Aviso: Essa obra de ficção contém situações de abuso e tortura psicológica, menção a violência física, sintomas relacionados a depressão e ansiedade.
Fúria não era um dos sentimentos aos quais Ivan estava habituado a sentir, ele a considerava um dos domínios de sua esposa. Porém, enquanto caminhava pelos corredores da Azote, sentia a ira crescer dentro de si, espantando qualquer resquício de frio. O destempero era um inimigo do pensamento racional, e Ivan sabia que precisaria se acalmar antes de reencontrar Morena e se juntar aos outros, antes de encontrar qualquer pessoa, mas seus pés o guiaram pelo labirinto que era a fortaleza que abrigava a Azote até deixá-lo no átrio iluminado que dava para a sala da Reitora.
Não conseguia entender o que fizera de errado para Aleksey ficar com raiva e se afastar. Tinha dito algo diferente? Era absurdo demais o que ele estava oferecendo, o que ele estava sentindo? Ivan sabia que Aleksey era orgulhoso e que só aceitara que ele e Morena cuidassem dele, no último ano, porque a alternativa era ficar preso numa casa no meio do nada enquanto morria lentamente. Só que Ivan achava que, depois disso, Aleksey perceberia que toda a sua relutância era bobagem. Esperava que ele tivesse entendido que os dois estavam ali porque queriam, porque se importavam com Aleksey e não queriam que ele ficasse sozinho, porque querendo ou não, ele era parte da família incomum que os três formavam. Queria que Aleksey entendesse que nada do que eles ofereciam era porque eles o achavam fraco e inútil e incapaz, como Yakov Yulievich tanto gostava de dizer e de lembrá-lo. Aleksey era o oposto disso tudo, uma das pessoas mais competentes e corajosas que Ivan já conhecera.
Porém Yakov tinha esse hábito extremamente desagradável de falar mais do que devia, atirando mentiras para todos os lados na esperança de acertar alguém. Aleksey era o alvo mais fácil – e Ivan sabia que era muita pretensão de sua parte presumir qualquer coisa sobre a dinâmica dos dois, mas não conseguia entender como Aleksey nunca fizera nada para revidar.
Nada daquilo importava naquele momento. Ivan, a princípio, tinha ignorado o convite de Yakov, mas vê-lo com seus professores havia acionado todos os alarmes. Qual era o plano que estava desenrolando dessa vez? Podia ser algo inofensivo, uma visita a pedido do Imperador, algo com intenções completamente honestas, mas se tivesse alguma chance de ser mais uma das ideias mirabolantes de Yakov para fazer Aleksey sofrer ainda mais, Ivan não permitiria. Aleksey já estava irritado com ele por motivos que não entendia, não faria diferença alguma acrescentar motivos legítimos.
A porta dupla da sala da Reitora estava à sua frente, todos os símbolos e desenhos esculpidos na madeira cor de brasa encarando-o. Se estivesse correto, Yakov provavelmente estaria ali e, se passasse por aquela porta, Ivan sabia que não teria volta. Sentia o sangue ferver só de pensar na possibilidade de ver a fuça do tio de Aleksey, imagens belíssimas de todos os cenários em que poderia descontar aquela raiva que sentia passando por sua mente. Ivan não era dado à violência e a achava pouco produtiva, mas Yakov tinha esse hábito extremamente desagradável de incitá-la e Ivan, infelizmente, também era um alvo fácil.
Poderia só ir embora, ir atrás de Morena para consolá-la e esquecer tudo aquilo. Se ignorasse Yakov, não faria diferença alguma na vida deles. No entanto, ele precisava saber. Tinha a oportunidade de descobrir o que Yakov estava tramando, e não deixaria isso passar.
Bateu com as costas da mão na madeira, adentrando a sala quando obteve permissão.
Havia entrado ali poucas vezes antes – a sala da reitoria da Azote não era um lugar que os alunos costumavam frequentar, mesmo os que estavam nos graus mais avançados da carreira de Alquimista. O cômodo era muito menor do que se esperaria, as paredes cobertas por estantes com prateleiras envergadas pelo peso dos livros, com a mesa da reitora ocupando grande parte do lugar. Yakov estava acomodado numa das poltronas largas, cobertas com um veludo azul-celeste e, do outro lado da mesa, Kalina Niktova, a Reitora, bebericava seu chá com uma expressão enigmática.
