Aviso: Essa obra de ficção contém situações de abuso e tortura psicológica, menção a violência física, sintomas relacionados a depressão e ansiedade.
O sangue em suas veias parecia escorrer para a terra e para o ar, num turbilhão de magia controlado pelo seu coração, cada grão de areia, cada gota d’água uma extensão do seu próprio corpo. Morena amava a euforia que era ter a magia zumbindo em seus ouvidos, envolvendo-a por completo. Era a melhor sensação do mundo e, às vezes, pensava que não havia nada que ela amasse mais do que aquilo. Nada. Nem Ivan, nem Tamara, nem Aleksey. Eram aqueles momentos de entrega absoluta, de conexão total com os fluxos que regiam o mundo, que faziam a vida valer a pena.
Era fácil se perder no turbilhão de sensações e, mesmo com todo o treinamento que tinha, seu corpo não aguentaria por muito tempo. Assim que atravessou o último caminho, na seção de madeira, e chegou no centro da arena, tentou retornar a si. Respirou fundo e procurou, dentre as linhas de magia, a mais brilhante, que ia direto para a arquibancada, onde Ivan reluzia como um farol. Ele a puxou de volta, devagar, ajudando Morena a entender onde seu corpo acabava e o resto do mundo começava.
Não era muito diferente do tempo em que não tinham o laço firmado através da tinta em seus corpos: Morena sempre o procurava, em algum lugar de sua memória, em algum lugar da escola, e Ivan sempre a trazia de volta. Agora, só era mais prático, mais fácil, porque a presença reconfortante de Ivan estava sempre a seu alcance, firmando, apoiando, guiando. Sabia que se qualquer um na Azote suspeitasse do que haviam feito, os dois provavelmente seriam presos ou sofreriam o pior dos pesadelos de Ivan: a expulsão. No entanto, seu marido nunca errara um cálculo de feitiço na vida, e se ele dizia que a conexão era indetectável, Morena não tinha nenhuma dúvida de que era assim mesmo.
Quando finalmente voltou a tomar consciência do seu corpo e de seus arredores, Morena fincou as unhas no antebraço e mordeu os lábios até sentir o gosto metálico do próprio sangue. Todo retorno era assim: seu corpo parecia pequeno demais, sua pele parecia queimar e a sensação de perda da conexão com o mundo a fazia se sentir vazia. Ela aprendera que a dor era a melhor forma de afastar a sensação de desamparo, fazendo-a focar presente.
Ivan também a ajudava com aquilo, quando ela precisava. Era mais fácil ceder a uma conexão com o corpo de outra pessoa do que com o seu próprio. Cada toque de Ivan lembrava quem ela era, gravava na pele e nos músculos o que Morena já sabia. Ela umedeceu os lábios, tentando se concentrar no momento presente, e não nas coisas que faria mais tarde quando estivessem sozinhos.
A última etapa da prova era uma área circular bem no centro da arena, formando o mapa da prova em pequena escala. Havia quatro partes, cada uma com um terreno diferente – lama, areia, pedregulhos e cascalhos – distribuídas ao redor de um paredão de uma pedra vermelha, que provavelmente escondia alguma coisa. Cada parte estava separada da outra por pilares de alturas e cores diferentes, feitos de rochas distintas. Morena levou uma mão ao rosto, apertando um dos seus olhos, que havia começado a pulsar involuntariamente. Talvez tivesse sido um erro usar tanta energia antes de chegar na última etapa da prova.
Ela se aproximou lentamente do paredão central, observando os arredores com cuidado, uma fina camada de magia em seus pés para evitar cair em algum buraco que estivesse camuflado. Havia escavações por toda a pedra, símbolos alquímicos empilhados em um feitiço, e Morena o circulou demoradamente, sentindo-os com a ponta dos dedos. A pedra vermelha também cobria o chão, os símbolos se unindo num círculo alquímico, mas algumas peças estavam faltando ali. Quando passou para os pilares, sorriu involuntariamente.
Aleksey estava bem no meio da seção correspondente ao metal, entre as duas colunas, preso até a cintura na areia. Quando ele a viu, a preocupação virou irritação, e voltou a se concentrar nos seus esforços para se soltar, com um biquinho de raiva que o deixava mais bonito do que o costume. Morena sempre gostara de vê-lo irritado.
Ela caminhou até ele.
— Não — falou Aleksey quando ela parou à sua frente, sequer olhando para cima. Cavava a areia ao seu redor com as mãos, formando uma pequena duna à sua esquerda.
— Mas eu nem falei nada!
— Você ia falar, e a resposta é não. — Ele pausou um minuto, levemente ofegante, antes de continuar seu esforço.
Morena cruzou os braços.
— Vai terminar a prova, eu me viro sozinho. — Aleksey fez um gesto na direção do centro da arena.
— Eu só queria entender o que aconteceu. Começou a chover areia em cima de você, foi isso? Ou você esqueceu da regra número um dessas provas? — debochou ela. Se ele estava em condições de ser desaforado, então estava tudo bem com ele.
— Eu não sou idiota, Masha — retrucou ele, jogando um punhado de areia no montinho que se formava ao seu lado de forma descuidada.
Morena sentiu uma vibração no ar e um gosto metálico no fundo da boca, rápido o suficiente para achar que era só imaginação. Toda a areia em torno de Aleksey deslizou e o enterrou novamente, como que para provar que ele estava errado. O rapaz bufou, frustrado. Morena se agachou, apoiando um joelho no chão, e analisou um punhado de areia, sentindo sua textura e depois a cheirando. Pegou um pouco com o dedo mindinho e enfiou na boca.
Aleksey contorceu o rosto, com nojo.
— Você coloca qualquer porcaria que encontra na boca — recriminou ele, observando-a limpar as mãos.
