[Continuação da Parte 1]
Morena se posicionou à frente do rapaz, pisoteando a areia abaixo dela para não acabarem os dois enterrados, e Aleksey segurou os braços dela, seus dedos compridos e gelados contra a pele de Morena. A magia de Aleksey sempre parecia um dia cinza de tempestade, a energia fluindo como ventos revoltos, reverberando como um trovão em seu peito, e ela o segurou, os músculos rígidos do rapaz sob suas mãos. Madeira alimenta Fogo. Os seus olhares se conectaram e ela sabia que não precisava explicar o que faria, mas o fez mesmo assim, para acalmar os dois:
— Eu vou contar até três e afastar a areia, daí você vai ter que se erguer e sair antes que volte para o lugar.
Aleksey assentiu, afundando os dedos em sua pele, e ela fechou os olhos, molhando os lábios e respirando fundo. Na primeira tentativa, Aleksey conseguiu se desvencilhar até a cintura. Na segunda, até metade da perna. Na última, ele usou tanta força para se levantar que os dois se desequilibraram, desabando na areia com as respirações ofegantes. Morena podia sentir cada um dos grãos de areia embaixo dela e o peso de Aleksey contra seu corpo, onde as pernas se entrelaçavam, cada movimento do seu peito contra o dele. Mordeu os lábios novamente, tentando se concentrar na prova, no título, em Ivan sentado na arquibancada, a alguns metros de distância, para controlar o calor que sempre se alastrava entre suas pernas depois de compartilhar magia com Aleksey. Ele se apoiou nos cotovelos, afastando uma mecha rebelde da testa de Morena, seus olhos parecendo quase tão escuros quanto os dela.
— Você está bem? — perguntou ele, sua voz soando mais grave do que o costume, e Morena sentiu o calor terminar de subir pelo resto do corpo.
Ela só conseguiu assentir, desviando o olhar quando Aleksey umedeceu os lábios e rolou para o lado. Morena levantou primeiro, estendendo uma mão que Aleksey aceitou sem hesitação, ajudando-o a ficar de pé. Chegar até ali havia sido exaustivo para ambos e haviam gasto energia demais, desperdiçado magia com exibicionismos. Aleksey se apoiou nela por alguns instantes e ela o segurou pela cintura, apoiando a cabeça em seu ombro suavemente. Depois de alguns segundos assim, ele sussurrou:
— Eu acho melhor começar por outro elemento e deixar esse aqui mais para o fim.
Seguiram para a parte de madeira quase instintivamente, Aleksey um pouco atrás depois que se afastaram um do outro, com passos precisos e calculados, o peso pendendo para a perna direita. Ela diminuiu a velocidade para acompanhá-lo, e recebeu um olhar tão fulminante em troca que voltou ao ritmo normal, revirando os olhos.
— Eu odeio areia — reclamou ele, por fim.
— Para de reclamar — Morena respondeu.
Eles chegaram nos pilares de madeira. Essa parte não era difícil, já haviam feito mil vezes coisas parecidas e um era sempre a dupla do outro. Ajudava bastante que eles fossem especializados em elementos complementares, e um fluxo equilibrado sempre era mais efetivo do que um desbalanceado.
— É ruim demais, gruda em todo lugar.
— Chorão.
Água.
— Eu vou ficar uma semana achando areia no meu corpo!
— Você nem tem areia no cabelo que nem eu, está reclamando de barriga cheia.
Metal.
— Você não acha tudo isso muito esquisito? Não faz sentido nenhum eles terem dito que seria só para um vencedor se precisam de duas pessoas para chegar na prova final.
— É porque eles queriam que a gente desistisse — falou Morena, sentindo um aperto no peito. — Vai dar tudo certo.
Fogo.
— Ah, eu vi Yakov na arquibancada.
Morena imediatamente congelou.
— Quê?!
