[Continuação da Parte 1]
O silêncio que recaiu entre eles era tenso e estranho, e Aleksey olhou para o canteiro de flores mais à frente, cobertos com uma leve camada de orvalho congelado. Ivan falara com tanto ultraje que ele não tinha certeza se fora uma piada ou não. Talvez, em outro dia, ele riria se fosse uma piada. Não naquela noite.
— Eu… desculpa. — Ivan passou os dedos pelos cabelos escuros, tirando a mão da perna de Aleksey e se retraindo. — Eu não deveria ter dito isso. Eu não queria ter dito isso. Sinto muito.
Aleksey ainda podia sentir o peso e o calor onde a mão de Ivan estivera instantes antes, apoiada na coxa, e piscou algumas vezes para diminuir a sensação estranha em seus olhos. Ele se recusava a chorar por aquilo, a derramar uma lágrima que fosse por causa de qualquer coisa relacionada a seu tio.
— Não é como se fosse mentira — respondeu, franco.
— Não, mas também não é como se você precisasse ouvir isso. — Ivan balançou a cabeça, uma mecha de cabelo caindo em sua testa. — Você foi incrível na prova, mesmo com tudo estando contra você. Eu não sei se eu teria conseguido continuar, dadas todas as circunstâncias.
— Você quer dizer, sabendo que Yakov estava na arquibancada louco para me ver perder?
— Não — falou Ivan, suavemente, e sua mão retornou para onde estava antes, próxima ao joelho de Aleksey. Por um momento, o dedo de Ivan circundou o seu joelho, mas Aleksey achou que estava delirando. Talvez fosse só outro sintoma do cansaço da prova. — Mas tinha alguma coisa errada com essa prova, e a escola inteira vai fingir que está tudo bem, que foi uma ótima avaliação, que estava perfeitamente dentro dos padrões, quando todo mundo sabe que não é verdade.
— Eu não posso deixar ele vencer, Vanya. Se for pra perder, que pelo menos seja brigando.
— Eu não sei se eu conseguiria. — Ivan mordeu os lábios, em reflexão. — Não é certo o que ele faz com você.
— Ele me deu um tiro, eu achei que era óbvio que tudo o que ele faz é errado. A menos que você saia por aí atirando nos seus familiares, o que suponho que não seja o caso.
A risada de Ivan o fez se sentir menos pior, o som melodioso como uma pequena benção, ecoando pelo jardim. Ele não queria se mover um centímetro, com medo de que Ivan tirasse a mão de sua coxa, com medo de qualquer bobagem interromper novamente aqueles segundos preciosos de intimidade que conseguia roubar. Aleksey acrescentou:
— Bem, eu realmente espero que não seja o caso.
— Não era só isso. Eu nem sei como explicar, mas ele tem um prazer sádico em te torturar. — Ivan apertou um pouco os dedos em sua coxa, e a respiração de Aleksey parou por um segundo. — Eu fico me perguntando se ele não desconta em você a raiva que ele sente porque sua mãe deserdou ele.
— Ele não foi deserdado, ele só não pode representar a família nem tem acesso ao nosso dinheiro ou ao título — Aleksey explicou, e Ivan lhe lançou um olhar descrente. — Não é a mesma coisa. Os filhos dele ainda pertenceriam à família, se algum dia ele decidir ter outro.
— Ele está fora da linha da família e é isso que importa. Seria completamente ineficiente punir os filhos dele pelas merdas que ele fez. — Ivan dá de ombros. — No final, não tem diferença alguma.
Aleksey sorriu involuntariamente, uma onda de afeição inflando o peito, subindo pela garganta, querendo formar palavras que não deveria dizer. Gostava – não, amava – como Ivan não se importava com nenhuma dessas questões estúpidas que eram impostas, com as cerimônias e as tecnicalidades inúteis; como ele conseguia ser tão gentil e suave quando menos se esperava. Sabia que Ivan se esforçava para passar a imagem de distante e sério que imaginavam que ele tinha, mas se tinha uma das peças que Aleksey havia decifrado, é que Ivan era o mais sensível e perceptivo dos três. Ele conseguia entender o que Morena via nele, o que a havia atraído. Não só entendia, como via o mesmo desejo refletido nele próprio.
— Eu só me sinto frustrado por não poder fazer nada — continuou Ivan. — De não conseguir te proteger de nada disso.
— Me proteger? — Aleksey fez um barulho de escárnio, desviando o olhar.