— Não qualquer porcaria, eu tenho algum critério.
— Você beija Ivan todos os dias, você não tem critério nenhum.
— Vai se foder, Lyosha — respondeu ela num tom amigável. — Bem, você não vai conseguir sair daí sozinho. É magnetita, e de tempos em tempos, esses dois pilares emitem um campo magnético que movimenta a areia.
— Eu posso inverter a polaridade e fazer a areia se afastar de mim — falou ele.
Morena deu de ombros, se pondo de pé e se afastando.
— Tudo bem, se você acha que vai conseguir…
Ela lhe deu as costas e terminou a trajetória ao redor do círculo, Aleksey a seguindo com os olhos. Como suspeitara, cada parte era correspondente a um dos elementos exteriores, e os pilares se posicionavam em duplas. Morena caminhou até a área designada ao elemento fogo, parando um pouco antes de chegar aos pilares. Com certeza haveria alguma armadilha ali, ou Aleksey não estaria lutando contra areia magnética para tentar se soltar. As pontas afiadas do cascalho pressionavam o solado de suas botas, e, depois de controlar a respiração, conseguiu ver que cada uma das colunas trazia uma metade de um símbolo que faltava no círculo alquímico central.
O maior inimigo de uma alquimista era a falta de concentração, e Morena mordeu a parte interna da sua bochecha para tentar reunir seus pensamentos difusos. Havia uma hipótese se formando no fundo de sua mente, uma ideia intrometida que não deveria estar ali. Não poderia ser outra prova que precisavam de duas pessoas para passar. O que o professor Ilya Svetlanich havia dito quando explicara a prova? Somente uma Alquimista poderia obter o título, e se dois estivessem no coração da prova, teriam que escolher entre si. Olhou novamente para o centro da seção de pedra e para Aleksey, para a dupla de pilares à sua frente e para a arquibancada que se desenhava à distância.
Não, não era possível. Os professores não seriam assim tão sádicos.
Ela se aproximou de uma das colunas, revestindo a pele com uma camada de magia, e fechou os olhos, concentrando-se no movimento de chegar até o glifo, sem saber exatamente como faria para extraí-lo dali. Quando estava prestes a encostar na pedra, sentiu o ar ao seu redor expandir, o cheiro de enxofre inundando seus sentidos antes da chama se formar. Só teve tempo de proteger a cabeça antes de ser envolta pelo calor, todas as suas defesas naturais erguendo-se num reflexo.
Quase uma eternidade depois, as chamas se extinguiram e o suspiro de alívio da audiência foi audível quando perceberam que Morena estava intacta. Nenhum deles conseguia ouvir o coração acelerado de Morena ou via sua respiração curta, ofegante. Fogo podia ser seu elemento natal, mas se proteger de chamas fortes como essa não lhe saía de graça.
Se fosse Hadassa em seu lugar, com certeza a garota sairia dali direto para o cuidado dos Vetores. Fogo derrete Metal.
Havia algo que aprendera com Ivan em todos esses anos que se conheciam: a melhor resposta para um problema era sempre a mais simples, por mais improvável que parecesse. Se eram dois os pilares, e, ao interagir com um deles sozinho, havia uma reação, o mais plausível era que se dois pilares fossem acionados ao mesmo tempo, não haveria resposta alguma.
Ou seja: os professores eram de fato sádicos ao ponto de fazê-la escolher entre o seu título e o título do seu melhor amigo.
Não era para isso acontecer. Parecia uma prova desenhada exclusivamente para torturar os alunos que passavam por ela. Por acaso o departamento estava entediado e decidira animar todo mundo com uma prova extra absurda e impossível?
— Achei que a esta altura você já estaria titulada — Aleksey comentou quando a viu se aproximar novamente. Ele estava ainda mais soterrado na areia e Morena teria rido se não estivesse se sentindo tão desolada.
— Você sabe que eu nunca consigo ficar longe de você — falou ela, mas seu tom saiu completamente diferente do que ela queria. Aleksey franziu a testa. Ela limpou a garganta antes de continuar: — Bem, trago notícias. Você quer a boa ou a ruim primeiro?
— Faz diferença se eu escolher? — Ele suspirou audivelmente.
— Não! — exclamou ela, colocando a mão na cintura. — A ruim é que não consigo terminar a prova sozinha.
— É o quê?!
— Eu tenho 99% de certeza de que são necessárias duas pessoas extraindo as runas simultaneamente de cada pilar se não quisermos acabar enterrados na areia que nem você — explicou Morena.
— O que eu fiz para merecer isso? — Aleksey se jogou na areia, olhando para os céus de forma dramática. — As instruções falavam claramente que apenas um de nós podia terminar a prova. Não pode ser verdade.
— Eu te disse que se nós dois terminássemos a prova, nós dois teríamos o título, independente do que eles falaram.
— Eu duvido que isso seja verdade. — Ele a encarou e Morena desviou o olhar, desconfortável.
Ela acreditava no que dissera tanto quanto ele. Alquimistas tinham que saber seguir regras com rigor, e a escola se certificava de que soubessem disso desde pequenos. Não existiam exceções na Azote.
— A gente pode pelo menos tentar. — A voz saiu fraca, baixinha, completamente fora do controle.
Aleksey se levantou, com uma expressão mais suave, e não respondeu. Ele sabia muito bem quando uma discussão valia a pena, e julgou que aquela não valia sua energia, para o alívio de Morena. Em vez disso, ele se limpou como pôde, olhando para um dos pilares com o canto de olho.
— Hum, e essa era a boa notícia?
— Não, a boa notícia é que eu vou te tirar daí.
— Ah, graças aos santos.
[Continua na Parte 2]
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