Anos atrás, fazer um pacto com alguém tão sem rumo como Douglas era algo impensável para Nicolas. Acumular contratos era o principal objetivo da sua vida desde uma tenra idade, então não havia tempo algum a ser perdido nesses momentos.
Contudo, ele admitia -apenas para si mesmo, claro- que aquela experiência em particular não estava sendo tão ruim quanto supôs que seria.
Mesmo que Douglas passasse o dia inteiro fora, trabalhando no centro da cidade em um escritório velho caindo aos pedaços, ele sempre dava o seu melhor para que Nicolas se sentisse à vontade: lhe trazia presentes quando chegava do trabalho (desde que o valor lhe coubesse no bolso), o deixava à vontade pela casa a qualquer hora do dia, quase não reclamava mesmo que ele agisse como uma criança mimada...tinha até mesmo improvisado um quarto para que o demônio pudesse dormir confortavelmente e ter alguma privacidade, embora Nicolas nunca o usasse de fato.
Ele preferia o quarto de Douglas, mais especificamente a cama dele.
Sempre que se sentia entediado ele cochilava ali durante as tardes, aproveitando o pouco de paz que tinha e sabendo que a essa altura, seu cheiro seria notado por entre as cobertas. O que não era problema, de forma alguma: Nicolas não se importava- na verdade, fazia questão de deixar seu cheiro evidente- e não duvidava que, se um dia tentasse convencer o idiota a trocar de cômodo, ele aceitaria sem dar um pio sequer.
Quanto mais ele pensava sobre todas as regalias que tinha, mais tinha a impressão de que ele é quem havia vendido sua alma, e não Douglas.
-------
Vinte minutos se passaram desde o início do preparo do jantar, e não haviam indícios de que terminaria tão cedo. Douglas andava para lá e para cá, levando pratos e panelas cheios até a borda- e que certamente pesavam horrores, mas eram carregados como se fossem míseros pedaços de papel.
Às vezes era fácil esquecer que ele também era um demônio. Um demônio com uma força descomunal, ainda por cima.
- Para alguém tão brucutu, você até que é bem…metódico- Nicolas balbuciou quando o viu deixar cada prato em cantos bem específicos da mesa, com uma organização igualmente específica- ahn, você tem certeza de que tá tudo bem? Pode me dar algo pra fazer, qualquer coisa é melhor do que continuar aqui parada te assistindo.
-Não, não precisa! Tá tudo sob controle, juro!- foi o que ele disse antes de voltar para a cozinha- Só mais dois pratos e finalmente termino!
O suspiro desanimado de Nicolas foi ouvido tão nitidamente que Douglas tinha certeza de que havia sido proposital, e não por conta da pouca distância entre os cômodos. “Tudo bem, preciso me acostumar com isso” ele pensou, enquanto terminava as últimas iguarias e as levava para a sala de jantar.
- Eu to fazendo meu melhor pra tu se sentir em casa, mas tem algo MUITO importante que ainda não fiz- uma pequena bacia e um caldeirão enorme foram colocados no centro da mesa, deixando-a sem um espaço vazio sequer. Os preparativos enfim chegaram ao final- Já que vou ter um ajudante, e um muito bom ainda por cima...o mínimo que posso fazer é mostrar gratidão e gentileza, como uma forma de retribuir. E quer uma demonstração melhor de gratidão do que um jantar completo?
- Pra começar, temos bolinhos feitos com uma mistura dos restos da Samanta e do Eduardo, preparados com queijo, espinafre e brócolis. Depois, picadinho de André...lembra dele? Eu o fatiei na primeira vez que caçamos juntos, e vou servi-lo com alho e pimentão! Tem também ensopado de Paulo, costela de Raul, que foi você quem matou...ah, e guardei o sangue de cada um deles pra preparar um coquetel com gin e limão. Não parece, mas é um excelente acompanhamento! Tem também…
Nicolas precisou reunir todas as forças para não passar mal, olhando com dificuldade para o amontoado de membros, sangue e carnes que apesar de cortadas com precisão, estavam em sua maioria tão mal passadas que pareciam praticamente cruas. Aquilo estava mais pra um show de horrores do que uma refeição de verdade.
Ele era capaz de ver a matança de outras criaturas, da forma mais violenta possível? Sim, mas presenciar tamanho desastre culinário era demais até mesmo para seus pobres olhos.
- Isso…em todos esses anos vivendo no inferno, acho que nunca vi uma cena tão…excessivamente asquerosa.
- Ah é?? Isso é ótimo! -respondeu, mesmo sem entender bem o que a palavra "asquerosa" sifnificava- Sabia que ia te surpreender!!
- De maneira negativa? Porquê se for isso, sim, surpreendeu.
Douglas encolheu os ombros, decepcionado.
Ele já tinha noção de que suas habilidades culinárias satisfaziam apenas a si próprio, então era óbvio que isso ia acontecer. Onde ele estava com a cabeça para achar que daria certo?
O universo, porém, não o faria desistir tão fácil.
- Cê devia experimentar primeiro antes de falar qualquer coisa, viu?- respondeu antes de pegar o que parecia um espetinho, com vários dedos enfileirados e banhados em sangue- porque tá tudo uma delícia! Muito bom, de verdade!
- Tá, Suponhamos que eu experimente alguma coisa e acabe gostando- Nicolas analisou cada comida com certo nojo, até tomar coragem e finalmente pegar um pouco do que julgou ser o prato menos nojento de todos- se isso acontecer, lhe pedirei as devidas desculpas e não reclamarei mais…porém, se eu não gostar, você terá que aprender a cozinhar direito. Pelo menos o suficiente pras comidas terem uma cara decente. O que me diz?
- Você, sem reclamar? Duvido- ele riu da infantilidade da proposta, mas se arrependeu logo em seguida ao ver a expressão do outro se fechando- ah, foi mal! Foi mal! Eu aceito sim, aceito!
Aquele foi finalmente o momento em que ambos se calaram para aproveitar o jantar, cada um à sua maneira. Douglas, enquanto tomava generosos goles de seu coquetel, observava animado cada careta feita por Nicolas, que mastigava seu bolo de carne com desgosto e reprovação.
O resultado daquela “aposta” já estava definido, mas isso não importava àquela altura; ver Nicolas comendo algo que ele havia feito, mesmo que por breves segundos, já fazia Douglas se sentir vitorioso.
Comments (9)
See all