Aviso: Essa obra de ficção contém situações de abuso e tortura psicológica, menção a violência física, sintomas relacionados a depressão e ansiedade.
A tatuagem de Ivan ainda latejava quando Morena parou em frente ao lago com a respiração levemente ofegante. Sentira um alívio gigantesco quando compreendeu que a dor fora fruto da tentativa de Morena de forçar sua magia, de tentar passar sozinha por uma prova feita em dupla, usando o que ele tinha para oferecer. Era a única explicação racional para a sensação bizarra de deslocamento, para a reação exagerada de sua magia, se recolhendo como se estivesse tentando proteger a si mesma. Os dois estavam cientes de que não sabiam ao certo quais seriam os efeitos colaterais quando tomaram a decisão e estavam dispostos a enfrentá-los juntos, e Ivan sentiu certo orgulho no fato de que, apesar do perigo de fazer um teste como aquele no meio de uma prova, Morena havia decidido se arriscar.
Porém, por mais egoísta que isso fosse, ficava feliz que ela não tivesse conseguido. Se havia algo que Ivan nunca cansava de ver, era o espetáculo que Morena e Aleksey apresentavam quando dançavam. Juntos eles eram belos, elegantes e precisos, moviam-se como um, uma obra de arte em movimento. Era como um feitiço que faziam para despertar sentimentos que ele sequer sabia que existiam, algo tão intenso que o deixava quase desconcertado.
Na arena, os outros candidatos haviam desaparecido na escuridão impenetrável da seção do fogo, então todas as atenções estavam voltadas para Morena. Assim como Aleksey, ela levantou os olhos para a arquibancada, mas, ao contrário do amigo, abriu um sorriso radiante ao vê-lo sentado ali, junto com Tamara, revelando as covinhas que Ivan tanto amava.
Seu coração acelerou e ele sorriu em resposta, levando uma mão ao peito quase inconscientemente. Era estranho o efeito que o sorriso de Morena causava mesmo depois de dez anos da primeira vez em que se viram, e ele sempre ficava reduzido ao garoto de 12 anos com uma paixonite irrecuperável pela filha da amiga que sua avó fizera na casa de recuperação para Alquimistas.
— O que será que ela vai fazer? — Tamara perguntou ao seu lado, observando a irmã, concentrada. — Nara usou água, Aleksey usou ar. Ela não é muito boa com nenhum dos dois elementos, né? Principalmente água. Água apaga o fogo.
Ivan se inclinou para a frente e apoiou os cotovelos nas mãos enquanto observava sua esposa refazer o rabo de cavalo com calma, passando os dedos pelo cabelo enquanto analisava a prova à frente.
— O que você acha que ela vai fazer? — disse Ivan.
— Você não pode só me devolver a pergunta que eu te fiz como resposta! — retrucou a cunhada, indignada.
Ivan deu de ombros e sentiu sua magia se agitar, num movimento completamente diferente da dor de antes. Era mais suave, o fluxo de magia se reordenando calmamente na direção onde Morena se encontrava. Deu um sorriso presunçoso ao entender o que ela faria com a energia que estava pegando emprestado. Poderia até responder sua cunhada, mas a surpresa de Tamara seria impagável. A reação da arquibancada inteira seria sensacional.
Sua esposa não era uma exceção às Entropias – se houvesse a oportunidade de ser extravagante e fazer um espetáculo, ela não a deixaria passar. Era uma discussão paradoxal recorrente há gerações de Transformações: o tipo de magia que alguém tinha afinidade acabava moldando a personalidade ou era a personalidade que moldava a afinidade? Ninguém nunca havia chegado a uma conclusão, e Ivan particularmente achava que era uma das discussões mais estúpidas dentro da sua própria especialização – mas até aí, Morena diria que só quem tem paciência para aturar discussões arcanas, epistemológicas, metafísicas e bestas virava uma Transformação.
Ela não estava errada.
Morena parou bem na beirada do lago, a água molhando a ponta das suas botas, e com um gesto fluido, fez a água se afastar dela com uma onda pequena. Deu um passo em frente e, levantou as mãos, os olhos fixos no líquido à sua frente. Ivan não conseguiu segurar o sorriso.
Ele amava demais aquela mulher.
— Ela… não vai entrar? — Tamara perguntou, sem entender nada, os olhos indo de Ivan para Morena, sem parar.
— Continua olhando — respondeu, apontando para a arena com o queixo.
Os alunos ao seu redor reconheceram rapidamente os movimentos fluidos e elegantes de Morena – as doze formas focais do fogo, começando com o rato e terminando no javali, a segunda lição aprendida ao botar os pés na Azote. Atuavam como uma forma de condicionar o corpo e voltar a atenção para dentro de si, garantindo a concentração perfeita para manipular a magia. Com a prática, se tornavam praticamente desnecessárias, mas para o que Morena iria fazer, precisava de toda a ajuda e concentração possíveis.
— O quê…? — Tamara ficou em silêncio rapidamente, os olhos arregalados.
Por um instante, o ar ficou denso e viscoso e o tempo pareceu dilatar, os pelos da nuca se arrepiando com a estaticidade que impregnou o ar. E então, com um último gesto, a água se partiu ao meio, abrindo um caminho completamente seco para Morena chegar até as pedras que consistiam no teste da seção. Era um feito impressionante, as duas colunas de água mais altas do que a arquibancada, caindo em cascata e se retroalimentando, como se houvesse paredes impedindo que seguissem seu curso natural.