— Ah, finalmente resolveu nos dar o ar da sua graça.
Ivan teria dado um murro em Yakov ali mesmo se não fosse pela Reitora. Seria bom para ele tirar aquele sorriso presunçoso do rosto.
— Estávamos à sua espera, Ivan Irinin. — Kalina ignorou o comentário de Yakov, apontando para uma das poltronas com um gesto elegante. — Soube que sua esposa se graduou, meus parabéns. É sempre muito bom ter mais uma Alquimista Extraordinária entre nós, principalmente alguém tão competente quanto ela. Diga a ela que todos nós de Mièdz estamos orgulhosos por sua conquista.
— Bem… muito obrigado? — respondeu ele, incerto.
Fazia quase cinco anos desde que Ivan se casara com Morena, mas ainda não tinha se acostumado com o fato de que ele era o Príncipe de Mièdz, o consorte da Princesa que representava os interesses da região perante Argon, e que isso significava que pessoas como a reitora da Azote o tratavam com uma deferência com a qual não estava acostumado. Kalina havia nascido e crescido em Mièdz, como dezenas de outros estudantes da escola, e era surreal quando ele parava para pensar que fora da hierarquia academicista de Alquimistas na Azote, ele supostamente era mais poderoso que ela.
Ivan se remexeu na poltrona, desconfortável com toda a atenção que recebia da Reitora, nervoso só de pensar que poderia não atingir os padrões esperados para alguém da sua posição.
— Imagino que esteja confuso quanto à natureza desta reunião — Kalina começou e Yakov se virou, como se fosse falar, mas a Reitora o ignorou: — Nós estamos iniciando um projeto importantíssimo com o apoio do próprio Imperador, e Yakov Yulievich veio até nós para discutir alguns detalhes.
— Si…
Ivan sentiu uma satisfação gigantesca quando a Reitora levantou uma mão para calar Yakov, sequer olhando em sua direção. Kalina devia estar na casa dos sessenta, bem próxima à idade que a maioria dos Alquimistas começava a mostrar os sintomas mais pesados do uso prolongado de magia, e sua paciência havia se esgotado muitos anos antes.
— Você foi considerado um bom candidato para trabalhar nele, já que o projeto tem afinidade com a sua pesquisa — explicou ela para Ivan, dando a deixa para que ele tirasse dúvidas.
— Um projeto com o Imperador? — questionou Ivan, franzindo a testa suavemente. — Por que o Imperador se interessaria na minha pesquisa?
— Se me permite a palavra, Extraordinária Reitora? — perguntou Yakov, a irritação velada em sua voz.
— Se precisa mesmo falar, vá em frente.
Ivan levou uma mão ao rosto para esconder o riso. Yakov se ajeitou na poltrona, arrumando os punhos da sua camisa em movimentos precisos e controlados.
— Eu não falo por mim, Extraordinária Reitora, e sim pelo Imperador. Não deve ter ficado claro o bastante quando me apresentei, então relembro este pequeno detalhe — explicou Yakov, virando-se para Ivan. — Ivan Irinin, o Imperador está conduzindo estudos para melhorar a eficiência industrial de Argon e sua contribuição seria inestimável.
— Eu achei que quem financiava essas pesquisas era o gabinete da Imperadora — retrucou Ivan, apoiando uma mão no queixo.
— É um projeto especial.
— Conjunto?
— Não, é do gabinete Ultramarino.
Ivan levantou uma sobrancelha, curioso. O gabinete Ultramarino tinha um batalhão de Cinemáticos que trabalhavam dia e noite para tornar a conquista das colônias menos turbulenta, então o que eles queriam com a Azote? Yakov sabia que não era do feitio da academia desperdiçar tempo nesse tipo de atividade infrutífera. Os dias em que os outros Alquimistas eram ferramentas de guerra e conquista haviam passado há séculos.
[Continua na Parte 2]
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