ela é um conjunto de glândulas e terminações nervosas, mas todos parecem ignorar o fato de que qualquer garota no mundo é seu próprio universo inexplorado, e que nenhuma educação, nenhum pudor que possa ter sido ensinado a ela, forçadamente embutido, internalizado e naturalizado em si, pode parar uma vontade selvagem.
ela diz sempre “sim” aos pudores e tradições. ela é um pássaro voando abaixo do radar, pronta para abrir seu repertório e usar as palavras certas. pronta para ser a boa moça, a grande e comportada irmã mais velha. a namorada que espera até o casamento. uma estrelinha com brilho fraco, mas suficiente para continuar sobrevivendo.
mas em alguns dias ela se reduz a um conjunto de glândulas e terminações nervosas, instinto. embora o disfarce insistisse em estar sempre lá, ela nunca conseguiria camuflar-se para si mesma. então ela pensa e anda, pensa e anda pelos corredores da escola que começam a se esvaziar.
eu talvez seja muito melhor que tudo isso. seus passos sempre rápidos reduzem um pouco, embora ela seja uma garota que não sabe andar devagar. a sua sempre ânsia de ser eficiente até para existir no mundo se abranda um pouco. talvez seja um sacrilégio deixar que controlem o que é meu. e isso é o pior sobre garotas quietas. seu constante ruminar de perguntas difíceis eventualmente as leva à resposta certa.
ela vira à esquerda no banheiro do segundo andar, olha para si mesma no espelho encardido do banheiro. encara um corpo do qual sempre teve vergonha, que odeia que seja tocado ou visto. existe algo de muito errado nesse corpo sem deficiências e ela não sabe o quê. nem mesmo suas ruminações infindáveis encontram a resposta para isso.
ela só sabe, com todas as certezas, que alguma coisa não está no lugar certo. a única pergunta é: o quanto disso importa? seus passos incertos para trás são a irrecusável certeza da dúvida. importa pra quem? e bam. a porta da cabine se fecha.
sozinha com suas dúvidas, ela também queria poder fechar a porta dos pensamentos. mal sabe ela que é impossível para as meninas quietas. a privacidade muitas vezes é uma bênção, em outras, uma agonia.
mas o que se sabe sobre essa menina quieta é que ela tem uma vontade selvagem, pronta para ceder aos impulsos contanto que nunca seja descoberta. ao encarar a porta do banheiro ela desenha as palavras com os lábios: nunca ser descoberta. e percebe que esse é o monstro que a excita, que ascende a vontade desgovernada.
nunca ser descoberta. é essa a base de enganar um mundo que se acha esperto por fazer barulho. um mundo pudorento, cheio de recates, que te guarda e te amarra até precisar se deliciar com você. e é assim que ela experimenta a conquista de si mesma, antes que outros o façam.
é assim que ela começa a se saborear, primeiro com estranheza, ou talvez até nojo, como alguém que pisa em um manguezal e, embora se sinta incomodado, não consegue emergir e sair. depois de uma exploração inepta, ela se dá conta do prazer do feedback imediato, da liberdade de seguir por um caminho ou por outro, de mudar de caminho a qualquer hora, de qualquer jeito, a seu bel-prazer. ser sua própria dona, rainha, mestra, capitã, conselheira. e, apesar de sua nunca antes vivida independência de si, reconhece que essa sensação é a mais familiar de todas.
ela não se espera, não se para. ela se curte, se gosta. ela olha seu corpo, que por dezoito anos foi sua vergonha e sua desgraça, e se assusta com o quanto ele queria ser tocado, querido, amado. e promete que irá tocar aquele corpo, que é o único que tem, a todo instante, o quanto possa.
na sua caminhada fatal, alienígena, ela se esquece um pouco que está no banheiro não tão limpo da escola, esquece-se que a aula de biologia vai começar e que, como a boa moça que é, deveria chegar na hora.
nada disso é muito importante quando uma pequena chaleira entra em ebulição dentro de si. quando si própria é a melhor coisa que jamais experimentou. quando os acontecimentos se desencadeiam sozinhos e ela, que sempre quis experimentar de tudo, descobre-se não mais privada dos prazeres da sua própria carne.
os prazeres de se tornar uma ave de rapina. um riso mínimo nos lábios. uma satisfação passada, mas etérea. e fica com ela, como um velho amigo que encontramos pela primeira vez. como um déjà vu.
uma porta de banheiro que se abre.
um mundo que é todo outro, mas é o mesmo.
passos incertos escada acima, sem pressa alguma. a aula de biologia já começou.
ela é um conjunto de glândulas e terminações nervosas, mas todos parecem ignorar o fato.
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