Parecia que o coração de Aleksey havia decidido se alojar permanentemente em sua perna esquerda, mas quando outra porta fechou atrás dele, foi obrigado a acelerar o passo usando o que conseguia juntar de magia para ajudá-lo. Faltava tão pouco. Não podia chegar até ali e simplesmente parar, principalmente por um motivo tão estúpido quanto dor. O último portão começou a se fechar quando ele estava a alguns metros de distância, e Aleksey não pensou duas vezes antes de se jogar, usando o ar ao seu redor para lhe dar um impulso extra.
Despencou na escuridão, colidindo contra o chão com força, mas sem barulho algum. Não havia diferença entre fechar os olhos ou deixá-los abertos, então ele virou de barriga para cima, tentando recuperar o fôlego. A perna parecia estar pegando fogo, a dor subindo pelos quadris e se espalhando pelas costas. E, como se já não bastasse tudo isso, ele ainda conseguia sentir o calor do corpo de Morena contra o seu, o toque quente dos dedos habilidosos em suas costas, as covinhas que apareciam nas bochechas dela toda vez que ela sorria sem precisar de motivo durante a dança.
As palavras de Morena voltaram à sua mente – não compro sua atuação de bom moço – e ele suspirou, levando uma mão à testa. Aleksey podia fingir o quanto quisesse, podia fazer um espetáculo para mostrar como era moralmente superior, mas, no final, ele era tão ruim quanto o seu tio. Era tão ruim quanto a sua mãe, tão ruim quanto todas as gerações de Barabash que vieram antes dele e que nunca ficaram satisfeitos com os territórios cada vez maiores que dominavam, tão ruim quanto a Imperadora cruel e louca que tivera que ser afastada do poder tantos séculos antes. A ambição corria no sangue de suas veias, o desejo por poder, por atenção, por magia, por amor.
Pela sua melhor amiga.
Ele se sentou, dissipando os pensamentos que não o levariam a lugar algum, e massageou a perna machucada devagar. Se não fosse o feitiço de Ivan, provavelmente estaria urrando de dor ou já teria desmaiado, e Aleksey levou uma mão às têmporas, respirando fundo. Precisava se levantar se quisesse ganhar aquela prova e, pelos seus cálculos, era ele que estava mais próximo do fim. Sabia que seu tio estava assistindo de algum lugar da arquibancada e queria ver a expressão de ódio em seu rosto quando visse que, apesar de todo o esforço que fizera para impedi-lo, Aleksey havia ganhado. Seria pouco comparado com tudo o que Yakov o fizera passar nos últimos meses, mas ainda assim seria uma vitória.
Estar rodeado de escuridão era como estar perdido dentro da própria cabeça, e conjurou uma pequena bola de luz para tentar se encontrar. Não fez muita diferença: ele só conseguia ver suas roupas sujas e o chão de terra alaranjada. Esticou a mão para longe e para cima, tentando entender melhor seus arredores, mas era como se estivesse num vácuo, num bolsão dentro do interior do mundo. Não havia nada ao seu redor além da escuridão e, depois de um tempo, a falta de luz começou a escorrer para a bola, como uma fumaça, envolvendo-a preguiçosamente até apagá-la.
Àquela altura da prova, tentar achar o caminho que o tiraria dali era um ato quase automático. Fechou os olhos mais por hábito do que qualquer outra coisa, voltando sua atenção para seu interior, para seus membros, para a terra embaixo de si e a escuridão que o envolvia. Era difícil se concentrar com a perna latejando, mas depois de algumas inspirações longas, sentiu o calor subir pelo seu peito e sua garganta, indicando uma direção. Aleksey se levantou e mancou naquela direção com as mãos esticadas, uma sensação esquisita o dominando. Havia algo de muito errado ali, na diferença de nível entre as provas, na exigência que faziam em cada elemento. A prova de metal fora ridiculamente complexa se comparada com a de água e até mesmo com a de madeira. E essa, então? Ele parecia estar navegando no vazio, como se não existisse mais nada no mundo, e sabia que no departamento não havia mais do que quatro pessoas capazes de manipular o fogo daquela forma – uma delas sendo Morena. O que queriam deles?
