-…Como assim eu sou um demônio?
Nicolas piscou algumas vezes diante da pergunta, suas sobrancelhas arqueadas com desconfiança.
Era um final de tarde insuportavelmente quente, e ambos estavam na varanda que ficava aos fundos da casa- e que era, de longe, o local mais arejado dali. Douglas falava trivialidades enquanto organizava pedaços grossos de carne, frutos das duas últimas noites de caça, e que seriam usados no jantar mais tarde. Uma energia radiante pairava sobre ele.
Já Nicolas, esticado confortavelmente em uma espreguiçadeira, se limitava a murmurar respostas desinteressadas enquanto lia revistas que Douglas trouxera mais cedo, todas escolhidas especialmente para ele. As revistas humanas sabiam bem como prender sua atenção -especialmente a assuntos banais como novelas e brigas de famosos-, então demorou um pouco para que ele voltasse a si e prestasse atenção no que o outro estava perguntando.
- O quê?
- Você acabou de dizer que eu tenho um cheiro peculiar, mas que tava tudo bem porque "demônios como eu têm cheiros facilmente confundidos com os dos seres humanos”.
Ah sim. Ele havia dito aquilo mesmo, não foi?
- É exatamente o que eu quis dizer, oras- seu olhar voltou a folhear as páginas da revista- Você é o que chamamos de "terreno", uma criatura que nasceu no território humano ao invés do inferno. É um tipo de demônio diferente de mim, mas ainda assim, tão demônio quanto eu...agora só falta me dizer que tu não fazia ideia disso.
Pelo silêncio dele, Nicolas já sabia a resposta.
- Eu sabia que não era humano... mas um demônio? Digo, isso explica muita coisa? Explica, com certeza, mas ainda assim é um choque…
- É um choque mesmo? Porque você não parece muito surpreso.
Douglas pôs o fígado e o cutelo que segurava com cuidado no balcão, coçando o crânio com as luvas ainda sujas de sangue e olhando para o quintal- um sinal claro de sua confusão, mas que de alguma maneira parecia ajudá-lo a pensar melhor.
- Digamos que eu não lembro de muita coisa que aconteceu na minha vida, especialmente durante a infância- ele começou- eu tenho uma noção de que vivi tempo demais, mas tirando isso, algumas das memórias que tenho sobrando são meio...confusas, muito embaralhadas. Outras já são mais nítidas, mais diretas. Mas todas elas têm algo em comum: sempre que lembro delas, me machucam demais. Sei lá.
Sem perceber, sua voz ia diminuindo conforme prosseguia.
- Mas o que eu queria dizer com tudo isso desde o princípio é que é por causa dessas memórias que não me surpreendo com quase nada. Por mais que doa, ao lembrar delas eu sinto que posso evitar me machucar mais. É meio bizarro, mas no final eu acho que isso é uma coisa boa, né..?
Nicolas o olhou de cima a baixo.
Ridículo. Patético.
- Não. Não é uma coisa boa -Nicolas deu as costas para ele, irritado- Não tem nada de bom em lembrar de coisas dolorosas. Que invenção escabrosa. Essa história de “passar por algo ruim pra se machucar menos no futuro” deve ser a coisa mais estúpida já inventada por humanos, e você parece ter aprendido muito bem como se comportar igual a eles. Age de maneira igualmente estúpida.
Aquilo doeu um pouco, Douglas teve que admitir.
- Creio que eu seja meio estúpido, sim.
Com um suspiro pesado ele voltou a preparar sua carne, cansado do rumo inesperado daquela conversa. Bem lá no fundo, em seus devaneios de gente romântica e cega de amor, Douglas sonhava que ambos estariam apaixonados, e em uma conversa carregada de sentimentos, confidenciariam seus passados um ao outro. Livres, sem peso na consciência.
É…aquela conversa tinha sido um péssimo começo pros seus planos, sem sombra de dúvidas.
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