[Continuação da Parte 1]
Agora ele conseguia compreender a hostilidade da Reitora.
— Ah. Você quis dizer a eficiência industrial bélica — falou Ivan com certo desprezo. Ele não havia dedicado os últimos dez anos da sua vida à Alquimia para criar coisas com o objetivo de matar pessoas e aumentar os territórios de Argon. — Interessante você ter deixado esse detalhe de fora.
As bochechas de Yakov enrubesceram e ele ajeitou o casaco, num gesto inquieto.
— Nós demoramos duas semanas para chegar às colônias ocidentais com nossos navios atuais hoje, nosso projeto é reduzir esse tempo para cinco dias. — Gesticulou, ilustrando os números, como se Ivan fosse incapaz de entender o conceito de tempo. — Não há nada de bélico nisso.
Duvidava muito que fosse somente aquilo. Se o projeto fosse só isso, por que logo Ivan estava ali, e não qualquer uma das pessoas que estavam se exibindo na arena, alguns minutos antes? Qualquer Entropia seria melhor para aquele projeto do que Ivan, cujo conhecimento sobre combustão se reduzia a acender a lareira quando Morena não estava por perto. Um milhão de perguntas e hipóteses subiram aos seus lábios, mas ele as segurou. Cruzou as pernas, passou uma mão pelo cabelo e apoiou a outra no joelho.
— Bem, se você puder me enviar a proposta de trabalho, vou analisá-la — falou Ivan, tentando parecer o mais desinteressado possível, apesar da curiosidade que queimava dentro dele.
— Você… Você entendeu que é um convite do Imperador? — explicou Yakov devagar, como se Ivan tivesse algum problema de cognição. — Diretamente para você?
— Claro, mas preciso saber se o projeto me interessa — respondeu Ivan, num tom condescendente semelhante ao de Yakov. — E se me interessar, preciso conversar com o meu orientador para organizarmos todo o trabalho. Não vou abandonar minha titulação, a menos que o Imperador esteja me obrigando a fazer isso. Além disso, dependendo do escopo, o trabalho de Morena é muito mais interessante do que o meu. E ela é Extraordinária, e eu não.
Yakov mordeu o lábio inferior suavemente, num gesto pequeno e tão parecido com o que Aleksey fazia quando estava apreensivo, que Ivan teve que desviar o olhar. Sentiu um gosto amargo na boca, subitamente inquieto. Não deveria ter ido até ali. Não deveria ter batido à porta, sentado naquela cadeira, e ouvido a proposta. Não deveria estar curioso. Aquele homem horrível não merecia nenhuma chance. Se fosse um dos planos mirabolantes de Yakov, Ivan havia caído direto na rede, porque a curiosidade sempre fora mais forte, precisava saber do que se tratava.
— Se nós achássemos que a sua esposa era a melhor opção, ela estaria sentada aqui e não você — disse Yakov, por fim, com um tom ponderado. — Mas se é assim que prefere trabalhar, não há nenhum problema. Podemos enviar o plano para sua participação no próximo Expresso que sair de Cinnabar, sem problema nenhum — repetiu. — Já estou conversando com seu orientador mesmo, tenho certeza de que ele aprovará o plano que for proposto, não teremos nenhuma complicação.
— Ótimo. — A Reitora interviu com palmas, com um sorriso amarelo no rosto. — Yakov, envie o plano aos meus cuidados que redireciono para Ivan e Grigori. Nós ficamos muito lisonjeados com o interesse do Imperador, mas não podemos deixar que a possível colaboração atrapalhe a pesquisa que acontece aqui.
— Não é a nossa intenção, Extraordinária Reitora. Reconhecemos a excelência da Azote e trabalhamos para engrandecê-los, não para os atrapalhar. De forma alguma o trabalho que será proposto a importunará.
