o seu olhar escrutinador logo segue para a próxima pessoa com a mesma pressa que te analisara. Um momento de espera passa e então a Lady Marie reconhece que seria pedir demais para o mercante tomar um passo à frente – para contar a sua história – já procedendo ela mesma:
– Ele nos contou que viajava rumo ao nordeste quando viu alguém que temos quase certeza que era o Sigmundo escalar as colinas e, que ao se aproximar, a Besta apareceu por entre as árvores e começou a persegui-lo. Ele contou que depois disso ele correu em direção à nossa vila e que após alcançar a corredeira a Besta havia desaparecido...
-... Isso condiz com o que a equipe de busca reportou mas ainda há mais o que precisamos perguntá-lo…
Uma pausa segue quase por relutância e a maneira como ela olha para a multidão te passa a impressão de que as suas palavras seguintes não trarão boas notícias. Respirando fundo e depois soltando o ar controladamente, ela então as verbaliza:
–... Ainda não temos todas as informações que queríamos mas com tudo o que ouvimos, é com um coração pesado que eu, Lady Marie Cœur D'Argent decreto uma pausa nas tentativas de resgate e que os portões sejam trancados até que a Besta esteja morta. O meu filho também já instrui aos guardas para anunciar o toque de recolher... Infelizmente como não sabemos se a Besta é capaz ou não de invadir a vila, não podemos correr muitos riscos.
– Retornem para as suas casas em segurança, que o Deus Sem Nome nos proteja e que ele guie o pobre Sigmundo de volta para cá.
A multidão ameaça entrar em uma frenesia, gritando palavras de pânico e medo enquanto a Lady Marie entra de volta na mansão, sendo seguida pelo mercante, o Lord Édouard e dois guardas. Os outros guardas começam a dispersar a multidão evitando ao máximo agravá-la ainda mais – porém, sem muito sucesso – mas mesmo entre o iminente caos, algo chama a tua atenção: A maneira como a Lady terminou as suas palavras e como já se apressou para retornar para dentro da mansão, não indicam medo ou fraqueza – como muitos na multidão a acusam – mas urgência, como se algo a mais a preocupasse, algo demasiadamente problemático a ponto de ofuscar a quebra de confiança com o seu povo através desses decretos.
Você começa a alimentar esta teoria na tua cabeça mas a maneira como as pessoas se agitam cada vez mais provoca o Jorge a sugerir, já puxando você e a Thaís para fora da multidão de maneira protetora:
– Seria melhor já irmos indo, né? Hehe.
Ele tenta soar despreocupado mas a sua face entrega o medo borbulhando na sua mente, mesmo assim, você não presta muita atenção e continua a refletir sobre a tua teoria, chegando a até não perceber quando o Jorge solta o teu braço uma vez que vocês já estão saindo da praça central.
Algo que então captura a tua atenção é a conversa de dois fazendeiros que passam por vocês, sentido paralelo à taverna:
– Ei! Mas e aquela moça dos cabelos brancos?! Eu vi ela saindo pelos portões sem ser parada pelos guardas, Isso não é justo!
– Técol! Ela é a viúva do Lord Jacques… Têm umas histórias estranhas sobre ela, confia quando eu falo que você não quer se envolver com ela… Sério! Finja que não viu, ela é só problemas.
Absorvido na conversa dos dois, você para de seguir o Jorge e a Thaís e começa a andar em direção aos fazendeiros no intuito de perguntar a eles o que são essas “histórias estranhas”, mas antes mesmo de tomar três passos na direção deles, a Thaís coloca as suas mãos sobre os teus ombros e, te direcionando de volta à taverna, nota – completamente dispersando a tua curiosidade –:
– Então, agora que acordou, você deve tá morrendo de fome, né?
A sua voz carrega um tom amigável e materno mas de alguma forma você percebe ambos preocupação e medo mascarados por baixo. Ela depois adiciona entusiasmadamente:
– Hoje eu preparei umas receitas de lá de casa, espero que você goste!
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