A luz alaranjada do pôr-do-sol reflete na neve e entra pelas janelas inundando o salão principal com uma atmosfera confortante, bem contrastante com as expressões de preocupação nas faces da Thaís e do Jorge.
– Então foi só um pesadelo?
Você balança a tua cabeça duas vezes em confirmação à pergunta do Jorge mas sem dizer palavra alguma depois.
– Sobre…?
Thaís pergunta insatisfeita com a tua resposta – ou melhor, a falta de uma –, causando tenebrosas imagens da Fera desfigurada a piscarem em tua mente. Você move-se um pouco na tua cadeira falhando em esconder a tua inquietação e, após pensar mais, responde:
– Eu… Eu caí em uma corredeira e quase me afoguei…
Uma meia verdade. Por mais que contar a eles a história completa talvez se mostraria útil em descobrir de onde você vem, o teu cérebro se recusa a lembrar daqueles malditos momentos. O que você recordou é uma ilusão, um mero pesadelo, nada daquilo aconteceu de verdade, nada…
A Thaís e o Jorge então trocam olhares como se tivessem encontrado um pedaço perdido de um quebra-cabeça e logo, espontaneamente, Jorge pergunta:
– Você têm certeza disso? Você lembra onde era essa corredeira?
– Si-Sim, mas tudo o que lembro é ter visto algumas árvores por um momento… E depois, eu estava na água… P-Por quê?
Outra meia verdade mas mesmo se você não estivesse surpreso com o súbito interesse deles, o teu cérebro ainda teria escolhido o conforto dela.
– Bom… Quando te encontramos, as suas roupas tavam todas molhadas e foi próximo a uma corredeira…
– Isso significa que não foi só um pesadelo… Foi uma memória!
– … E se checarmos que vilas estão no caminho do rio, talvez encontremos a sua casa!
A felicidade nas palavras do Jorge e da Thaís é quase palpável mas você não compartilha dela. Pois se o pesadelo foi mesmo uma memória, então tudo foi real, incluindo a Fera; o massacre; todas as mortes… Até… Até as da Irene e do bebê!
No exato momento em que você está prestes a entrar em um ataque de pânico, o barulho de uma garrafa de vidro quebrando do lado de fora da taverna te assusta. Thaís olha pela janela sem muito pensar e então volta para o Jorge, em ton surpresa:
– A feira! Quase que nos esquecemos.
– Ah, ainda temos que terminar de preparar o banquete!
Com o fim das palavras do seu marido, ela então olha para você e por um segundo parece considerar algo, até que:
– Orion, você lembra o que aconteceu ontem anoite?
– Hmm… Nós fomos atacados pela Besta… Havia uma parede de fogo ou alguma coisa assim e… e… E-Eu não consigo lembrar… O que aconteceu?!
Jorge cruza os seus braços e depois pergunta para a Thaís:
– Que você tá pensando?
Ela gesticula como se ainda estivesse tentando decidir alguma coisa, mas rapidamente vira para você e pergunta:
– Como você tá se sentindo? Você tá bem?
– Hmm… Sim, eu acho que sim.
Você responde confuso, não entendendo o porquê da pergunta tão aleatória.
– Ok. Hmm… Curta longa história, hoje a Lady Marie decidiu lançar uma feira em celebração da morte da Besta e nós nos voluntariamos para preparar o banquete, mas… Meio que a feira já vai começar e nós ainda não terminamos as preparações. Então vamos deixar essa conversa para depois, tudo bem?
Você sente-se sobrecarregado por todas as perguntas que as palavras dela provocaram dentro da tua mente. Mas ainda assim, você balança a tua cabeça em confirmação.
– Ae! Vá se arrumar então, a gente sai em meia hora.
Você obedece, levantando-se e seguindo em direção às escadas enquanto ela e o Jorge seguem para a cozinha. Parando no meio dos degraus para o andar de cima, você escuta os dois conversarem em voz baixa:
– Amor, êcov met azetrec euq ele át meb? O otiej omoc ele avat odnatirg… Ue men oreuq ranigami euq soledasep ele avat odnet…
– Hmm… E es ele uorbmel ed amugla asioc omsem? Ogla euq uecetnoca moc ele uo, roip… Ogla euq ele zef…
Dado como estão falando em sua língua nativa, você não consegue entender sobre o que se trata. Logo, decide simplesmente combater tua própria curiosidade e voltar a seguir para o teu quarto, já se dispersando em outros pensamentos.
Lá, enquanto se troca, você se pregunta como a Thaís e o Jorge acham roupas que te cabem tão bem. obviamente elas não podem ser do Jorge dado o quão pequenas são, será que as compraram então? Se for o caso, como vocês os pagará de volta? Você não lembra – melhor, não quer lembrar – bastante do teu passado até mesmo para saber de onde vem, muito menos se tinha/têm dinheiro ou não... Mas e se você realmente não puder pagar?
Um pico de ansiedade anuncia-se por um momento, mas logo é ignorado pela tua atenção que agora atrai-se pelo teu reflexo no espelho, mais precisamente, das tuas mãos que parecem tremer enquanto abotoam a tua camisa. Você as levanta para a mesma altura do teu rosto e nota como realmente estão tremendo…
– Estranho…
Sílabas escapam da tua boca, um tanto que hesitantes. Por algum motivo, elas realçam algo ainda mais estranho: Uma desconfortável sensação em teu peito, o teu coração está palpitando. Inesperadamente, ele começa a acelerar, como se os teus instintos de sobrevivência foram provocados, você olha de volta para o espelho em desespero mas invés de encontrar o teu reflexo novamente você encontra o da Fera dos teus pesadelos: A sua pele queimada possui rachaduras em alguns lugares, vazando uma secreção negra e grossa que pode muito bem ser o seu sangue; os seus lábios estão puxados para trás expondo dentes afiados e amarelados como se estivesse rosnando, mas nenhum som alcança os teus ouvidos; os seus malditos olhos âmbar miram diretamente os teus de forma a te fazer desejar que estivesse escutando o rosnado invés. Um sentimento de agressão, selvagem e quase palpável acerta a tua alma tão brutalmente que você tropeça para trás, provocando outro – e iminente – surto mental.
– Orion! Você tá pronto? Nós tamos te esperando.
Um chamado da Thaís ecoa pelo corredor te impedindo de se aprofundar em loucura ainda mais. Você olha para a porta e para o reflexo da Fera repetidamente tentando se decidir até se levantar agilmente, pegando o casaco de cima da cama atrás de você e sair correndo para o andar de baixo, esforçando-se para não olhar para trás.
– Eu espero que você esteja com muita fome porque o banquete de hoje tá maravilhoso!
Jorge diz com entusiasmo e orgulho em seus olhos enquanto você se reúne a ele e a Thaís, que nota a expressão assustada com a qual você olha os ajudantes carregando bandejas e mais bandejas de comida da cozinha para fora:
– Aconteceu alguma coisa Orion? – Nã-Não não… Hmm… Vamos?
A tua resposta causa os dois a trocarem olhares preocupados mas logo concordam e então vocês seguem para a feira. Mas, antes de pisar fora da taverna você olha para trás uma última vez, sem eles perceberem, apenas para ver os olhos da Fera em todas as superfícies refletivas, todos ainda te encarando.
Comments (0)
See all