O ar está frio e a neve caindo no chão mistura-se com a terra tornando a estrada lamacenta, mas – de alguma forma – você também pode sentir um cheiro familiar mas estranho para o clima: Madeira queimada.
– Mantenham-se na estrada mas fiquem de olhos abertos para rastros. A Besta não deve estar muito longe.
As palavras do Lord Édouard te previnem de dispersar muito e então, junto com o Jorge e a Thaís, você foca na tarefa em mãos. Salve pelo som dos passos de vocês quatro, o tenso silêncio junto a demanda por foco causam a tua mente a levantar uma bandeira branca e perder-se em mais pensamentos aleatórios:
– “Está muito quieto aqui, deveria ao menos ter o cantar das cigarras ou soprar do vento, não deveria?”
– “Vento? Hmm… Parece que o ar está ficando mais quente… Só falta eu estar ficando febri-”
O som de um graveto quebrando sob o peso de algo – ou alguém – ecoa de em torno de quinze metros à frente na estrada. Tiros começam a ser disparados enquanto todos – incluindo você, por mais que um pouco atrasado – começam a perseguir a Besta que parece estranhamente fugir com medo.
O teu cérebro mal consegue processar a imagem dos portões do campo em que foi atacado no outro dia devido o quão rápido vocês passam por eles, os gritos dos nervos das tuas pernas também são abafados pela tua frustração com a velocidade em que a Besta corre, tanto que até os tiros que raspam em seu couro ou até mesmo perfuram a sua carne parecem causar efeito nenhum. Você poderia culpar as miras tua e dos outros mas – para o infortúnio de todos vocês – a verdade é que as habilidades da Besta desafiam até os limites da realidade, tanto que antes que você possa terminar a tua linha de pensamento, a Besta salta sobre a corredeira que interrompe a estrada, de forma que um poderia até chamar de elegante se não fosse pela sua aparência perturbadora.
– Deixe comigo!
A Thaís grita ao parar de correr, agachando-se sobre um joelho e depois mirando com o seu rifle de longa distância. De forma quase surreal, três tiros são disparados em seguida, precisamente acertando a Besta em meio ao salto e arruinando a sua aterrisagem, porém antes que um quarto tiro seja disparado, a Besta – que agora rosna em agonia – agilmente muda o seu curso e “mergulha” para dentro da floresta, desaparecendo dentre a escuridão.
– Por aqui!
Lord Édouard aponta para uma ponte à tua próxima direita no fim deste trecho da estrada. Você, ele e o Jorge imediatamente cruzam para o outro lado com a Thaís já à apenas alguns passos atrás e encurtando a distância ainda mais, logo atravessando juntos o trecho em que a Besta aterrizou e, por fim, fazendo uma curva fechada para a direita.
Vocês entram na floresta exatamente pelo mesmo caminho que a ela. Seguindo então os rastros de sangue no chão e nos troncos das árvores cuidadosamente, o Lord é surpreendido pela Besta ao ser derrubado no chão. Enquanto ele instintivamente usando o seu rifle para evitar que ela crave os seus dentes e garras em seu crânio, – não querendo atirar no Lord por acidente – Jorge chuta a besta no meio da face e uma vez que ela sai de cima do Lord, Jorge prepara-se para atirar mas, em uma fração de segundo, a Besta salta para longe da sua mira e em tua direção. Felizmente Lord Édouard atira na barriga dela causando-a a cair aparentemente imóvel sobre você, te derrubando.
Imobilizando pela excruciante dor de ser esmagado pelo peso da Besta você não consegue reagir a tempo quando ela abre a sua boca para te morder, mas felizmente a Thaís acerta um golpe certeiro na lateral da sua cabeça usando a coronha do seu rifle, causando-a tombar para o lado e sair correndo tropeçando para a parte mais funda da floresta, desorientada e com o Jorge e o Lord Édouard atirando em sua direção.
Antes de você se levantar, a Besta parece já ter desaparecido e as balas que voam em sua direção acertam nada além do ar e os troncos das árvores. Parando de atirar, Lord Édouard corre para a direção em que ela foi sem dizer palavra alguma, causando a você, o Jorge e a Thaís a seguirem logo atrás, mas assim que vocês se aproxima de uma área estranhamente bem iluminada e a apenas alguns passos fora da vegetação densa, uivos desesperados ecoam pelo céu, mas contrários aos de um lobo, estes soam muito mais pronunciados e primitivos. E então, assim que as árvores densamente organizadas ficam para trás de vocês e a fonte de luz é revelada, Thaís traduz a sua surpresa – e a de todos – em palavras:
– Meu Deus, o que nos nove infernos é isso?!