Viu a luz primeiro, um pontinho flutuando na escuridão e, conforme se aproximou, conseguiu distinguir Hadassa e Nara de pé ao redor da luminosidade, Hadassa com as mãos na cintura e uma postura de quem estava farta. As duas conversavam, mas era como se a escuridão engolisse todo o som. Só quando pisou na luminosidade que a sensação de estar fora do mundo foi embora e ele pode escutá-las.
— Lyoskha! — exclamou Hadassa ao vê-lo, indo na sua direção afobada. — Ainda bem que você chegou.
— Não me diga que é outra prova que precisa de mais de uma pessoa para passar — falou ele num tom cansado e Nara o olhou com uma expressão confusa.
— Claro que não. É só que…
— Bem-vindo! — Uma vozinha ressoou em sua cabeça e ele olhou para baixo sem compreender de onde vinha.
Era uma bolinha de fogo, como um pedaço de carvão aceso, e apesar de não ter rosto ou perninhas ou bracinhos, parecia estar animada com a atenção. Aleksey franziu a testa, ajoelhando-se para ficar mais próximo da criaturinha. Ele se recordou de todas as histórias que conseguira arrancar de Morena e do pai dela com suas dúvidas e franziu a testa. Al’Saghir. Um elemental de fogo, um excelente guardião, o equivalente ao Golem na cidade do fogo em Tantalum. Que porra os professores queriam que eles fizessem naquela prova? O que eles teriam que provar?
— Obrigado — falou ele e a bolinha brilhou mais forte. — Você pode nos dizer como sair daqui?
— Vai lá, fala pra ele, coisinha — incentivou Hadassa, com um tom de impaciência na voz.
— É bem simples! Se você me der seu coração, eu te ensino a sair daqui. — A voz da criatura soou na cabeça dele enquanto a chama dançava a sua frente. — Se não, só resta a escuridão.
— O quê?
— É isso — Nara falou, sentando-se ao lado de Aleksey com as pernas cruzadas. — Só isso que tem que fazer, dar o coração para esse troço.
— Não sou um troço, por favor respeite este lacaio — reclamou a bolinha de fogo.
Aleksey havia rido quando Rahim, pai de Morena, explicara que Al’Saghirs ganhavam a briga na fofura, mas agora Aleksey via que ele estava certíssimo. Sentiu uma vontade quase irracional de pegar a criaturinha para si e protegê-la da irritação de Nara.
— É obviamente algum tipo de charada — acrescentou Hadassa, parando atrás dos dois com os braços cruzados. — Algo para nos enganar, achando que a prova é mais difícil do que realmente é.
— Por favor, este lacaio não foi feito para enganar ninguém. — A chama vacilou, parecendo chateada. — A prova é o que ela é.
— Eu entrei aqui esperando algo grande, sabe — Nara reclamou. — Achar uma pena de pássaro de fogo? Lutar contra labaredas gigantescas? Eu não esperava escuridão e uma coisinha dessas.
— Quase todas as provas exigiam um elemento secundário, era de se esperar algo desse tipo — Aleksey falou e Nara franziu a testa. Hadassa bateu com o joelho em suas costas e ele olhou para a garota, que fez um gesto para ele ficar quieto.
Hadassa não era tonta, e sabia muito bem que Aleksey passara da última seção e que Nara nunca conseguiria passar sozinha da seção de metal. A prova se encerraria ali para Nara. Aleksey não via motivo algum para esconder dela o que a esperava adiante, mas Hadassa bateu novamente nele com os joelhos, como aviso. Qual era o problema dela?
— Morena passou por aqui, certeza que é uma charada — Hadassa falou rapidamente, impedindo que Nara fizesse mais perguntas. — Como foi que ela passou por aqui, coisinha?
