Ivan soube o momento exato em que Aleksey os encontrou na arquibancada.
Era difícil admitir, mas ver as Entropias em ação era como ouvir uma sinfonia: começava pequeno, tímido, como se a magia estivesse pedindo permissão para se unir a algo muito maior. E em algum momento que Ivan nunca conseguia determinar, os elementos se entrelaçavam até explodirem em uma combinação de tons graves e agudos, todos obedecendo a mão firme e precisa da alquimista que os controlava. Sempre parecia um milagre que corpos tão pequenos pudessem conter tanta energia, e Ivan sempre se lembrava das criaturas improváveis que povoavam as histórias que seu pai lhe contava antes de dormir. Não era algo elegante como a magia que ele praticava, mas provocava um sentimento indescritível, uma atração primitiva que o impedia de desviar o olhar.
Aleksey saltou da última árvore com a leveza de uma pluma e Ivan percebeu que ele estava tentando aquietar a sinfonia que havia começado. Para tudo havia um preço, e um dos riscos que as Entropias corriam era esse: o risco de não voltar, de se unir com os elementos, de se deixar consumir em chamas ou desaparecer no ar. A recuperação era tão importante quanto o início, e Ivan observou enquanto Aleksey retornava aos seus sentidos e trocava os instrumentos que iria precisar para a próxima etapa.
Aquela expressão perdida era sua velha conhecida, tanto em Aleksey quanto em Morena, o breve momento em que voltavam a reconhecer os arredores, a sobrecarga de informações atordoando os sentidos. O rapaz na arena virou o rosto na direção da plateia e Ivan prendeu a respiração, implorando baixinho para o universo para não deixar que Aleksey os encontrasse.
Já bastava a palhaçada de uma prova de titulação aparentemente só ter um “vencedor”, como se fosse uma gincana e não uma avaliação sobre o domínio de magia dos indivíduos. Já bastava que fosse uma prova feita justamente para ser difícil para Aleksey e todo o estresse que essa percepção traria. Aleksey não merecia descobrir que seu tio estava ali, assistindo de camarote ao desastre inevitável que causaria na vida do sobrinho.
Só que isso era impossível, Ivan havia escolhido o lugar justamente para ser visto. É claro que Yakov viria se sentar logo ao seu lado, de propósito, sabendo que Aleksey procuraria por Ivan na plateia em algum momento da prova. Ninguém sabia como torturar Aleksey melhor do que Yakov, e Ivan apertou os punhos, sentindo os olhos arderem. Queria poder fazer alguma coisa, qualquer coisa, para trazer um minuto que fosse de paz para o melhor amigo.
Quando Aleksey os encontrou, arregalou os olhos e depois os estreitou, reações que só alguém que o conhecesse muito bem e estivesse prestando muita atenção conseguiria identificar. Ivan ajustou seus óculos para enxergá-lo melhor, desejando internamente que pudesse fazer Yakov desaparecer naquele instante. Aleksey desviou o rosto para o desafio à sua frente, fechando os punhos com força, e Ivan teve certeza de que seu amigo estava furioso.
— Você sabe em que seção sua esposa está? — Yakov perguntou ao seu lado, com as pernas cruzadas, olhando pelos binóculos para outro ponto da arena, sem prestar atenção no sobrinho.
— Metal, mais ou menos na metade.
Ivan sequer desviou o olhar de Aleksey. Precisava de alguma confirmação de que o feitiço havia dado certo e que ele não estava sentindo dor, porque iria precisar muito da perna quando passasse da água. Aleksey alternou o peso entre as pernas enquanto avaliava o próximo desafio, e Ivan prendeu a respiração, mas, fora isso, tudo parecia bem. Deviam ter combinado algum sinal para se comunicarem, mas agora já era tarde.
— Como… Quê? — O tio de Aleksey soou confuso. — Você não está nem olhando.
— Eu não preciso olhar para saber onde Morena está. — Ivan se virou para o homem ao seu lado com uma sobrancelha levantada, deleitando-se com a confusão de Yakov. — Se você tivesse estudado para chegar no grau de Extraordinário, saberia como.
Tamara levou uma mão à boca para abafar uma risada. Yakov ficou amuado, em silêncio, aturdido. Com certeza não esperava isso de Ivan, que sempre o tratara com uma cortesia fria, não diferente de como tratava todo mundo que não conhecia muito bem. Mal sabia Yakov que era só porque Morena o havia proibido expressamente de conversar com o Conde Barabash, com medo do desastre que poderia acontecer, caso Ivan fosse deixado sem supervisão ao lado do homem.
Ivan não tinha culpa dessa vez, ou ao menos era essa a desculpa que estava usando para si. Yakov havia sentado ao seu lado por livre e espontânea vontade, e agora era sua responsabilidade mostrar que toda ação tinha uma reação contrária, de igual intensidade. Princípio básico da alquimia.
— Eu achei que todo mundo conseguisse sentir a magia dos outros se quisesse — comentou Tamara com uma falsa inocência e Ivan quase gargalhou ao ver Yakov ficar vermelho.