Ivan sempre se sentira atraído pela forma como Morena caminhava, como se o mundo lhe devesse respeito, uma rainha por onde quer que andasse. No entanto, ali, controlando a água com um aceno de dedo, seguindo com passos lentos e deliberados até o fim da prova, parecia uma deusa, moldando a realidade ao seu desejo, desenhando o mundo como queria. Conseguia sentir o turbilhão de magia que estava usando, emanando como se ela fosse um pequeno sol, escorrendo de seus lábios para suas mãos e para o chão, e a respiração de Ivan falhou por um instante.
Morena era uma força da natureza. A sua Morena conseguira arrancar suspiros e gritos incrédulos de toda a arquibancada, com uma exibição de controle e poder inigualáveis, mostrando para todo mundo o que ele sempre soubera. Ela era incrível e perfeita e a mulher mais bela de todo o universo, era até impensável que tivesse se casado com alguém tão sem graça como ele, sendo que ela poderia ter escolhido qualquer outro. Não havia um dia da vida de Ivan que não fosse dedicado a se tornar digno de estar com ela, de se tornar bom o suficiente para isso. Sua vontade era se levantar na arquibancada e gritar para o mundo inteiro ouvir como ela era incomparável.
No entanto, ele fez o que podia: a magia de Ivan fluía pela conexão entre eles gentilmente, de forma constante e uniforme, auxiliando-a em sua demonstração. Não era nada comparado à própria magia de Morena, que conseguiria fazer tudo aquilo sozinha, mas o rebote ao usar essa quantidade de magia era sempre terrível. Às vezes vinha em forma de uma enxaqueca que durava dias, às vezes vinha em forma de dissociação, e Morena se esquecia de minutos, às vezes horas dos dias após o uso. O tipo de magia que Ivan utilizava batia de forma mais fraca e constante, como uma gota de água pingando em uma pedra até furá-la. Se pudesse dividir o peso desse efeito com ela, as coisas ficariam mais fáceis. Com a conexão que eles tinham, a reação que viria mais tarde não seria tão intensa.
Bem, pelo menos teoricamente.
Um grito de seu orientador o trouxe de volta, e Ivan demorou um pouco para focar a vista novamente. Por que o Professor Grigori estava na arquibancada? O homem se levantou, apontando para a arena com uma expressão ensandecida e o som saía dos seus lábios como algo viscoso. Tamara agarrou o braço dele, assustada, e Ivan fez um gesto para protegê-la, por reflexo. O Professor Grigori precisou repetir três vezes até Ivan entender o que estava acontecendo.
— Isso é um absurdo! Inaceitável! Faça sua esposa parar imediatamente, Ivan Irinin!
A sensação de Ivan era a de estar embaixo d’água, a voz do homem distante, abafada, e ele franziu a testa. Por que isso era inaceitável? Era a coisa mais bonita que ele já havia visto, toda aquela energia, todo aquele poder. Os cabelos de Morena haviam se soltado do rabo de cavalo e caíam até o meio das suas costas, os cachos se desenhando perfeitamente, e sua pele cor de bronze brilhava levemente, refletindo o brilho das tochas que iluminavam a arena. Não tinha como algo tão belo ser errado, não tinha motivo para Grigori ficar tão agitado.
Além disso, Ivan estava ajudando. Estava tudo sob controle, não havia motivo para seu orientador se preocupar.
De algum lugar atrás de Ivan, a orientadora de Morena surgiu, abrindo caminho entre as pessoas como um furacão, e se aproximou de Grigori, cada movimento cheio de fúria contida. Ivan sempre se espantava com o quanto a Professora Nadezhda era nova, tendo no máximo dez anos a mais do que eles. Era tão nova que era até estranho chamá-la de Professora Nadezhda e não somente de Nadya durante as aulas. Nas Transformações, todas as professoras que podiam supervisionar os alunos que virariam Alquimistas e Alquimistas Extraordinários eram idosas, algumas das Alquimistas mais longevas. Ivan não conseguia se lembrar de jamais ter visto uma Entropia chegar aos 60 anos.
— Sente-se, seu velho idiota — disse Nadiya, colocando uma mão no ombro de Grigori, que se desvencilhou do toque. — Você está atrapalhando a prova.
— Você é uma irresponsável! — retrucou o Professor Grigori, enfiando o dedo no rosto da outra professora. — Nadezhda Yelizaveteva, faça sua aluna parar imediatamente! Isso é uma insanidade.
— Grigori Dashov, vá se sentar. — Nadiya apontou para o lugar onde outros professores das Transformações estavam sentados, meros espectadores da briga. — Se você soubesse qualquer coisa sobre ser uma Entropia, não teria passado a vida inteira debruçado naquelas velharias da biblioteca.
Era tão esquisito ver seus professores ali, naquela prova, servindo de testemunha. Ivan não se lembrava de tê-los visto quando Aleksey e Morena se graduaram, não era comum que estivessem ali. Ainda assim, conseguia discernir pelo menos quatro outros, além de Grigori, e um quinto homem que observava tudo com um ar desinteressado.
[Continua na Parte 2]
Comments (0)
See all