As emissoras de TV se aglomeravam no local do acidente junto com uma multidão de curiosos, a carcaça retorcida do SUV permanecia imóvel aguardando a perícia, policiais tentavam manter um perímetro, os relatos das testemunhas oculares eram diversos, alguns falavam de uma explosão, outros de um tiroteio, a grande certeza era que o trem havia finalizado com tudo, o trabalho dos bombeiros havia sido excepcional, afinal milagrosamente a criança tinha sobrevivido àquela carnificina e foi necessário muito cuidado para retirar ela daquele monte de ferro retorcido.
– A criança só chorava e gritava “SAI DE PERTO DE MIM!”! –Falou uma pessoa ao repórter de uma das emissoras de TV que tentavam cobrir a história.
– Ela não queria ser socorrida? –Perguntou a repórter em tom de curiosidade.
– Acho que ela não entendia o que estava acontecendo... Levaram ela com um pedaço do carro junto! Acho que não conseguiram tirar na hora.
A entrevista encerrou pouco depois e a repórter voltou para dentro da van prateada da emissora com o cameraman.
– Nossa que cena dantesca!
– Você viu a quantidade de marcas de tiros no que restou do carro e as marcas de pneu?
– Vi sim, e a polícia só na velha ladainha “nada a declarar!” porra! Responde pelo menos o óbvio... Acidente de trânsito!? Porra, trocentos metros de marcas de pneus, um monte de marca de tiros para todo lado, todo aquele sangue... E eles querem que a gente engula uma historinha dessas?
– Pelo menos não estamos escrevendo receita de bolo! Heheheh. –falou o cinegrafista tomando lugar no banco do motorista.
– Será que não dá pra falar com alguns desses comércios e tentar pegar as imagens das câmeras de segurança? –disse a repórter olhando para um mercado do outro lado da rua.
– Não rola... Enquanto você estava pegando as assinaturas de cessão de imagem eu vi uma galera de carro preto parando em cada uma das lojas aqui perto.
– GAET? –Perguntou a repórter desanimada.
– Provavelmente! Pelo menos pareciam. –respondeu o cinegrafista dando partida no veículo e saindo do local lentamente orientado pelos policiais que impediam o acesso as áreas com vestígios da ação que ocorrera durante o dia.
– Grupo de ações especiais e táticas... Força tarefa anticrime organizado... Poderiam chamar logo de GESTAPO! –bufou a repórter. –Não duvidaria que eles tivessem algo a ver com essa merda toda, mas eles não respondem a porra nenhuma, tão acima da Polícia e do Exército e tudo que fazem tá classificado como “secreto” por ordem do presidente.
– Relaxa Clara, só mais 2 anos e muda o presidente, vai que o próximo desclassifica tudo. – disse o cameraman olhando no retrovisor enquanto a repórter acendia um cigarro.
– Tu acredita em Papai Noel também Júlio? Eu não duvidaria que o próximo presidente fosse um dos cabeças dessa porra! –respondeu a repórter dando uma longa baforada empesteando a van com o cheiro do cigarro.
– Bem, deu certo pro Putin! – respondeu Júlio.
– Os Russos não concordam muito.
– Fale pro Putin! Problema dos russos é com os russos!
O silêncio tomou o carro, os dois se olharam através do retrovisor, de repente ambos explodiram em riso e o carro seguiu em direção a emissora, o trabalho deles terminava ali essa noite.
Não muito longe dali, no hospital central uma equipe se reunia na urgência, era imperativo que liberassem uma sala de cirurgia.
– Qual é a situação? – Questionou o cirurgião enquanto chegava... não era dia do plantão dele, mas ele era o único neurocirurgião.
– Radiografias indicam estilhaços menores, porém a maior preocupaçãoestá com o dano logo atrás do globo ocular esquerdo, foi um dano extenso e profundo.
– A peça foi removida?
– Não a equipe de resgate fixou e trouxe com movimentação mínima.
O médico pegou as radiografias da mão do assistente.
– PUTAQUEUPARIU! Como que conseguiu fazer isso?
– Colisão de um carro com um trem, foi um milagre não ter afundado mais pelo que disseram!
– Mais sobreviventes?
– Único sobrevivente, banco de trás, de cinto, mas sem cadeirinha, parece que a mãe tentou proteger ele com o corpo talvez isso que tenha salvado ele.
O médico suspirou, ele imaginou por um instante a dor física e psicológica que aquele jovem acabara de passar, imaginou seu próprio filho passando por situação similar e seu coração apertou. Mas não tinha tempo para ficar emotivo ele precisava ter a cabeça no lugar para ajudá-lo, colocou a máscara, lavou as mãos e vestiu as luvas enquanto o assistente amarrava seu avental.
– Hora de trabalhar. –Disse o médico antes de entrar.
Na sala de cirurgia uma equipe já estava posicionada e já trabalhava nas suturas de ferimentos menores contendo assim a perda sanguínea, outro cirurgião o aguardava enquanto preparava o principal ferimento para os procedimentos retirando cacos de vidro e estilhaços menores do rosto de Fábio que encontrava–se desacordado desde que fora colocado dentro da ambulância.
– Uma coisa é certa doutor Diego, o olho esquerdo dele já era. –disse o cirurgião oftalmologista retirando um pedaço de vidro temperado de dentro do olho do jovem.
