Morena sentiu a boca seca enquanto tentava retomar o controle da sua magia, ciente de que estava encalhada na segunda seção, provavelmente a mais atrasada entre todos os concorrentes, e que suas chances de se titular naquele ano diminuíam exponencialmente a cada minuto que perdia. No entanto, não havia o que fazer além de esperar – se estivesse certa, Aleksey apareceria a qualquer instante, e ela conseguiria prosseguir com a prova.
Ainda sentia os vestígios da energia pungente do feitiço que Hadassa fizera para atravessar a seção sem ajuda de outro ser vivo, a magia dela se recolhendo em repulsa por aquela vibração que reconhecia como perigosa. Enquanto o resíduo não se dissipasse, não poderia fazer muita coisa.
Havia uma história sobre isso, contada pelas suas tias em noites estreladas nas semanas de verão que passara com a família do pai quando era pequena, e era parte do segredo da magia que corria em Tantalum. Duas irmãs, um rei ambicioso e uma guerra, uma história complexa que, como grande parte das histórias bashari que lhe contavam, desaparecera de sua mente no momento em que pisara de volta em Argon. Só lhe restava uma vaga memória, e uma cautela de origem confusa.
Levou uma mão ao lado direito do tórax, onde sua tatuagem latejava, quente, incômoda. Morena torceu internamente para que Ivan não tivesse sentido nada – seria complicado demais explicar para ele o que estava acontecendo e, ao contrário de Aleksey, ele nunca fizera muitas perguntas sobre as peculiaridades da magia dela. Se tivesse sorte, ele formularia uma teoria sozinho e ela não precisaria nem negar nem confirmar nada para o marido.
As hastes ao seu redor vibraram e Morena se levantou, apoiando-se em uma delas. Aleksey não demoraria muito tempo para chegar até lá se seguisse a espiral enquanto testava as saliências do chão para entender o que a prova queria dele, fazendo-as cantar. Logo os sons desconexos começaram a se encaixar e, em alguns minutos, Aleksey atravessava a porta que Morena não conseguira abrir.
— O que você está fazendo aqui? — ele perguntou imediatamente, levantando as mãos em posição de defesa.
— Você sabe mesmo fazer as pessoas se sentirem acolhidas, Lyosha — ironizou ela, reclinada contra a haste, os braços cruzados. — Como assim, o que estou fazendo aqui? Estou te esperando, claro.
— Ah, não. É uma ilusão, não é? Eu não tenho paciência nem tempo para lidar com isso. Xô. Desapareça. — Ele fez um gesto com a mão e Morena riu.
— Eu não sou uma ilusão e se fosse, não ia desaparecer só porque você mandou! — Ela fingiu ultraje. — Não é assim que funciona.
Aleksey olhou para ela novamente, franzindo a testa em concentração, e se aproximou, encostando um dedo na ponta de seu nariz para se certificar de que ela era real. Morena mordeu o lábio inferior para não gargalhar, porque só pioraria a situação. O toque de Aleksey era morno, os dedos ainda reluzindo com a magia recém-utilizada. Por um breve instante, seus olhares se encontraram, e Aleksey rapidamente desviou.
— É você mesmo — falou ele, com certo alívio, as bochechas coradas. Depois, voltou a ficar tenso. — Eu disse que não precisava da sua ajuda.
— Eu não estou aqui pra te ajudar, presta atenção. Se eu comecei no fogo e você não me encontrou em nenhum dos outros elementos, esse obviamente é meu segundo. — Ela levantou uma das mãos, contando nos dedos. — E, pelas minhas contas, seu terceiro. Pra que eu ia te ajudar se você claramente está na minha frente?
— Por que você ainda está aqui então? — Ele cruzou os braços, movendo o peso de uma perna para a outra.
Era um gesto sutil, mas que falava muito vindo de Aleksey. Com certeza a perna dele estava incomodando, mas ele nunca iria admitir. Não para ela, pelo menos.
— Você se lembra da prova de titulação de Alquimistas? — Morena falou, evitando olhar para as coxas grossas de Aleksey por tempo demais. — A última etapa dela, mais especificamente.
— A que a gente teve que fazer amarrado um no outro enquanto tentava equilibrar a nossa magia para construir uma ponte e atravessar um fosso que só a deusa sabe o que tinha no fundo? Como eu iria esquecer disso?
— A boa notícia é que dessa vez não precisamos ficar amarrados, nem tem um fosso embaixo da gente! — Ela exclamou, abrindo um sorriso.
— Você tá brincando.
— Você pode testar se quiser. Nem eu nem você temos para onde ir se você não colaborar, então fique à vontade. — Ela deu de ombros e voltou a se recostar languidamente na haste.
