Ajudando o Jorge montar a mesa enquanto a Thaís termina de preparar a comida, a tua mente tormenta em um milhão de pensamentos e perguntas que gritam cada vez mais alto até que uma se traduz em palavras, rompendo o quase silêncio que ocupa a taverna deserta:
– Vo-Você acha que o Sigmundo está morto…?
Jorge congela por um momento após ouvir a tua pergunta e, por mais que não consegue vê-la de onde está, você “sente” como se a Thaís reage da mesma forma. Entretanto, voltando a colocar os talheres ao lado dos pratos, Jorge responde:
– O Sigmundo talvez não seja a pessoa mais corajosa do mundo mas tenho certeza que ele tá bem. Ele provavelmente só tá perdido haha, só isso…
Por mais que as suas palavras carregam um tom ressegurador, é notável que até mesmo ele – por mais otimista que seja – não acredita nelas.
– Mas então, senta aí, eu vou ajudar a Thaís com a comida.
Enquanto você se senta e ele segue em direção à cozinha, a tua mente age como se quisesse sentir tristeza, porém ela encontra dificuldades, como se algo dentro de você – que você não consegue identificar – vêm desaparecendo gradualmente desde ao acordar sem as tuas memórias.
– Janta na mesa!
Logo quando você está prestes a descer em um abismo de preocupações e medos, Jorge anuncia enquanto ele e a Thaís trazem incontáveis bandejas das mais variadas comidas: Arroz; feijão; algo que parece ser um guisado de carne de porco; legumes; et cetera et cetera… Uma vez que terminam de trazer as incontáveis bandejas e tigelas e finalmente se sentarem, você está prestes a se servir, mas Thaís logo te interrompe com um leve tapa no pulso:
– Espere, primeiro precisamos agradecer.
Ela e o Jorge então estendem as suas mãos e você as segura – por educação –, permitindo que a Thaís comece:
– Obrigada Senhor por trazer comida à nossa mesa, segurança à gente e as nossas famílias e por favor, pedimos que guie o pobre Sigmundo em seguro de voltando para a vila. Amém.
Por mais que você permaneceu quieto, mais perguntas se manifestam na tua mente, com uma, precisamente, se distinguindo das outras: “Qual é a tua fé?”.
Os costumes relacionados ao Deus Sem Nome não provocam sensação alguma de familiaridade em você desde que acordou e, por mais que as tuas memórias continuam em oblívio, algo sobre “Deuses Antigos” ecoa dentro da tua cabeça enquanto pensando no assunto. De qualquer forma, logo que a Thaís termina os seus agradecimentos e ela e o Jorge soltam as tuas mãos, todos pensamentos fogem da tua mente na mesma velocidade que você enche o teu prato com um pouquinho de tudo, logo começando a comer.
– Haha, eu tava preocupada que fiz muita comida mas te vendo comer desse jeito Orion, acho que fiz a quantidade certa, ehe. Aproveite, só não esqueça de deixar espaço para a sobremesa, viu?
As palavras da Thaís são descontraídas e orgulhosas mas sem se distanciar da realidade. Certamente, nem mesmo a tua própria mente estava ciente desta fome que se expressa de forma tão notável. Porém, algo que você percebe é que a refeição de hoje diverge extensivamente do menu usual e então, decide perguntar apontando para uma das tigelas:
– O que é isso?
– A, esse prato se chama Feijoada. É um guisado de feijão-preto com carne de porco tradicional lá de casa. Eu tinha planejado em fazer para a feira de aniversário da vila, mas como recebi apenas metade do ingredientes que encomendei e agora a vila também está trancada, achei melhor preparar hoje antes que estraguem. Você tá gostando?
– Sim sim, é muito saborosa!
