Os dois rapazes foram colocados no chiqueiro da viatura, uma velha Parati que tremia mais que batedeira velha quando acelerava e batia como se fosse uma britadeira nos buracos dado o péssimo estado dos amortecedores fazendo a viagem ser a mais desconfortável possível, enquanto a jovemfoi no banco de trás da viatura. Todos em absoluto silêncio até a chegada na delegacia do centro.
A delegacia era uma verdadeira zona, havia uma fila enorme de pessoas para serem atendidas, mas um dos policiais se adiantoua falar com o atendente que em seguida deixou a recepção retornando alguns minutos depois.
- O delegado vai falar com vocês, pode entrar pra sala de depoimento.
Os demais munícipes e membros que estavam aguardando sua vez para registrarem suas ocorrências ficaram notavelmente irritados com a preferencial dada à guarnição que estavam trazendo três crianças, mas nada falaram ao menos em tom audível.
O grupo se dirigiu guiado pelos policiais pelos corredores da delegacia, até a sala de depoimento, porém ao entrarem nela a mesma já contava com a presença de várias pessoas.
- Maman?
- Que pensez - vous que vous faites, Carol? Avez - vous perdu votre raison?
- Mais je n'ai rien fait!
- Ehhhrrr... Alguém pode traduzir? – Questionou Daniel em tom sarcástico – Ao menos a parte da Carol? Porque a da mãe eu já imagino o que foi só pelo tom de voz!
- Quem são esses moleques? – A mulher fulminou Daniel com o olhar afiado.
- Eles... bem...– Balbuciou o delegado.
- Esses dois estavam com ela quando a encontramos. – Disse a policial. - Segundo informações de testemunhas eles a arrastaram após agredirem um rapaz que foi encaminhado para o pronto-socorro, sabemos que são dois mauricinhos arruaceiros, minha guarnição já havia encontrado com eles alguns minutos antes de sequestrarem a filha da secretária consular
- SEQUESTRAR? CẼS TÃO MALUCO! - Gritou Fábio. – Ela tava sendo atacada por um monte de lixo a gente ajudou ela e arredou pé de perto.
- Então você seria um caso de legitima defesa seguido por omissão de socorro? – Disse o delegado.
- COMO É?
- Cala boca Fábio. – Disse Daniel com uma cara séria.
Fábio já havia visto o primo com aquela expressão, e em geral quando isso acontecia significa que o “caldo havia entornado”.
Carol olhava para situação totalmente perdida, ela realmente não havia feito nada demais ela só queria conhecer um pouco a cidade, ninguém tinha dado nenhuma orientação a respeito. Ela olhava para todos, os dois policiais com um sorriso sádico, o olhar frio e furioso da mãe e a cara de buldogue do delegado e ao seu lado os dois jovens cada qual transpirando uma energia diferente, Daniel visivelmente assustado, mas Fábio, ele transmitia uma expressão de ódio no rosto como se quisesse esganar alguém e isso a assustava.
- S - Senhor... Posso falar? - Falou a jovem se levantando da cadeira.
- Fique quieta mocinha, disse Emma fazendo a filha se encolher novamente.
- É que eles realmente me salvaram daquele homem.
- Eu já falei para ficar quieta Caroline Torres Caron! Aliás, senhor delegado, fico feliz que o senhor pode resolver essa situação do desaparecimento da minha filha sem termos que levar a situação a Polícia Federal. Eu não me importo nenhum pouco com esses dois moleques, o mais importante é que a minha pequena inconsequente já está comigo novamente, gostaria de ir embora.
- Bem senhora, eu adoraria liberá-las, mas ao que tudo indica sua filha está envolvida em uma situação criminal de agressão e omissão de socorro, eu preciso tomar o depoimento da sua filha ao menos para descartar a possibilidade de uma tentativa de sequestro relâmpago.
- Bem, faça seu trabalho eu só quero que esse dia acabe logo.
- Eu compreendo senhora, mas peço que aguarde, começaremos a partir do momento em que os pais dos dois menores estiverem presentes.
Nesse momento um frio na espinha passou por Daniel e Fábio, eles teriam que encarar os pais deDaniel e pior, a irmã de Fábio.
- Doutor, um dos moleques tem como contato a comandante geral da PM.
- Qual deles?
- O de cabelo escuro.
- Hmmmm... Quem é você moleque?
- Ninguém.
- Ok garoto, alguém chama o conselho tutelar e os pais deles. Deixem a comandante de lado por hora, ela deve ter mais o que fazer do que cuidar de um moleque que eu duvido que seja filho dela.
Algumas horas se passaram até que Marcos chegou na delegacia visivelmente puto.
