Aviso: Essa obra de ficção contém situações de abuso e tortura psicológica, menção a violência física, sintomas relacionados a depressão e ansiedade.
Um sentimento horrível formava no peito de Aleksey, um monstro sem nome que subia arranhando sua garganta, desesperado para sair enquanto ele recebia as parabenizações, os lamentos e os incentivos de que no ano que vem ele conseguiria, não deveria ficar triste, ele tinha sido formidável; professores e colegas e alunos numa confusão de rostos e vozes e sons. Não sabia o que era pior: a sensação gigantesca de impotência; o orgulho ferido por ter chegado tão longe, utilizado de tanto esforço para não dar em nada, ou o olhar de completo horror que Morena lhe lançara quando os professores a arrastaram para longe dele, parabenizando-a por ter se tornado membro do clubinho exclusivo do qual faziam parte.
Aleksey só queria ficar sozinho.
Ele precisava, se não explodiria.
Tinha conseguido se desvencilhar das pessoas e se esconder no seu cantinho de sempre da fortaleza, no jardim que ele descobrira uma vez e que sentia que só ele conhecia, o lugar que sempre ia para se acalmar. No entanto, sua mente não parava de girar e girar e girar. Era assim que uma mosca provavelmente se sentia, presa numa teia de aranha, ciente do fim inevitável. Não importava para onde fosse, o que fizesse, quanto tempo passasse, ele tinha cada vez mais certeza de que seu tio faria de tudo para estragar qualquer chance de felicidade que tivesse.
Aleksey sabia que ele não era a melhor das pessoas, mas não conseguia entender o que tinha feito para merecer aquilo. Começara quando ele tinha nove anos, mais ou menos, e sua prima nascera, a primeira mulher da geração dele, tomando seu lugar como herdeira da família. Ela era seu bebê, sua irmãzinha, mesmo que fosse filha do seu tio; e a mãe de Aleksey a amava e a paparicava como se fosse sua. Talvez Yakov tivesse ciúmes, talvez tivesse medo de que a menina fosse gostar mais deles, talvez tivesse desprezo por eles – mas nada disso importara depois que ela morrera, logo depois de completar quatro anos de vida.
As coisas só escalaram nos anos seguintes. No início, Yakov usava toda e qualquer oportunidade para humilhá-lo, para relembrá-lo que quando decidisse ter outra filha, Aleksey deixaria de ser o herdeiro. Sempre ressaltava como Aleksey era um rosto bonito com um nome importante e que por isso ninguém nunca gostaria dele de verdade, que ele nunca seria capaz de honrar o nome da família, que ele era incapaz e inferior e era uma vergonha que o legado dos Barabash dependesse de uma pessoa tão patética quanto Aleksey. Seu tio amava deixar claro que toda e qualquer influência que Aleksey tinha era um favor que lhe fazia, uma concessão que poderia ser tirada a qualquer instante.
Porém nunca Yakov havia chegado num nível tão baixo, tão desprezível. Quantas pessoas ele teve que subornar para a prova ser desenhada como instrumento de tortura para ele? Quanta energia ele precisou gastar para tentar prever como cada uma das pecinhas do jogo de xadrez iria se comportar? No final, nem devia ter sido assim difícil. Aleksey era ridiculamente previsível e todas as vezes fazia exatamente o que Yakov queria. Detestava como sempre caía nas armadilhas que seu tio montava sem parar para pensar duas vezes.
Mas qual era a alternativa ali? Ele tinha tentado ganhar. Ele tinha feito seu melhor. E seu melhor nunca era suficiente.
Afundou o rosto nas mãos, sentindo-se exausto. Cada milímetro do seu corpo doía do esforço da prova, mas não era só isso – era horroroso lutar em uma guerra sem nenhum poder, sem nenhum aliado. Desde que sua mãe fora se tratar na casa de Recuperação em Vodorod, três anos antes, nenhum outro aliado restara na família. Não havia mais ninguém além dele e do tio, agora. Aleksey podia ser um adulto, mas se sentia com treze anos, incapaz de encontrar as palavras para revidar, incapaz de impedir a mão que descia contra ele.
Só reparou que não estava sozinho quando sentiu o peso da capa de Ivan sobre as suas costas, o tecido aveludado envolvendo-o como um abraço. Levantou o olhar e o rapaz estava ali, sentado no banco ao seu lado, em silêncio, belo como uma estátua. As bochechas altas e o nariz reto, o queixo marcado e os olhos estreitos, tão escuros quanto a noite que os rodeava; a boca que sempre chamavam a atenção, principalmente quando ele a mordia suavemente, como fazia toda vez em que seus pensamentos estavam a mil.
Aleksey umedeceu os lábios e desviou o olhar.
— O que você está fazendo aqui? — perguntou Aleksey.
— Está frio aqui fora — Ivan ofereceu como resposta e Aleksey riu.
— Você veio até aqui só porque está frio?
— Depois de toda a magia que vocês usaram lá, achei que você não teria energia nem para andar direito — falou ele, dando de ombros e esticando as pernas compridas à frente.
Aleksey puxou uma das pontas da capa para se cobrir melhor, o cheiro de Ivan o envolvendo. Estava se sentindo desolado demais para recusar uma única indulgência; merecia pelo menos alguns minutos fingindo que não vivia num limbo de sentimentos confusos e mal resolvidos. Não havia problema nenhum em usar a capa que fora oferecida tão gentilmente, era? Ao menos não teria como se sentir pior do que estava agora.