Uma verdadeira parede de chamas estende-se perante vocês para além de onde os olhos conseguem ver; árvores e mato reduzidos às cinzas; chamas dançantes e laranjas consumindo tudo o que tocam, desafiando as leis da realidade e o gélido frio; o calor que irradia é forte o bastante para fazer até você – que, entre o grupo, é o que está mais longe das chamas – suar em desconforto. Por mais que os uivos pararam assim que você e os outros saíram da floresta, apenas agora, com um latido escapando por entre um rosnar contínuo, que você percebe a presença da Besta.
Com a luz da queimada é possível ver todos os ferimentos de balas em seu corpo escorrendo com sangue; o seu olho esquerdo está fechado – provavelmente devido o golpe da Thaís –; uma mistura de sangue e espuma acumula-se nos pelos em volta da sua boca quase secando assim que entra em contato com o ar quente e, finalmente, ela não só manca mas também treme quando movendo, apresentando grande dificuldades em manter-se de pé e atenta a vocês.
Verdade seja dita, você quase sente pena da Besta ao vê-la assim, porém carregadas de ódio e vingança, as palavras do Lord Édouard ordenam o exato oposto de você – e dos outros –:
– Rápido! Espalhem-se em um círculo, não podemos deixá-la escapar.
Fazendo como instruídos – por mais que relutantes –, você, o Jorge e a Thaís apontam as suas armas em direção à Besta e junto do Lord Édouard formam um meio círculo de maneira a cercá-la contra a parede de fogo. Algo que quase escapa da tua percepção é que mesmo estando em posição, ambos o Jorge e a Thaís olham para as chamas e para o Lord repentinamente, quase como se soubessem de algo, algo que requer a atenção do Lord mais do que a própria Besta… Você, por outro lado, permanece imóvel tanto por pena quanto por medo dela. Andando para frente, o Lord Édouard comanda:
– Comecem a fechar o círculo! Ao meu sinal, abram fogo.
Com cada passo que vocês dão para frente, a Besta dá um para trás. Por mais que continue rosnando, ela não parece decidida a atacar, invés, ela apenas olha para as armas com medo e solta grunhidos e baixos choros conforme as chamas atrás dela começam a queimar a sua pelagem marrom-avermelhada.
Um único tiro é disparado sem anúncio e de repente a execução começa: A fera “quica” entre as chamas e as balas, chorando descontroladamente enquanto sangue jorra de um lado do seu corpo a mesmo tempo que o outro é gradualmente dissolvido pelas chamas; Todos vocês – especialmente o Lord – atiram na máxima velocidade que as suas armas permitem mas os meros segundos que leva para esvaziar os seus cartuchos, parecem durar horas agonizantes, até que finalmente, os altos gritos dos tiros são substituídos pelos leves “cliques” de armas vazias e os perturbadores choros, são substituídos por um olhar silencioso vindo da Besta – enrolada no chão –, vazio de vida para sempre.
– “… me-me ajude…”
Um murmúrio escapa da tua boca em um reflexo inconsciente do teu cérebro tentando entender esse olhar. Mas os outros parecem não o ter ouvido, e por bom motivo: A Thaís e o Jorge olham um para o outro em silêncio, como se quisessem se sentir felizes por salvar a vila mas não conseguem, invés, parecem se sentir “culpados” como se tivessem feito algo de muito errado; O Lord Édouard por outro lado, remove o cartucho vazio da sua arma, superficialmente impassivo, mas algo dentro de você percebe uma profunda melancolia vinda da sua postura… Uma melancolia típica de quem sabe que uma vida perdida não pode ser retornada até mesmo pelo fim de outra. E então, têm você de novo, ou melhor, parte de você: Há um minúsculo sentimento no teu coração de realização… De vingança.
– “… Vin-Vingança?”
Calafrios correm pela tua coluna assim que você se pergunta isso. Uma fração de segundo depois, o som de folhas sendo pisoteados alcança os teus ouvidos e ao virar para trás, um “vulto” branco cai sobre você, segundos antes de alguém gritar:
– Orion!!!
Tudo em seguida se torna um borrão de sentidos: O assovio de balas voando sobre os teus; a tua carne e ossos sendo esmagados entre algo pesado e o chão; um calor líquido espalhando-se da tua boca e um extremo caos de imagens sobrecarregando o teu cérebro – já tomado pela adrenalina – até que um nada gentil e absoluto te envolve.
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