- Posso ajudá-lo senhor? - Disse o atendente ao ver
- Sou pai e tio de dois menores que estão sob custódia, aqui está meus documentos e minha carteira da OAB.
- O senhor irá representá-los? O conselho tutelar veio com um defensor público.
- Ainda não sei. Posso entrar?
- Pode sim, tem dois PMs na porta da sala que eles estão, só seguir por esse corredor. – disse o atendente apontando para uma passagem.
- Obrigado.
O dia não estava sendo fácil, trabalho corrido, contas apertadas, a situação da Janaina e agora ter que buscar as crianças em uma delegacia, ele andava pelo corredor com passos duros pensando nisso quando escutou a voz de Ligia.
- TIO? É aqui!
- Ué? O que você est...Dane-se. Obrigado.
O Homem entra na sala e se depara com a sobrinha totalmente fardada e equipada e com uma expressão facial ameaçadora em meio a uma sala com diversas pessoas.
- Oi Ligia, eu achei que não poderia vir.
- Eu não podia, mas me mandaram vir. – Disse a jovem olhando para o irmão que seguia com um olhar raivoso.
- O senhor é o pai de um dos jovens? – Perguntou o Delegado enquanto.
- Desculpe-me Doutor, Dr. Marcos Sólon, sou pai do Daniel, o jovem louro ali e responsável legal por Fábio D’Angelus, meu sobrinho. Sou advogado então se quiser ser direto pode falar o que meu filho aprontou, aliás, quem é o advogado que veio com o conselho tutelar?
- Bem doutor, eu sou o advogado. – Respondeu um rapaz alto com menos da metade da idade de Marcos.
- Ok, posso pedir pra você e o conselho tutelar se retirarem um instante? Eu prefiro lidar minhas situações familiares em privado.
- Ehhhr... O jovem ficou meio confuso.
- Sem problemas, já fizemos o acompanhamento junto ao corpo de delito e bem aguardaremos na recepção para conversarmos assim que vocês terminarem. – Disse uma conselheira antes de sair com o advogado.
Ficaram na sala somente os dois jovens, o delegado, o escrivão o qual parecia ser somente uma máquina de transcrição uma vez que nada falara desde o início do depoimento, Ligia e Marcos.
- Caro Doutor Marcos, seu filho está liberado só assine a documentação, mas seu sobrinho envolvido em uma situação de agressão e omissão de socorro que resultaram em homicídio, doloso ou culposo ainda caberá análise e ao juiz decidir. – Disse o delegado enquanto Marcos ficava visivelmente abalado.
- Espera, como assim? Como? Quando?
- Eu já falei pra eles que não foi nada de propósito, eles não estão querendo escutar.
- Já tomaram o depoimento deles? – Perguntou Marcos ignorando o filho.
- A princípio já pegamos tudo o que tínhamos para pegar.
- Então...
- A situação é a seguinte, como o senhor pediu serei direto. Os dois jovens alegam que agrediram um rapaz para defender e impedir uma jovem de ser assaltada.
- Eu estou tentando entender. Onde está essa jovem? É um caso de legitima defesa de outrem.
- A vítima já prestou depoimento e foi liberada junto com a mãe.
- Tá então...
- Os depoimentos dos três se enquadram em grande parte com os coletados por testemunhas da agressão e do estabelecimento em que eles utilizaram o cartão da jovem para pagarem uma série de alimentos e bebidas, o que por si fez levantar a suspeita dela estar sofrendo coação por parte dos dois.
- Coação? Estou confuso.
- Bem, acontece que localizamos a jovem através do uso do cartão de crédito, sabe, uma conta mesada que informa ao pai via SMS onde e no que foi gasto o dinheiro do filho.
- Sei.
- A princípio o caso tava sendo tratado como uma situação de sequestro relâmpago, seu filho e sobrinho foram vistos por testemunhas puxando rudemente uma jovem estrangeira e fazendo-a comprar diversas coisas. Porém os depoimentos dos três deixam claro que ela não foi coagida, embora eu pessoalmente tenha dúvidas a esse respeito dado o grau de violência que a jovem havia sido exposta minutos antes, ainda assim a mãe da primeira vítima que não iria prestar queixa do caso do uso do cartão a pedido da filha e desde que os jovens não se aproximassem mais da jovem, mas daí recebemos a informação do falecimento de um homem na mesma área.
- O assaltante da jovem?