— Este lacaio não conhece nenhuma Morena. — A bolinha flamejou, parecendo incerta. Depois, a chama ficou mais forte. — Não, não conhece mesmo.
— A gente pode fazer uma troca — propôs Nara, estendendo as mãos na direção da chama. Aleksey viu um anel de prata na palma da mão dela. — Algo importante para nós em troca do caminho, que tal?
A chama pareceu incerta novamente, lambendo a palma da mão antes de voltar a seu lugar.
— Eu não posso desobedecer às ordens, senhora. Eu sinto muito. Consigo ver que tem valor, mas não posso aceitar — falou a guardiã, desanimada. — Depois, eles vão contar os corações e se eu não tiver, um, dois, três, quatro, eu vou ter que arrumar outro. E como é que vou arrumar outro coração se não for o de vocês? Não, não posso. Eu não quero ser punido. Um anel não é um coração.
Aleksey levou uma mão ao peito, estudando a criatura à sua frente com cuidado. Hadassa ofereceu uma das lâminas que sempre carregava, na esperança de que fosse um substituto adequado ao seu coração, e Nara sorriu com os lábios apertados, balançando a cabeça.
— Só você para achar que uma espada é um bom substituto para um coração — disse ela, entretida.
— Não é você que fica dizendo que eu tenho um coração de aço? Tá aí a prova de que você está errada.
— Deixa de ser boba, Hadassa.
E o sorriso que as duas trocaram foi suficiente para Aleksey entender o que estava acontecendo ali. Ele olhou para Hadassa de soslaio, um julgamento claro em seu olhar e Hadassa ficou escarlate. Ele não a julgaria por deixar Nara para trás e incapaz de terminar a prova, porque ele faria o mesmo na mesma situação, mas esconder isso dela? Esconder porque tinha medo da reação da outra e de que isso estragasse seja lá o que as duas estavam compartilhando? Era a definição de covardia. Hadassa pareceu entender seu julgamento.
— Lyoshka…
— Não. — Ele levantou um dedo e se virou para a bolinha à sua frente. — Vocês perguntaram o nome dele?
As duas pareceram confusas por um instante e ele suspirou, levando uma mão à testa. Não havia motivo para ficar tão irritado com algo que não tinha nada a ver com ele, mas parecia inevitável. Haviam coisas que deviam ficar bem guardadas, segredos que pertenciam a uma pessoa, e somente a ela. Aquilo ali estava longe de ser o caso. Todo mundo sabia, menos Nara. Era injusto e desrespeitoso.
— Eu preciso fazer tudo aqui? — resmungou ele, seu humor ficando mais sombrio a cada segundo que passava. — Qual o seu nome, lacaio?
— Eu não tenho um nome que sirva para vocês — explicou a bolinha, sua chama vacilante na escuridão. — Sinto muito.
— Não peça desculpas — retrucou Aleksey, estendendo uma mão vazia para a bolinha, que hesitou um pouco antes de pular em sua palma. Ele a trouxe para perto do rosto, as suas colegas se aproximando em conjunto, as três cabeças unidas olhando para a pequena flâmula bruxuleante. — Eu só tenho mais uma pergunta.
— Sim? — A vozinha soou um pouco esperançosa.
— Como foi que a sua irmã passou por aqui?
A bolinha ficou em silêncio por um instante, e ele conseguia sentir a confusão de Nara e Hadassa atrás dele. Pelo menos elas ficaram quietas enquanto o lacaio parecia pensar.
— O coração dela é bem quentinho — o fogo respondeu, por fim. — Bem quentinho, uma delícia. O seu também parece ser bom, eu prometo que não vai doer.
Aleksey encarou a chama, lembrando-se das palavras que Morena havia dito na seção, instantes antes dos dois se desvencilharem.
— Vocês estão falando de Morena? — Hadassa questionou e Aleksey a ignorou.