Você responde rapidamente entre garfadas. A menção dela sobre o aniversário da vila provoca uma coceira no fundo da tua mente, quase como se uma memória estivesse lutando para retornar, mas assim que você coloca outra garfada do guisado com um pouco de arroz e legumes na tua boca mais uma vez, todos os teus pensamentos – junto com o mundo ao teu redor – se desintegram em um absoluto nada enquanto a tua atenção é absolutamente absorvida pelas camadas e camadas de simples e complexa delícia que a tua língua se encontra com.
Porém, infelizmente até comida, mesmo que do mais saboroso tipo, não é capaz de domar o selvagem caos que a tua mente têm sido esses últimos dias por mais de meros segundos e, então, enquanto o teu corpo continua a aproveitar a refeição, a tua mente dispersa em tudo o que foi dito até este exato momento, provocando uma pergunta:
– De onde vocês vem? Eu sei que ainda não recuperei boa parte das minhas memórias mas o sotaque de vocês têm sido o mais difícil de reconhecer…
– A! A gente vem de Pindorama, é na região Australis do Novo Continente.
Jorge responde com uma expressão de entusiasmo, a mesma expressão que um poderia esperar de um músico quando o perguntando sobre música. Os nomes mencionados carregam uma certa familiaridade mas bem fraca, como se nunca tivesse visitado lá ou pesquisado muito a fundo. A curiosidade toma controle da tua voz – quando a tua boca não está cheia de comida – e na primeira oportunidade já pergunta:
– Como é lá?
– Ai não... Lá vamos nós de novo…
Thaís nota de forma a antecipar algo cansativo, assim que você termina as tuas palavras, enquanto a expressão do Jorge agrava para uma de puro e incontrolável entusiasmo, quase que a um nível pueril até. Ele começa então:
– Bom, é um pouquinho difícil de descrevê-la como um todo, cada região é bem diferente da outra mas imagine assim: É como se você pegasse um pedacinho da geografia, cultura, pessoas e comida, principalmente a comida haha, de vários lugares ao redor do mundo e misturasse bem tudo isso de forma que fique com o formato de um dinossauro no mapa, Hahaha.
– O quê?!
Thaís exclama olhando-o de forma engraçada, incerta se o seu marido está brincando ou não. Ele então responde:
– É… Se bem que pra mim parece mais um cavalo-marinho do que um dinossauro. Tipo, onde estão os braços e as pernas???
Assim que as palavras saem da boca do Jorge – quem agora se esforça ao máximo para conter uma incontrolável risada – Thaís olha para ele levantando uma sobrancelha, em uma expressão descrente:
– Ok amor, você acabou de renunciar os seus direitos de explicação…
– Hahaha! Mas foi só uma piada....
– Não não não, essa piada foi muito ruim até pra você. Deixa que eu explico, do jeito certo agora.
Ela responde ao protesto do Jorge notavelmente tentando manter-se séria e não rir. Após uma breve pausa – a qual sem, ela provavelmente perderia a postura para a piada do seu marido – Thaís fala a você:
– Por mais que a analogia do cavalo-marinho/dinossauro é, vamos dizer... Debatível, na melhor das hipóteses. O resto é bem assim mesmo. Seja qual for a cidade ou província que você visita, têm bastante culturas e pessoas diferentes misturadas, vivendo parede com parede até. As províncias mais ao sul tendem a ter um clima e geografia bem semelhantes aos daqui, menos a neve, enquanto o nordeste é bem quente com o sertão e têm até mesmo um deserto, e ainda ao norte mas um pouquinho mais a dentro do continente temos a Floresta Originária também…
Enquanto ela continua, você não consegue evitar de ter a tua atenção tomada pelo puro tom de entusiasmo com o qual a Thaís fala, a simples quantidade de informações sendo lançadas tão “casualmente” mas ainda de forma cuidadosa, a maneira como ela opina em alguns momentos, seja compartilhando a sua visão sobre algo ou apenas “nostalgiando” sobre memórias relacionadas com o que diz, você sente uma dificuldade em não se contagiar pelo seu entusiasmo.