— Sentado bem do lado de Ivan, com um sorriso que eu arrancaria com uma faca se pudesse. — Aleksey desviou o olhar para a arquibancada e ela o imitou.
Não encontrou nada, tão ao longe.
— Ele não estava lá quando cheguei na Água, com certeza decidiu que não era um bom dia para morrer — falou ela, sentindo a fúria subir em suas veias.
Como Yakov Yulievich OUSAVA pisar os pés na Azote? Como ele ousava se sentar ao lado de Ivan e de Tamara, em um lugar onde seria visto por Aleksey? E ainda era medroso o suficiente para fugir para não ter que confrontá-la. Se ela era mesmo a pirralha metida a besta que Yakov alegava, por que ela não o vira uma vez sequer desde o dia em que ela fora buscar Aleksey na casa de campo dos Barabash, um ano antes? Ele não passava de um covarde.
Covarde, covarde, covarde.
— Ah, certeza de que ele só veio prestigiar seu estimado sobrinho — Aleksey tentou tranquilizá-la, e ela balançou a cabeça.
— Eu não gosto disso.
— Eu também não, mas o que você quer que eu faça? Mate meu próprio tio?
Morena olhou para o centro da arena, afundando as unhas nas palmas das mãos e mordendo a própria língua para não responder, mas era mais forte que ela.
— Se dependesse dele, você já estaria morto.
— Masha. — Aleksey soou exausto. — Falta pouco para terminar a prova, essa discussão não vai dar em nada.
Ainda estava tentando controlar sua espiral de fúria enquanto posicionavam os símbolos, Aleksey mais esgotado a cada pedra que acionavam. Quando posicionaram a última – madeira, a primeira que tinham conseguido –, o chão tremeu e os paredões do meio se afundaram na terra, dando lugar a um pilar de pedra íngreme e liso, impossível de escalar sem uma combinação de magia e força física. No topo da pedra estava o Grimório em branco que era entregue na cerimônia de titulação de Alquimista Extraordinário.
Morena se sentiu burra por ter demorado tanto tempo para entender. É claro que era isso. Todas aquelas seções, todas aquelas facilidades.
Aquela prova esquisita fora desenhada para deixar Aleksey perto o bastante do que tanto queria, no entanto, sem permitir que ele chegasse até o fim. Era só mais uma das formas que Yakov encontrava para lembrar o sobrinho de que não merecia nada de bom, de que não merecia ser feliz. Ela sentiu uma bola se formar na garganta, uma vontade de partir o mundo ao meio, de destruir tudo e todos que deixaram aquilo acontecer. Queria abraçar Aleksey e desaparecer, ir para bem longe, num lugar onde nada daquilo os alcançaria.
Aleksey se sentou no chão, ao seu lado, com um suspiro pesado, passando uma mão pelo cabelo. Seu sorriso amargo se transformou numa gargalhada alta, que parecia ser o único som restante no mundo. Era feia, azeda, cada som um estilhaço de esperança perdido.
Ela precisou de tudo para conter sua vontade de chorar.
— Vai, Morena — falou ele, com um gesto teatral na direção do pedestal. — Vai pegar o seu título, Alquimista Extraordinária.
— Não. — Ela balançou a cabeça. — Eu não quero se for desse jeito.
— Você vai deixar ele ganhar? — Aleksey perguntou, e ela precisou piscar algumas vezes para poder enxergá-lo direito. — Esse jogo foi feito pra nós dois. Se você não for, você está dando pra ele exatamente o que ele quer.
— Lyosha, não é justo. — A voz dela falhou. — O que foi que você disse no início? Que vencer com a minha ajuda e não vencer é a mesma coisa? Pra mim é igual, vencer essa prova e não vencer é a mesma coisa.
— A Morena que eu conheço não desperdiçaria essa chance.
— Talvez você não me conheça tão bem quanto pensa.