- Sim o suposto agressor da primeira vítima do qual seu filho e seu sobrinho teriam salvo, deixe-me ler o laudo que chegou a alguns minutos... Homem... 98kg... 32 an... ahhh aqui, segundo o perito ele sofreu uma concussão provocada por um objeto contundente que se fragmentou e provocou lacerações no rosto, seguido por um rompimento do baço provocado por diversos golpes na região abdominal.
- Eles realmente mataram um homem? Dois adolescentes que juntos não dão o meu peso mataram na base da porrada um homem quase do meu tamanho. – Perguntou incrédulo o homem que embora não fosse alto pesava mais de 90kgs.
- Não dois...
- Fui eu.
- A sala toda olhou para Fábio.
- Eu estava irritado, eu joguei a garrafa e chutei aquele babaca quando ele estava caído.
- Fica quieto Fábio. - Murmurou Daniel.
- Não, Fábio! Pode falar. – Disse o Delegado. - Claudio, por favor, anote.
- Já está no depoimento Dr. Augusto. – Disse o escrivão.
- Eu não pretendia matar aquele lixo, só queria que ele não viesse atrás da gente então eu chutei o mais forte que conseguia. –Falou Fábio com tom furioso.
- Meu Deus! - Falou Marcos colocando a mão no rosto.
- Bem doutor Marcos, este é nosso problema, seu filho a princípio está liberado, por mais que ele estivesse envolvido em toda a situação todos os depoimentos coletados até o momento não depõem em nada a respeito de ter participado da agressão diretamente, no entanto seu sobrinho, que está sob sua guarda legal, parece ter envolvimento direto na agressão e consequente morte de um homem.
Marcos olhava impotente para o jovem, porém estava curioso.Em qualquer outro caso o jovem já teria sido jogado em uma cela da delegacia da infância e juventude com mais uma dezena de outros jovens que haviam sido presos por diversos delitos até serem transferidos para um reformatório e não estaria em uma sala com ar-condicionado.
- Se bem conheço esse ramo, isso significa que ele está sendo preso.
- Não. – Disse Ligia, falando pela primeira vez desde que eles se cumprimentaram. - Eu estou assumindo a guarda do meu irmão e vou evitar que ele volte a te dar problemas.
- Como assim?
- A situação é gravíssima, a sua sobrinha por fazer parte de uma força especial e dada a história pregressa da sua família foi conversado com o juiz da vara da infância e juventude e seu sobrinho responderá ao processo em liberdade.
- E nessa situação eu decidi que o Fábio não é uma boa influência para o Daniel então vou afastá-los um pouco e já dei entrada na documentação a partir do momento que...
- Mas, eu não acho que seja necessário.
- Eu sei que você não pediu isso, mas olha o que meu irmão fez.
- Mas e seu trabalho?
- Eu estou assumindo uma função burocrática, vou poder acompanhar ele mais de perto.
- Bem, esta é a situação. Iremos apresentar o caso a vara de infância e juventude, eu até entendo a fúria do jovem, mas ele precisa saber que as ações dele tem consequências e que ele não pode fazer o que bem entende.
- Mãe, eu juro que eles não me obrigaram a nada.
- Não me importa. – Respondeu a mulher enquanto dirigia o carro agressivamente.
- Por que você está tão brava comigo?
- Você sabe muito bem o motivo.
- NÃO EU NÃO SEI!
- O que você estava fazendo naquele bairro?
- Ehhhh...
- Você estava indo pra casa do seu pai, não é?
- Sim. – Respondeu a jovem se encolhendo no banco do carro.
- Eu aceitei esse posto em São Miguel, pois facilitaria sim você ter contato com sua família paterna, mas isso não significa que é pra você ir pra casa dele sozinha e sem aviso, não estamos mais em Lille, essa cidade é perigosa, as pessoas são ruins, você viu o que aquele moleque fez mesmo tentando te ajudar? As pessoas daqui são violentas.
- Ele não é um moleque!
- Como?
- Ele tem um nome, é Fábio e o que ele fez me salvou.
A mãe olhou com reprovação para Carol que por sua vez fitava o horizonte pela janela do carro com um olhar perdido. Nesse momento o semáforo ficou vermelho fazendo o carro parar.
- Te salvou porque você se colocou em risco, se tivesse me obedecido e ficado em casa nada disso teria acontecido.
- Tanto faz. – disse a jovem dando de ombros.
- Felizmente e com sorte, você nunca mais vai vê-lo.
A jovem fechou os olhos, uma tristeza tomou conta do seu coração.
- Amanhã você começa suas aulas, quero que você chegue em casa, separe os materiais e vá dormir pois não quero você dando trabalho para sair da cama.
- Tá bom mãe.
Segundos depois o sinal ficou verde e o carro partiu rumo à residência da Família Caron.
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