Entretanto, assim que o teu tempo de atenção expira e a tua mente começa a dispersar em quaisquer pensamentos que vêm a você, algo brevemente te confunde: Por mais que os rostos da Thaís e do Jorge apresentam expressões de felicidade e nostalgia, por algum motivo, você sente- Nota, que a grande felicidade de falar sobre a sua terra natal também os traz uma dor imensa… Uma dor estrangeira a você mas que chega a te provocar a sentir triste também, em empatia. Tal sensação é tamanha que assim que a Thaís termina a sua explicação, você pergunta impulsivamente:
– Parece ser um lugar muito legal, vocês sentem saudades de lá?
– Hmm, a... Eu gosto de aproveitar a vida independentemente de onde tô. É como dizem: “Tendo boa companhia, não existe espaço pra tristeza”.
Jorge responde em um ton confortante, colocando a sua mão sobre a da Thaís. Em resposta ela olha para ele quase como se agradecesse o gesto de carinho, mas após um segundo de silêncio, as suas palavras ainda são tristes:
– E-Eu também tô feliz aqui, mesmo com o que têm acontecido recentemente, mas… É como um grande poeta disse uma vez: “As aves, que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá”...
Por mais disperso que você esteve estes últimos dias, você percebe – mesmo que por um mero segundo – a leve, quase que muda falha de voz da Thaís quando citando o poeta. Uma falha de voz que apenas acontece quando uma pessoa com um coração pesado está prestes a chorar, uma falha de voz como um trinco em uma máscara que esconde grande dor. Ela percebe isso e então larga da mão do Jorge e imediatamente se levanta, tentando dispersar:
– Olha a ora! Quase que a gente esquece da sobremesa, haha…
Antes que você ou o Jorge possam responder, ela já parte para a cozinha:
– Eu vou buscar lá.
– Amor, deixa que eu te aju-
– Não não. Não precisa… Espera aqui.
Ela nega o Jorge antes mesmo que ele se levante, causando-o a simplesmente observá-la de forma preocupada até ela desaparecer do seu campo de vista. Ele então coloca os seus cotovelos sobre a mesa e começa a mexer no seu bigode olhando para o nada, de forma pensativa. Notando no desaparecer do ar de – até então – alegria, você murmura hesitantemente, temendo ter tocado em um assunto delicado:
– De-Desculpa seu eu falei algo de ruim…
– Nah… Não é culpa sua…
Jorge responde, ainda tentando soar tão despreocupado como sempre... Mas sem êxito. O ar torna-se ainda mais denso e parado uma vez que nenhum de vocês dois diz algo a mais. O silêncio é quase que absoluto exceto pelo estralar da lareira e o frio sopro do vento no lado de fora, porém há algo mais, algo tão baixo que você não consegue distinguir se é real ou apenas a tua imaginação: Vindo da direção da cozinha, quase que abafado como se estivesse sendo escondido… O som de choro.
Você olha para o Jorge se perguntando se ele também está escutando, mas até o ranger da tua cadeira ao se mexer é ensurdecedor em comparação, deixando claro que é apenas a tua imaginação... Mas por que a tua mente imaginaria tal coisa neste exato momento? O Jorge nota a tua inquietação e, após um breve suspiro, admite em um tom triste:
– Eu… Acho que não fomos completamente honestos com você, Orion…
Ele faz uma pausa para olhar se a Thaís está voltando ou não.
– O que falamos sobre a Pindorama é verdade, mas não é a verdade completa. Além da riqueza de cultura e geografia, infelizmente, lá têm muita corrupção também…
–... Pelos últimos anos, duas províncias vem monopolizando o poder político do país inteiro, protegendo só os interesses delas e ignorando o resto do povo. Das duas, as pessoas mais envolvidas nesse esquema são os donos de minas de uma e os fazendeiros mais ricos da outra… E um deles, é o pai da Thaís.
Ele então toma um grande gole da sua cerveja como se a pior parte da história ainda está por vir.