— A Morena que eu conheço, a Princesa de Mièdz, sabe que o título não é só dela. Ela sabe que se não subir naquele pilar e pegar aquela porcaria de Grimório, vai ter gente falando de norte a sul do país que as Górski não são tudo isso, que a nobreza antiga é muito superior, que vocês não merecem nada do que têm e eles podem tirar de vocês todas as vantagens que sua família conseguiu para Mièdz ao longo do anos — falou Aleksey, encarando Morena com aqueles olhos verdes brilhantes. — A Morena que eu conheço sabe que se ela quiser respeito, precisa ser duas, três vezes mais poderosa do que qualquer outro pateta que anda na corte. A Morena que eu conheço…
— Tudo bem! — Ela o interrompeu, sentindo o rosto e os olhos queimando, segurando as lágrimas apenas por um triz. — Chega, você não precisa me lembrar das minhas obrigações, Aleksey Aleksandrov, eu as conheço melhor do que você.
Aleksey engoliu em seco, desviando o olhar, e Morena sabia, sabia que ele se arrependera. No entanto, ele estava certo. Ela não podia se dar ao luxo de se recusar a ganhar aquela prova, não quando o povo dela era hostilizado em todo o canto que pisavam em Argon que não fosse a terra deles, Mièdz. Não podia ter um momento de fraqueza que fosse se quisesse manter todos eles seguros, se quisesse impedir que abrissem uma Igreja a cada esquina de Mièdz e os impedissem de praticar sua própria religião, se quisessem manter um vestígio que fosse da cultura que eles tinham tanto orgulho e que havia resistido às investidas de Argon por tanto tempo.
Sua mãe sempre lhe dissera que poder exigia respeito, mas esquecera de acrescentar que poder também exigia sacrifício.
— Tudo bem — falou ela mais uma vez, exausta. — Você está certo. Não tenho outra escolha.
Aleksey relaxou, respirando fundo, visivelmente aliviado, e escondeu o rosto nas mãos. Morena limpou as lágrimas que escorriam por suas bochechas, querendo desaparecer. Se ela pudesse voltar no tempo, voltar para dois meses antes, quando perguntaram se eles gostariam de fazer aquela prova fora de época, ela teria dito não. Eles deviam ter suspeitado desde o princípio que era bom demais para ser verdade. Era uma armadilha construída perfeitamente para colocar os dois naquela situação.
Por alguns segundos, esperou que Aleksey lhe dissesse para não ir. Que os dois desistissem e fizessem a prova normal, pegassem o título no tempo correto. Que deixassem Yakov vencer essa, só essa, porque ela sabia que nada seria igual se ela subisse naquele pilar e pegasse aquele Grimório. Que se fodam o que os outros falariam, o que achariam, o que fariam. Ela podia compensar de outra forma aquela derrota.
Me peça para não ir, pensou ela, com todas as forças que restavam. Me peça para ficar com você.
— Você vai pegar esse título por nós dois — disse Aleksey, por fim, cada palavra como uma facada no peito dela.
Havia uma parte de Morena que achava que desistir era um desperdício e que entendia tudo o que aquilo representava para o seu povo, mas também havia uma parte que nunca, nunca fora forte o suficiente para abrir mão de algo que queria tanto como aquilo. Não havia como voltar no tempo, não havia mais nada que ela pudesse fazer para evitar que Aleksey sofresse. Era um desperdício deixar aquela prova sem um vencedor, mesmo com tudo isso, mesmo apesar de tudo isso, mesmo que não parecesse uma vitória, mesmo que fosse injusta.
E porque ela sabia que Aleksey entendia, porque sabia que o que estava ali em cima era o objetivo final que eles compartilhavam, ela obedeceu.
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CRÉDITOS
Autora: Isabelle Morais
Edição: Marina Orli e Val Alves
Preparação: Laura Pohl
Revisão: Lavínia Rocha
Diagramação: Val Alves
Título tipografado: Vitor Castrillo
Ilustração: Júpiter Figueiredo
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