— Posso te contar um segredo? — Aleksey falou, e a chama se inclinou em sua direção, quase lambendo o seu rosto, numa postura ansiosa. Ele sussurrou: — Se você tem o coração dela, tem o meu.
Aleksey respondeu num tom calmo, mas seu coração parecia o rufar de tambores no peito. De repente, só conseguia pensar em Ivan, na arquibancada. Será que ele havia terminado a geringonça que inventara e conseguia ouvir o que estava sendo dito ali? Será que podia vê-los, do lado de fora? Se Ivan ouvisse o que Aleksey tinha a confessar, ficaria remoendo as palavras para sempre, dissecando todo e qualquer significado que poderiam ter, e, por fim, chegando a conclusões corretas, como ele sempre fazia.
Conclusões que Aleksey nunca, jamais, gostaria que ele soubesse.
Se havia algo que era só dele, era aquele segredo. Ele pouco se importava se Nara e Hadassa ouvissem e entendessem o que ele estava dizendo, o problema era Ivan. Ivan, Ivan, Ivan. Seu coração parecia bater no ritmo do nome, a mente incapaz de pensar em qualquer outra coisa que não fossem aqueles olhos escuros e incisivos, fascinados com qualquer mistério que se deparava. Não conseguia sequer imaginar o que Ivan faria se soubesse o que Aleksey sentia pela esposa do amigo. Ele iria entender tudo errado. Ou entenderia tudo certo, Aleksey não sabia qual das possibilidades era pior.
Era tudo muito confuso.
— Mas não é só o dela, é? — A voz da criaturinha pareceu soar muito mais baixa, como se estivesse falando só com ele. — Não, não é. Eu não posso te deixar passar até ter seu coração inteiro.
Aleksey engoliu em seco, sentindo o turbilhão de sentimentos travando na sua garganta. Que tipo de habilidade aquela prova queria testar, se não a disposição de se humilhar publicamente por poder? Que direito aquela coisinha na sua mão tinha aos seus sentimentos, aos seus pensamentos mais profundos, a coisas que nem ele entendia direito? Será que Morena tinha passado por um terço dessa dificuldade, será que teve que contar um segredo tão bem guardado que tirá-lo do peito doía?
Ele podia desistir ali, naquele instante. Haveria uma prova no próximo ano, não tinha necessidade de obter o título agora. Todos eles estavam fazendo a prova um ano adiantado de qualquer forma. Não iriam perder nada se não conseguissem chegar ao final. Só que Aleksey lembrou-se do sorriso maldoso do tio, de como sua desistência só iria trazer satisfação a Yakov e, movido por puro despeito, falou, sua voz falhando:
— Existe outro. — Aleksey limpou a garganta, considerando as palavras devagar, cada uma um peso profundo em sua língua. Cada uma, uma sentença. — E você consegue achar quem é se procurar no coração de sua irmã.
A bolinha pareceu considerar a declaração, ficando praticamente imóvel. Então, brilhou mais forte, parecendo alegre.
— Eu sabia que seu coração era quentinho!
E depois de um clarão que o cegou por alguns instantes, Aleksey conseguiu ver o caminho de chamas serpenteando até o centro da arena, onde a última prova o esperava. Hadassa e Nara não estavam em lugar nenhum por perto, e ele suspirou. Hadassa certamente não teria nem a coragem nem a ambição para contar um segredo ao lacaio, Nara provavelmente teria vergonha de fazê-lo na frente de Hadassa. Morena estava certa: nenhuma das duas passaria dali.
Só que, enquanto seguia pelo caminho tortuoso, controlando sua magia para que o fogo não o consumisse, só conseguia pensar em uma coisa: qual era o segredo que Morena havia entregado?
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CRÉDITOS
Autora: Isabelle Morais
Edição: Marina Orli e Val Alves
Preparação: Laura Pohl
Revisão: Lavínia Rocha
Diagramação: Val Alves
Título tipografado: Vitor Castrillo
Ilustração: Júpiter Figueiredo
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