— Você não deveria brigar sozinho. Você não deveria nem precisar brigar, mas já que é assim que é o jogo, é injusto ser só você. Seu tio tem o Imperador do lado dele, e você tem o quê?
Você e Morena, Aleksey pensou.
Muito mais do que ele merecia ter.
— Se eu pudesse, faria da vida de Yakov um inferno, três vezes pior do que qualquer coisa que ele fez com você — falou Ivan com fervor, suas bochechas ficando rosadas. — Eu o faria nunca mais sequer sonhar em chegar perto de você, eu o faria desaparecer da face da terra se ele sequer ousasse olhar pra você.
— Calma lá, eu não quero ninguém sendo preso por assassinato por minha causa — comentou Aleksey, com certo humor, seu coração pulsando na garganta.
— Só é preso quem é pego — Ivan retrucou com um sorriso de canto e Aleksey sentiu um calafrio.
— Ivan, você e Morena fazem mais por mim do que qualquer outra pessoa. Se não fosse por vocês, eu provavelmente já estaria morto ou algo pior. E isso é mais do que o suficiente, mais do que deveriam fazer. Não preciso que vocês briguem por mim, eu sou capaz de fazer isso sozinho.
— Eu sei que você é capaz, só não acho que o equilíbrio de poder é justo — Ivan falou, reflexivo. — E eu faria qualquer coisa para virar a balança para o seu lado.
Aleksey se sentiu ainda mais cansado. Ele tinha destruído o dia que era para ser o mais feliz da vida de Morena, e Ivan estava ali, ao seu lado, querendo ajudá-lo. Querendo virar a balança para o seu lado. Como se ele fosse digno de qualquer uma dessas coisas. Passou uma mão pelo rosto, se curvando para a frente.
— Eu não quero entrar numa discussão, muito menos nessa discussão. A gente não vai chegar em lugar nenhum, como sempre.
Ivan assentiu. Aleksey daria qualquer coisa para entender o que ele pensava, para entender a intensidade atrás de seus olhos, para saber o que estava tramando. Depois de quase um minuto em silêncio, Ivan ainda estava reflexivo, mas fez um gesto para Aleksey abrir a mão. O pote de remédio reapareceu, quase como um truque, e ele o colocou nas mãos de Aleksey, fechando-as contra o vidro.
— Aqui, antes que a gente esqueça. Se der errado, o máximo que vai acontecer é você ter que tomar mais um banho.
— Por que isso me parece uma estratégia elaborada para me fazer tomar mais banhos? — falou ele, tentando redirecionar a atenção para assuntos mais leves, para se livrar de seus pensamentos e sentimentos, para esquecer tudo aquilo, para mudar o foco de Ivan de Yakov e de como ajudar Aleksey.
Sabia muito bem que quando Ivan pensava demais, o resultado tendia a ser desastroso. Ivan gostava de pensar que não, mas Aleksey e Morena eram os grandes responsáveis pelo seu controle de impulso. Não precisava de muito tempo para ele fazer alguma besteira se fosse deixado sozinho.
— Por que a gente faria isso? — respondeu Ivan, bem-humorado. — Só por que você não toma banho? Todo mundo tem defeitos.
— Olha, eu tomo banho todo dia e sou cheiroso, você mesmo disse! — Aleksey se defendeu, aliviado de ter mudado a direção da conversa e Ivan riu. Havia sido mais uma das vezes que Ivan o deixara completamente sem palavras, algo que acontecia cada vez mais nos últimos meses. — Só acho que é exagero os dois ou três banhos que vocês tomam diariamente.
— É bom! Esquenta as mãos. — Ivan esfregou uma mão na outra, como um ilustrativo.
— Você está morrendo de frio, não está?
— Claro que não, o meu casaco é pesado — falou Ivan, sem muita convicção.
— Sua capa é grande o suficiente pra nós dois, deixa de besteira. — Aleksey levantou uma ponta da capa, num claro convite.
Ivan não discutiu, se aconchegando embaixo do tecido pesado, e se encolheu um pouco para preservar o calor. Não existia homem em Argon que odiasse mais o frio do que Ivan. Morena brincava que se Ivan encontrasse o deus que inventou o inverno, cairia no soco com ele na mesma hora, e Aleksey não duvidava que Ivan ganharia movido apenas pela força do ódio. Apesar de ainda estar exausto, conseguia gerar calor o suficiente para Ivan ficar satisfeito e enrolar mais os dois na capa para manter a temperatura.