– Comentário desnecessário. –Respondeu Diego se aproximando e analisando o ferimento. –Já terminou de realizar a limpeza? – Disse o médico observando a chapa de metal pontiaguda que em algum momento fazia parte da lataria do carro e que agora jazia fincada no rosto do jovem.
– Sim, creio ser o último pedaço na área mais crítica, o olho está totalmente vazado, tomei o máximo de cuidado para não mexer na “gaiola” e tentei limpar o melhor possível para evitar maior contaminação.
– Ótimo, agora é minha vez de trabalhar.
Seria uma longa cirurgia.
Na sala de espera um casal se abraçava enquanto o filho brincava com um carrinho no chão do hospital, o jovem de óculos e cabelos louros estava totalmente alheio aos acontecimentos ao redor, tinha quase a mesma idade de Fábio e pouco lhe interessava estar ali só tinha parado de reclamar quando o pai o convenceu de que não estava ali para tomar uma injeção.
– Vrum! Vrum! –Fazia o jovem enquanto friccionava o carrinho no chão.
– Levanta daí Daniel, o chão tá sujo! –disse o homem olhando com severidade para o pequeno.
– Mas pai!
– Não vou falar duas vezes! –Falou o homem louro de rosto duro e quadrado enquanto afagava a mulher que chorava copiosamente.
O hospital público era um lugar que o pequeno Daniel não estava acostumado, uma enorme quantidade de pessoas aguardava para ser atendido raramente ele ficava tanto tempo e estava entediado, além disso, a única coisa que a mãe dele fazia era chorar e seu pai só não estava com mais cara de bravo do que quando ele brincou com o notebook do serviço dele e derrubou Nescau em cima.
– Tá bom! – Falou a criança sentando-se contrariada olhando para a TV de tubo pendurada no canto da sala que passava um programa de fofoca. –Aqui nem tem desenho.
Subitamente a porta abre e por ela entra uma jovem vestindo trajes sujos e suados indo direto para o balcão de informações seguida por dois policiais militares totalmente paramentados que tentam acalmar e conter as pessoas que estavam na fila aguardando sua vez que agora encontravam–se praguejando por ela ter “furado fila”.
– LI!!!! –grita Daniel ao reconhecer a prima mais velha.
A jovem se vira e vê o pequeno primo e os tios sentados ao fundo da sala de espera e logo se dirige para eles.
– Como ele está? Vocês têm notícias? –perguntou a jovem esbaforida.
– Acabamos de chegar, estávamos até agora no IML para fazer o reconhecimento. –disse o homem enquanto a mulher aumentava o tom do choro ao relembrar a cena horrível de ver sua tão bela irmã daquele jeito. – O enfermeiro que passa os informes disse que a cirurgia já está avançada, mas que ele vai para a UTI depois só pode entrar um por vez lá, já assinamos tudo, mas você é a irmã tu entra, não sabíamos que você viria.
– A academia me trouxe... Nem me troquei, vim direto.
Nesse momento a mulher vê o joelho de Ligia com um curativo com sangue e percebe que a calça da jovem estava faltando um pedaço?
– Eles também tentaram algo contra você!? –disse a mulher em pavor e quase gritando. A pergunta pega Ligia de surpresa, a fazendo ter que pensar um pouco até entender o porquê de tal reação!
– Não tia! Isso foi um acidente na escola! Não fizeram nada contra mim. – Respondeu em voz baixa, porém não estava certa se havia sido compreendida, pois ela agora se afundava no peito do tio Marcos como se quisesse cavar um buraco e desaparecer! –Calma tia!
– Janaina! Mantenha a compostura! –Falou o homem em tom duro, porém sem aumentar a voz.
– D–desculpa! Marcos e Ligia... E–Eu vou lavar meu rosto e respirar um pouco lá fora.
Disse a mulher levantando o rosto vermelho e com a maquiagem borrada. –Vem comigo Daniel!
O menino levantou e pegou a mão da mãe que agora saia como se fosse uma modelo desfilando em uma passarela.
– A tia não tá legal tio, calma!
– Ninguém está, mas ela tem que manter a cabeça no lugar... o dia ainda não acabou.
Marcos e Janaina eram opostos, enquanto um era prático e até mesmo frio em situações como essa, a outra era uma manteiga derretida, Ligia lembrava que a mãe dela perdia horas tentando explicar a Janaina para o Marcos e vice-versa, a lembrança fez seu coração apertar e uma lágrima correr pelo rosto da Jovem.
– Como que minha mãe estava? –perguntou a jovem tentando manter as emoções controladas, mas tremendo. –E meu pai?
– Sua mãe, bem... Pelo que falaram ela se jogou para o banco de trás para proteger seu irmão. Foi feio, mas... Acho que você vai poder ver ela se quiser, já seu pai... eu tive que reconhecer pelas tatuagens, foi complicado até pra mim, sua tia desmaiou na hora. O trem o pegou em cheio.
As palavras foram duras, o coração de Ligia se partiu, nunca mais veria o rosto do próprio pai sem ser nas poucas fotos que possuía uma vez que ele sempre odiou ser fotografado.
– Obrigado por ter feito tudo isso tio.
– Não agradeça!Eu preferia não estar te vendo agora se isso trouxesse seus pais de volta. –Disse o homem que embora mais baixo que a jovem agora parecia um gigante aos seus olhos. –Se precisar de qualquer coisa, nós estamos aqui.
Os dois se abraçaram, eles iriam precisar de toda ajuda possível.
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