Ivan tinha uma teoria de que Yakov era uma das maiores farsas que a Azote já havia produzido: ele podia ser de uma família milenar de alquimistas, descendente das Grandes Imperadoras, mas a aptidão por magia não se importava com linhagens, nobreza ou sangue. Ivan tinha quase certeza de que Yakov não tinha um pingo de habilidade mágica que prestasse e só se graduou como Alquimista por causa da influência da família. Era muito estranho que ele tivesse saído direto da academia para a Guarda Platina, se jogando num barco e atravessando meio mundo para servir numa colônia em outro continente. Uma pessoa titulada sequer era aceita num trabalho como esse, pois era um claro desperdício dos recursos do país – e, além disso, ninguém confiava em Alquimistas o suficiente para querê-las caminhando em territórios extremamente voláteis como os que conquistavam. E não era só isso: Yakov havia se tornado General rapidamente, ostentando meia dúzia de medalhas em seu uniforme que nenhum Alquimista que tivesse o mínimo de respeito próprio usaria com orgulho.
A explicação era óbvia: Yakov Yulievich não era um Alquimista de fato. Qualquer um poderia ter o treinamento básico de magia, aprender um ou dois truques de festas para fingir que tinha o domínio real da arte, e esse era o caso do tio de Aleksey.
— Eu achei que todo mundo soubesse que as pessoas percebem magia de formas diferentes — respondeu Yakov, por fim, quase fuzilando Tamara com os olhos.
— Bem, então seria bom se você prestasse atenção na arena, já que precisa de ajuda para saber onde os outros competidores estão — retrucou Tamara, cruzando os braços.
Ivan escondeu um sorriso. Tamara podia não ser tão próxima de Aleksey quanto ele ou Morena, mas Aleksey era uma presença constante na vida dela, o suficiente para que ela desenvolvesse o mínimo de afeição. Tamara ficava com raiva silenciosamente, com alfinetadas e comentários sarcásticos, e se seu tom incisivo fosse alguma indicação, ela estava furiosa. Quando Morena soubesse que ele e Tamara estavam falando com Yakov sem a supervisão de um adulto responsável, ela iria enlouquecer. Ele poderia até tentar impedir Tamara, mas para quê? Era bom demais deixar Yakov desconfortável. Além disso, ele não dera sinal algum de que reconhecera que Tamara era a irmã mais nova de Morena.
O tio de Aleksey revirou os olhos e aprumou o próprio uniforme, passando uma mão para limpar uma das medalhas breguíssimas, tentando recuperar alguma dignidade depois de ser humilhado por uma menina de quinze anos.
— Estive conversando com seu orientador, Ivan — Yakov comentou casualmente, ignorando o comentário de Tamara. — Achei interessante sua tese de que pode ser possível redistribuir os efeitos colaterais de magia. Nós temos uma pesquisa avançando nessa área na Platina.
Ivan retorceu o nariz, voltando os olhos para a arena, ajustando o foco dos óculos para conseguir enxergar com mais clareza o que Aleksey fazia dentro do lago. Poucas coisas o irritavam mais do que o exército, e Yakov parecia incapaz de ficar mais de vinte minutos sem mencionar sua afiliação. Nada de bom vinha deles, nunca, e começou a pensar se não deveria mudar radicalmente sua linha de pesquisa. Talvez, sei lá, virar Alquimista Extraordinário baseando sua tese na chaleira que ferve sozinha que ele fizera para sua mãe como presente de Dia de Reis no ano anterior.
— Interessante — Ivan falou em um tom monótono.
Yakov falou mais alguma coisa que ele não processou, e Ivan só concordou com a cabeça. Na arena, Aleksey nadara até o fundo do lago, ficando de pé como se estivesse do lado de fora, a roupa flutuando ao seu redor. Aquilo era muito mais interessante do que qualquer coisa que Yakov poderia dizer e Ivan apoiou uma mão no cotovelo, assistindo enquanto Aleksey colocava as mãos na cintura, pensativo. Mesmo com o rosto encoberto pela água, em meio à turbidez, a beleza de Aleksey ficava evidente. Os olhos mais claros embaixo da água, o verde ressaltando, e os cabelos castanho-claros como uma auréola.
— Bom, foi muito bom conversar com vocês — falou Yakov por fim, ficando de pé e arrumando sua roupa pela décima quinta vez. — Mas por mais que seja divertido observar essas brincadeiras de criança, tenho assuntos urgentes para resolver.
— Ah, longe de nós te atrapalharmos — respondeu Ivan polidamente, querendo que Yakov fosse embora logo e o deixasse prestar atenção em Aleksey em paz.
Ele olhou para Ivan uma última vez, colocando as mãos no bolso, pensativo.
— Quando terminar, vá até a sala da Reitora. Trouxe um convite do Imperador que tenho certeza que irá te interessar.
— Certo…?