O desafio daquela seção até era simples, depois que ela a compreendeu: o som era um dos subdomínios do Metal, e o caminho espiral em que estavam era um instrumento musical mágico gigante. As hastes de metal formavam um labirinto com uma sequência de portões que se abriam com uma combinação específica de notas, que eram acionadas com a frequência correta de magia, na velocidade correta, no lugar correto. Se fosse só a magia, seria fácil, mas assim como eram necessárias duas mãos para tocar a maior parte dos instrumentos, ali eram necessários dois pares de pés para acionar a parte mecânica. Morena havia identificado pelo menos dois tipos de movimentos que precisavam ser feitos: os que abriam e fechavam portas, e os que as mantinham abertas. Ela não havia conseguido manter mais de duas portas abertas ao mesmo tempo, muito menos portas adjacentes. Suspeitava que seria necessário dar a volta na espiral inteira para abrir um caminho e atravessar para a prova da água.
Aleksey testou alguns botões no meio, conseguindo abrir só a porta por onde tinha acabado de passar. Desapareceu por ela por alguns minutos e Morena sentou-se no chão, abraçando as próprias pernas, encostando a testa nos joelhos, sua magia um pouco mais calma. Ainda estava na mesma posição quando o rapaz retornou, com uma mão na cintura e uma expressão de quem estava prestes a começar uma guerra.
— Vem cá, se precisam de duas pessoas, como é que a Hadassa passou? — Aleksey questionou e /Morena virou o rosto em sua direção, com um sorriso. — Porque eu tenho certeza de que Nara não chegou aqui antes de você.
— Você se esqueceu de dois detalhes — respondeu ela, levantando a cabeça e cruzando as pernas.
Não era burro, o seu amigo, e ele olhou para o outro lado do círculo, para a pilha de pedras completamente destoante do resto do cenário da prova que se amontoava no extremo oposto de onde ela estava sentada. Aleksey se aproximou dos restos do Golem de Hadassa e encostou em uma das pedras, sentindo a magia diferente que aquelas criaturas dissipavam depois que eram desfeitas. Seu sorriso se abriu lentamente enquanto juntava os pontos e, por fim, ele soltou uma gargalhada.
— Eu sempre me esqueço que ela consegue fazer esse tipo de coisa. — Aleksey pareceu se divertir, retornando para perto de Morena.
— Que é exatamente o que a gente quer que aconteça, então… — Morena deu de ombros, seu coração se acelerando subitamente.
— E eu também esqueço o que acontece com você — acrescentou Aleksey e estendeu a mão para ajudá-la a se levantar. Ela aceitou de bom grado, se apoiando no ombro dele.
— O que é exatamente o que os bashari querem que aconteça, então… — Ela deu de ombros novamente, com um sorriso, e ele riu mais uma vez.
— Você sabe que isso não ajuda em nada com os boatos de que você é um demônio de fogo, né? — ele falou, segurando-a pela cintura, e os dois sorriram de forma cúmplice.
— Se alguém que estuda na Azote ainda acredita nas histórias absurdas que as babushki contam sobre como foi uma guerra dos demônios de fogo contra os demônios de terra que gerou o deserto em Tantalum, a pessoa deveria ser expulsa imediatamente.
Aleksey gargalhou mais uma vez, de forma límpida e clara, e Morena encostou a cabeça no ombro dele. Ela gostava tanto de ouvi-lo rir, gostava tanto de vê-lo feliz. Era um som cada vez mais difícil de ouvir, principalmente quando estavam só os dois.
— Você está bem? — Aleksey levantou o rosto dela usando dois dedos embaixo do seu queixo, sem conseguir esconder seu sorriso. — Eu não acredito que Hadassa fez isso com você, nunca achei que ela fosse capaz. Ela subiu demais no meu conceito agora.
Morena sorriu, sentindo orgulho de Hadassa. Era necessária muita habilidade para fazer algo desengonçado como um Golem fazer os movimentos elegantes que aquela prova exigia e só isso seria o suficiente para Morena dar o título de Extraordinária para Hadassa. Mesmo que a tivesse prejudicado, ela não se importava. A excelência de alguém de Mièdz era excelência dela, a excelência de um deles era a excelência de todo o seu povo.
— Eu vou escolher ignorar a alegria que você está sentindo por alguém ter me sacaneado de propósito pelo bem da nossa amizade — falou Morena com falso ultraje e Aleksey gargalhou novamente, apertando-a mais contra si num pedido de desculpas tão falso quanto a ofensa que ela fingia sentir. — E eu estou melhorando, a energia do Golem está se dissipando. Mas quanto mais rápido sairmos daqui, melhor.
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