Yakov respondeu com tanta ansiedade que parecia um garoto, seus olhos fixos na Reitora, as bochechas coradas, os punhos fechados sobre a coxa. Era fácil esquecer que o tio de Aleksey não era tão mais velho do que eles, com apenas doze anos de diferença que os separavam, mas, naquele momento, Ivan não conseguia pensar em outra coisa. Yakov era um menino mimado que não aceitava receber um “não” como resposta e havia sido pego completamente de surpresa, percebeu Ivan com satisfação. Com certeza achara que ele aceitaria o convite de primeira, sem nenhum questionamento, só pela oportunidade e pela novidade – e não estaria errado, porque se não fosse Yakov apresentando a proposta, Ivan aceitaria sem pensar duas vezes, sem nem saber do que se tratava.
Talvez até aceitaria se fosse em outras circunstâncias, apesar de Yakov. Se fosse em um dia em que não tivesse uma lembrança tão vívida do efeito que esse homem tinha na vida do seu melhor amigo, se ainda não estivesse cheio de sentimentos que não conseguia nem começar a desemaranhar, mas que o faziam querer transformar a vida de Yakov num inferno.
— Bem, aguardamos a proposta. — A Reitora se levantou, encerrando a discussão. Caminhou até a porta e a abriu, com um sinal claro de que deveriam sair da sua sala o mais rápido possível. — É sempre um prazer vê-lo, Yakov Yulievich. Espero que faça uma boa viagem de volta.
— O prazer é todo meu, Extraordinária Reitora. — Yakov se levantou, cumprimentando-a com o único beijo na bochecha que era padrão entre Alquimistas de diferentes gradações, antes de sair.
Quando Ivan o copiou, a Reitora o segurou alguns instantes a mais, e falou só para ele:
— Muito bem. Não deixe esses babacas imperiais acharem que mandam no que a gente pesquisa.
O orgulho em sua voz fez Ivan sorrir involuntariamente, e Kalina segurou sua cabeça suavemente, ficando na ponta dos pés para beijar a testa dele, sussurrando uma benção que Ivan ouvira dezenas de vezes antes, proferida por sua mãe. Demorou alguns segundos para se recompor depois que a Reitora fechou a porta, estranhamente comovido com o gesto. Nunca a tomara por uma pessoa religiosa, e era uma descoberta com muitas ramificações. Será que ela estaria sacudindo água-benta pela sala agora que Yakov saiu, para afastar o mau-olhado, como faziam as babushki? Aleksey e Morena se divertiriam demais quando contasse isso para eles.
Qualquer resquício de bom humor que tinha foi embora ao lembrar dos dois, e a raiva voltou em dobro. Aquele era um dia que ficava cada vez mais esquisito, suas emoções à flor da pele, e ele não conseguia esquecer o quão atormentado Aleksey estava quando o encontrara mais cedo, o quão pequeno ele parecia. E Morena – se ele estava irado e se Aleksey estava triste, ela estaria sentindo os dois, esperando por eles em algum lugar do castelo.
Yakov o esperava na virada do corredor. Ivan não deu oportunidade para que abrisse a boca: ele o empurrou contra a parede, segurando-o pela lapela do uniforme e pela gravata, puxando-a até ele ficar vermelho. Yakov ficou desnorteado por alguns segundos e, pela segunda vez naquela noite, Ivan sentiu satisfação em pegá-lo desprevenido.
E então Yakov gargalhou.
— Eu achei que esse era o estilo da sua esposa, não o seu — disse, segurando o pulso de Ivan da mão que o segurava pela lapela. — Curioso, curioso.
— Quieto. — Ivan não reconheceu a própria voz, que saiu como um rosnado, e enrolou a gravata no seu punho. — Eu só vou falar uma vez, então é bom que preste bastante atenção: a próxima vez que você fizer qualquer coisa com Aleksey, você é um homem morto.
— Bem, você é mais direto que ela — respondeu Yakov, com certa indiferença, a voz um pouco anasalada. O rosto continuava vermelho conforme Ivan o enforcava pela gravata. — Morena pintou uma imagem bem criativa do que faria com as minhas vísceras caso ela me visse. Já te disseram como sua esposa tem um dom para as palavras?