Ivan observou enquanto o homem tentava atravessar o amontoado de adolescentes que se aglomerava nas arquibancadas, intrigado. Um convite? Não devia ser nada de bom, vindo de Yakov. Ivan não registrara uma palavra sequer do que ele havia dito antes e teve a sensação de que seria relevante para o entendimento da conversa, mas não se importava o suficiente para se esforçar para lembrar.
— Já foi tarde — resmungou Tamara baixinho.
Segurou um sorriso e voltou sua atenção à prova. Aleksey estava testando empurrar uma das pedras com um pé, sem sucesso, e Ivan esperava que ele tivesse noção o suficiente para não forçar a perna. Não era uma prova que exigia muito, e parecia a mais direta das seções que havia observado até agora: era necessário reorganizar algumas pedras com símbolos alquímicos de forma a abrir o caminho para a próxima passagem. O problema é que elas estavam no fundo de um lago cristalino e pareciam ter mais peso do que tinham fora da água. Ao seu lado, Tamara franzia a testa, tentando enxergar pelos binóculos que usava o que acontecia em cada seção do labirinto da prova. Ivan se inclinou mais para a frente, cutucando sua cunhada com o cotovelo.
— Você consegue perceber o que Aleksey está fazendo? — perguntou baixinho, e Tamara inclinou a cabeça para olhar para a seção da água, se concentrando.
— Hum, ele está testando que tipo de magia tem nas pedras?
— Sim, mas lembra de Nara? Como ela estava se mantendo lá embaixo?
Tamara o olhou confusa por alguns instantes, mas quando voltou a olhar para Aleksey pareceu entender.
— Ela estava lá embaixo usando magia de água. Ele está usando ar. — Tamara levou uma mão ao queixo, pensativa. — Vem cá, quem é especialista em madeira cria ar que nem as árvores? Eu posso dizer que tecnicamente é como se Lyosha fosse uma árvore humana?
Ivan gargalhou involuntariamente, e algumas pessoas se viraram. Ivan logo escondeu o rosto para não destruir a reputação de Professor Assustador que tentava construir entre os alunos, abafando a risada com o casaco.
— Isso até pode acontecer — respondeu ele, tentando ficar sério, mas os cantos dos lábios insistiam em se curvar para cima. — Tem uma história de uma tia-avó dele que se cansou de tudo e foi para o meio do mato virar árvore porque era melhor do que ter que lidar com tanta gente insuportável na corte.
— Eu mal posso esperar para ser uma babushka e poder fazer isso e atribuírem à insanidade.
— Ser uma babushka é um estado de espírito, não tem nada a ver com a idade.
— Eu não posso ser uma babushka com quinze anos, Vanya.
— Você pode ser qualquer coisa que quiser se apenas se esforçar o suficiente.
— Ah, não, lá vem a palestrinha de novo.
— Eu estava tentando te ensinar uma lição de vida profunda e você me perguntou de árvores humanas. Foi você que pediu.
Tamara retrucou, mas Ivan não conseguiu entender nada porque a tatuagem no seu tórax começou a arder, a vista se turvando um pouco. Levou uma mão à sua lateral esquerda, procurando Morena com o olhar. O que estava acontecendo? Ele não havia sentido nenhuma oscilação brusca de magia, e ela só estava testando a seção para entender o desafio que faria – e que ele não fazia ideia do que era, porque não prestou atenção quando Hadassa passou, mais preocupado com Aleksey.
Morena estava sentada no meio da seção de metal, a respiração entrecortada, uma mão na lateral direita, onde a tatuagem que completava a dele estava escondida. Teve a sensação mais esquisita do mundo, como se estivesse em vários lugares ao mesmo tempo, e sentiu os dedos da sua cunhada fecharem em seu braço com força.
— Ivan? Ivan? — Tamara o sacudiu. — Você está bem?
Ivan balançou a cabeça, respirando fundo para se concentrar e controlar o pico de energia súbita que parecia prestes a explodir suas veias. O que estava acontecendo? De repente, ficou com medo de terem descoberto o que os dois tinham feito, de um feitiço na seção identificar o usuário de magia e só permitir quem tivesse uma frequência específica. A magia de Morena e a de Ivan eram a mesma agora, algo completamente diferente dos registros que tinham feito quando se graduaram como Alquimistas. E se isso a impedisse de se graduar como Extraordinária? E se uma ideia alucinada que ele tivera depois de três dias sem dormir direito, tentando traduzir um livro que havia surrupiado da biblioteca, fosse o fator que impedisse sua esposa de conseguir o que ela tanto almejava?
— Ivan? — Tamara perguntou mais uma vez e ele se desvencilhou da cunhada suavemente.
— Não é nada, eu só fiquei preocupado com a sua irmã — respondeu ele e ela arregalou os olhos, como se também tivesse esquecido de acompanhá-la.
— Tem alguma coisa errada — constatou Tamara, e Ivan concordou. — E Aleksey está terminando a parte da água.
Ivan franziu a testa, ficando ainda mais ansioso. Morena sequer tinha passado da segunda seção, e Aleksey estava indo para a terceira, será – será que ela não iria passar, por culpa dele?
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