Mesmo assim, conseguia se lembrar das lágrimas escorrendo no rosto de Morena e se sentiu na obrigação de comentar:
— Você não deveria estar comemorando o título da sua esposa?
— Como se tivesse algo para comemorar — resmungou Ivan, mexendo em seus anéis como fazia todas as vezes que estava nervoso.
Aleksey olhou para o chão, descobrindo que era sim possível se sentir pior do que estava sentindo. Aquele era para ser um momento feliz de celebração, o momento em que tudo pelo qual Morena lutara até ali seria finalmente comemorado. Era para ser uma festa e uma ode a Morena, uma celebração de suas habilidades e de como ela era incrível e perfeita, como ela merecia.
— Ninguém me deixou chegar perto dela — continuou Ivan, alheio aos seus pensamentos. — E eu estava preocupado demais com você.
Aleksey se enrolou mais na capa, tentando controlar o seu coração, sentindo seu rosto ficar quente. Era ridículo como ele nunca sabia como receber a atenção de Ivan e sempre ficava sem palavras. A sorte dele é que o evento era raro e, até recentemente, os dois juntos, sem a presença de Morena, era algo altamente improvável. Porém, depois de anos – sete? oito? – Ivan finalmente parecia se sentir mais à vontade e Aleksey não fazia ideia do que aquilo significava. Ele fora com Morena até a casa de inverno dos Barabash para buscá-lo, tinha o auxiliado dando comida e banhos, trocando seus curativos e virando noites ajudando com aquela prova. Eram inúmeras as coisas que Aleksey nunca imaginara que fossem possíveis. Ivan até fazia piadas agora! Era completamente desconcertante.
Ivan era como um enigma, uma pergunta que só poderia ser respondida depois de anos de estudo, e talvez nem mesmo depois disso. Não era como Morena, que Aleksey conhecia como as linhas da própria mão, que conseguia ler os humores e os pensamentos e as ações em seu rosto tão facilmente quanto as dele. Não, Ivan sempre fora um mistério, e Aleksey sabia que era inútil tentar desvendá-lo. Mesmo assim, isso nunca impedira Aleksey de tentar. Por melhor ou pior, ele sempre gostou de um desafio.
Talvez Ivan estar ali significava que finalmente o considerava como um amigo.
Aleksey sentiu a mão gelada do outro rapaz em sua coxa, entre o lugar onde havia se ferido e seu joelho, como se estivesse contra sua própria pele, mesmo com as duas camadas de tecido que os separavam. Torceu para que Ivan interpretasse o som que escapou de sua boca como um gemido de dor e que ele não reparasse como o coração de Aleksey estava acelerado.
— Como está sua perna? — questionou Ivan, preocupado, se inclinando um pouco mais. As pontas do cabelo de Ivan roçaram contra o pescoço de Aleksey quando ele se inclinou como se fosse examinar o feitiço na calça.
— Bem — Aleksey respondeu, sentindo a boca seca, e Ivan ergueu uma sobrancelha.
Talvez Aleksey o conhecesse melhor do que pensava, porque aquela era a expressão de Ivan que dizia “eu sei que você está mentindo para mim e não gosto disso” sem precisar usar uma palavra. Teve a leve impressão de que a mão de Ivan subira um pouco e sentiu o calor irradiar de onde ele o tocava. Aleksey pigarreou, se ajeitando no banco.
— Podia estar melhor. Não é a coisa que mais dói agora.
— Mais tarde vai ser péssimo — falou Ivan com um tom um pouco mais grave, franzindo a testa em preocupação, e Aleksey desviou o olhar.
Aquilo era bobagem. Ele havia passado por dores muito piores e Ivan sabia disso muito bem. Uma perna latejando por uma noite ou duas não era nada. Não era motivo para Ivan estar ali com ele em vez de ir consolar a própria esposa.
— Eu estou bem, juro. Pode voltar para ela.
Ivan franziu a testa, como se quem estivesse falando bobagens fosse Aleksey.
— Não — declarou ele.
— Não?
Ivan se inclinou, apoiando a mão direita suavemente na perna de Aleksey enquanto buscava algo em um dos bolsos fundos do seu casaco com a outra mão. De tão perto, Aleksey conseguia ver seus cílios longos e o ângulo perfeito que seu nariz formava, conseguia sentir a respiração quente contra sua bochecha e o calor que ele irradiava embaixo dos casacos. Poderia admirar Ivan por horas a fio, se ele deixasse.
Porém, como se para acabar com aquele momento, Ivan logo produziu um potinho de vidro, exibindo-o entre seus dedos compridos num gesto teatral e se afastou de seu rosto, para tristeza e alívio de Aleksey.
— Aqui, eu estava testando algumas fórmulas para o trabalho final da aula de Tratamentos Avançados e Pancrestos e acho que esta pode te ajudar. Você não vai querer saber os ingredientes, mas teoricamente é para ter efeitos analgésicos, anti-inflamatórios e cicatrizantes.
Aleksey franziu a testa, olhando com descrença para o líquido amarronzado de aparência viscosa dentro do frasco nas mãos de Ivan, antes de voltar a encará-lo.
— Você está andando com esse negócio no bolso há quanto tempo? — perguntou cuidadosamente.
— Sei lá, faz diferença?
— Parece estragado — provocou Aleksey, numa tentativa de se distrair da proximidade de Ivan ao lado dele.
— E eu tenho cara de quem iria te dar um negócio estragado? — Ivan se ofendeu e Aleksey deu um meio-sorriso.
— Nunca se sabe, talvez você esteja tentando me envenenar.
— Eu não sou seu tio para fazer uma coisa dessas.
[Continua na Parte 2]
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