— Yakov. — Ivan se aproximou, um aviso na sua voz.
— Eu esperava mais de você — falou ele, com um muxoxo. — Eu trouxe uma oportunidade tão boa, e você retribui como? Com indiferença e violência.
— Eu preferiria morrer a trabalhar com você.
Isso fez Yakov gargalhar de novo, e se Ivan estivesse com a magia preparada, teria cometido um assassinato ali mesmo, naquele instante. Um segundo, indolor, o problema resolvido rapidamente. A raiva parecia o devorar por dentro, corroendo qualquer vestígio de consciência que tivesse.
— Eu não estou brincando — sibilou Ivan, sacudindo Yakov e fazendo com que a cabeça do homem quicasse na parede. — Eu não sou como Aleksey ou como Morena, Yakov Yulievich. Eu não faço ameaças que não vou cumprir.
Yakov finalmente o encarou, sério. Um prazer sádico se apossou de Ivan ao perceber que havia medo nos olhos do outro homem. Era assim que tinha que ser, a ordem natural das coisas: aquele homem devia temer todos eles, devia dormir com um olho aberto e uma adaga embaixo do travesseiro, devia ter a casa toda coberta de feitiços para se proteger dos três. Yakov precisava entender que havia consequências para suas ações.
— Eu não sei como você conseguiu a palhaçada que foi essa prova, mas foi a última vez. Você não pisa mais na Azote. Você não mexe com mais nada que envolva a titulação de Aleksey. Se eu souber que você fez qualquer coisa para afetar diretamente a vida de Aleksey, aqui ou em qualquer outro lugar no mundo, eu vou te fazer sofrer dez vezes mais — vociferou ele, segurando Yakov pelo queixo com uma das mãos, seus dedos afundando contra as bochechas do homem.
Havia algo libertador em perder completamente o controle, em deixar os seus sentimentos tomarem conta, em libertar tudo o que vinha engolindo há tanto tempo. A respiração de Yakov ficou entrecortada, mas Ivan afundou ainda mais as unhas em seu rosto.
— Você entendeu? — perguntou e Yakov piscou uma vez, movendo os lábios, sem conseguir falar. — Eu não ouvi.
— Sim — falou Yakov com dificuldade e Ivan o soltou.
Yakov se desmantelou no chão, cuspindo em um lenço que tirou do bolso, e encarou o sangue que manchava o pano branco antes de olhar para Ivan em completa e total descrença. Havia um novo tipo de respeito em Yakov quando ele se recompôs, como se finalmente estivesse tratando com um igual. As marcas dos dedos longos de Ivan ainda estavam em sua pele, e o tio de Aleksey passou uma mão pelo queixo.
— Você também tem um dom com as palavras — Yakov falou por fim, tentando desamassar a própria gravata num movimento nervoso. — Você e Morena vão colocar fogo no mundo se um dia brigarem.
— Eu te dou uma hora para cair fora da Azote — disse Ivan, fazendo o número com um dedo para garantir que Yakov entendesse. — Uma hora, e se você extrapolar, você vai ver que eu não estou brincando.
— Mas o expresso só sai amanh…
— Uma hora, Yakov.
Ele entendia agora por que Morena gostava tanto desse sentimento, porque se agarrava nele para fazer as coisas só de despeito, como não segurava a raiva dentro de si da maneira que Ivan fazia. A raiva podia ser inimiga do pensamento racional, mas era deliciosa. Havia se livrado de um fardo que carregava há anos e até seus passos pareciam mais leves, uma euforia preenchendo-o ao perceber que finalmente havia colocado Yakov no devido lugar.
Ivan foi embora sem olhar para trás. Já deixara sua esposa esperando por tempo demais.
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CRÉDITOS
Autora: Isabelle Morais
Edição: Marina Orli e Val Alves
Preparação: Laura Pohl
Revisão: Lavínia Rocha
Diagramação: Val Alves
Título tipografado: Vitor Castrillo
Ilustração: Júpiter Figueiredo
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