– A Thaís nunca gostou dessa “Política de Ouro e Couro”, como as pessoas chamam, e ela tava juntando bastante provas para expor todo o esquema ao público. Eu comecei a ajudar ela um pouquinho depois que nos conhecemos mas alguns meses atrás, quando a gente tava chegando bem perto de pôr um fim nessa corrupção, o pai dela e os outros descobriram os nossos planos e então fomos forçados a sair do país sob ameaça de morte…
Ele toma outro gole, descuidado em mostrar a sua tristeza:
– Felizmente um velho amigo dela, da época da faculdade deu essa taverna pra gente e nos ajudou bastante aqui antes de ir embora… Desde então a vida têm sido mais tranquila…
– ... É que, o jeito como as coisas aconteceram e o fato da gente não poder voltar para casa, isso… Isso é uma ferida que vai levar um tempão pra sarar, especialmente pra Thaís…
Por mais que você ainda esteja despido de quaisquer memórias da tua terra natal, o teu coração consegue empatizar muito com a história do Jorge e da Thaís. Incerto do que dizer agora, os teus lábios movem por conta própria:
– Hmm… É-É bom ver que mesmo após tudo isso, vocês continuam juntos…
– Sabe como é: Quando você ama uma pessoa, você fica do lado dela até mesmo durante os tempos difíceis, né?
Um pouco após ele terminar a sua frase, você vê a Thaís voltando com uma grande bandeja de doces em suas mãos. Deixando a cozinha, ela comenta descontraidamente, como se nada tivesse acontecido antes:
– Espero que você não esteja muito cheio, Orion... Essa é apenas a primeira bandeja, ehe.
Jorge então sussurra a você antes dela chegar à mesa:
– Se você puder fingir que não te contei nada, eu agradeço. Só O Senhor sabe o quanto ela já sofreu por causa disso...
Você apenas balança a tua cabeça em afirmação e após colocar a bandeja na mesa e se sentar, Thaís olha para você e o Jorge de forma suspeita:
– Hmm… O que vocês dois estavam sussurrando aí, hein?
– Nada não, só que a única coisa mais doce que os seus doces é você, amor!
Jorge diz sorrindo apaixonadamente, puxando a sua cadeira para mais próximo da Thaís e colocando o seu baço em volta dos ombros dela afetuosamente. Ela olha para ele de forma ainda mais suspeita e depois para a mesa como se procurasse algo, dizendo:
– Ok, o que foi que você quebrou dessa vez?
Enquanto Jorge desesperadamente diz que não quebrou nada, mas a Thaís – por brincadeira – continua a suspeitar dele, você admira o amor e afeto que os dois compartilham entre si e, inesperadamente, é acertado por uma estranha sensação de familiaridade, como se uma vez você já esteve apaixonado dessa maneira, com a mulher de teus sonhos talvez… Com a Irene.
É isso! Você lembrou o nome dela, mesmo sem muita certeza ainda, você está confiante de que ela é a tua esposa, logo… O bebê que ela carregava no primeiro sonho, ele deve ser o teu filho! Mas espere… O que aconteceu então? Onde eles estão? O pesadelo… Não...Não não, aquilo não pode ter sido real… Mas então, por que pareceu ser…? Será que você realmente foi amaldiçoado?!
– Orion, tá tudo bem?
A Thaís te pergunta, quebrando a tua linha de pensamentos.
– O-O quê?
– Você sussurrou alguma coisa, não faz nem cinco segundos atrás…
– Umm.... Umm... Posso?
Você responde apontando para o doce de chocolate na bandeja, decidindo omitir o teu desespero por medo que seja muito vago, porém no fundo da tua mente, é porque você teme o que a verdade talvez seja.
– Por favor!
Ela responde de forma calorosamente entusiástica
e então, tão rápido quanto você pega um dos doces, todos e quaisquer
pensamentos preocupantes em tua mente são espantados por uma tsunami de ecstasy gourmet.
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