Aleksey fechou os olhos, respirando fundo, completamente ciente de cada centímetro do seu corpo colado contra o de Ivan. O silêncio que se seguiu foi muito mais agradável que o primeiro, e, antes que conseguisse impedir, a cabeça dele encostou no ombro de Ivan, que soltou um suspiro que seria inaudível se Aleksey não estivesse tão próximo.
— Lyosha…
O apelido quase o fez dar um sobressalto.
Ivan nunca o chamava assim. Nunca. Era como Morena, e só Morena o chamava, o apelido de criança que ele passara a amar, sempre carregado de uma afeição que ele não entendia direito, um apelido que nem mesmo sua mãe usava. Relembrou a expressão de Morena da última vez que a vira, de como aquela vitória havia sido tão dolorida, de como ela devia estar rodeada de pessoas em algum lugar do castelo, mas completamente sozinha e desorientada. Devia estar se perguntando onde ele estava, onde Ivan estava, se estavam bem. Ivan tinha razão: tudo aquilo era injusto.
Era injusto que Ivan estivesse ali, preocupado com ele, em vez de estar consolando Morena. Era inadmissível que os dois tivessem sido alvos indiretos dos planos de Yakov de machucá-lo e se envolvessem em algo que não tinha nada a ver com eles, tudo por culpa de Aleksey. E era injusto que Aleksey fosse o centro da atenção de Ivan ou Morena, quando ele não era nem mesmo capaz de devolver um terço do que eles lhe davam, e só trazia problemas. Ele não tinha direito nenhum de estar ali, entre os dois, uma ponta solta que sobrava e que só acrescentava complicações. Não era justo para ele, também, que precisava se afundar em segredos e sentimentos para não destruir o delicado equilíbrio que era a amizade que os três nutriam.
Talvez fosse a hora de destruí-la de vez.
Talvez só assim ele conseguiria algum controle sobre a própria vida.
Talvez só assim ele ficaria livre dos sentimentos confusos, do peso que era o carinho que recebia, de todo o resto.
— Deixa a gente cuidar de você. Você merece isso — sussurrou Ivan, levando uma mão à bochecha de Aleksey, completamente alheio aos pensamentos do outro rapaz.
— Não — respondeu Aleksey, se desvencilhando do toque e levantando a cabeça.
— Não? — Ivan pareceu confuso.
Aleksey se levantou de uma vez, deixando a capa com Ivan, e parou à sua frente. Ivan tinha uma expressão que ele nunca vira antes, muito mais suave do que qualquer outra, com uma honestidade e um carinho que Aleksey nunca imaginou que poderia ser direcionado a ele. Sentiu o peito apertar, o fôlego sumir. Ele não merecia aquilo. Se Ivan soubesse metade das coisas que Aleksey pensava sobre Morena, nunca o olharia daquela forma.
Se Ivan soubesse metade das coisas que Aleksey pensava sobre ele, tampouco o olharia daquela forma.
— Não — repetiu, encarando-o. — Volte para a sua esposa, ela está te esperando.
— Lyosha…
— Não me chame de Lyosha — interrompeu, ríspido. — Eu quero ficar sozinho, vá embora.
Ivan se fechou a olhos vistos, toda a vulnerabilidade dos últimos minutos se transformando em algo afiado. Não se apressou para arrumar a capa sobre os ombros novamente, o maxilar travado, e não falou nada enquanto se levantava, lançando um último olhar para Aleksey antes de partir.
Aquela era a decisão correta. Era impossível ver um futuro que não envolvesse mais jogos de Yakov, mais dor, mais preocupação, e ele não iria submeter mais ninguém àquilo. Precisava de uma vida além de Morena e Ivan, além daquela escola. Precisava de muito mais do que aquela vidinha pequena se quisesse conseguir revidar à altura. Ele nunca conseguiria o poder que precisava para sobreviver se estava o tempo todo preocupado com as duas pessoas que mais amava no mundo. Ele nunca conseguiria o poder que precisava se continuasse se contentando em viver de migalhas.
Mas se aquela era a decisão correta, por que parecia que seu coração estava partindo em dois?
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CRÉDITOS
Autora: Isabelle Morais
Edição: Marina Orli e Val Alves
Preparação: Laura Pohl
Revisão: Lavínia Rocha
Diagramação: Val Alves
Título tipografado: Vitor Castrillo
Ilustração: Júpiter Figueiredo
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