Eu me lembro como se fosse ontem. Era o primeiro dia do curso técnico, na primeira aula de fundamentos de enfermagem. Para ser sincera, eu não estava nem um pouco animada. Já o professor, diferente de mim, estava profundamente entusiasmado com a turma nova:
— E o que é saúde? – ele olhava para os nossos rostos esperando que uma alma iluminada tentasse respondê-lo. — Vamos pessoal, tentem!
Eu nem me esforçava. Apenas ficava rabiscando algumas frases no meu caderno, tentando não ser notada. Foi então que uma bolinha de papel me acertou, caindo em cima dos meus textos. Me virei rapidamente procurando um culpado. Nunca fui uma boa detetive então acabei por não achar nenhum. Todos pareciam tão desinteressados quanto eu.
Peguei a bolinha e comecei a desamassá-la.
“Por que você não para quieta?”, questionava o autor do bilhete, se referindo ao fato de que eu me mexia muito na cadeira.
— E você? — disse o professor olhando em minha direção. Me desesperei levemente — O que é saúde?
— Ah, bem...
— É um estado físico com a ausência de doenças — disse uma voz por trás de mim.
— Hum! É uma boa resposta, mas não apenas isso — explicou o homem, ignorando a minha falta de habilidade para responder. — Nesse contexto, podemos dizer que saúde é o total bem-estar físico e mental de uma pessoa. Mas começamos bem! — afirmou, feliz, seguindo a aula.
Eu, curiosa, apenas olhei para o fundo da sala e troquei olhares, pela primeira vez, com Shame Liverston. Ele ainda me jogaria muitas bolinhas de papel e ainda trocaríamos olhares várias vezes.
Aquela noite foi o início da nossa amizade.
Lá estávamos nós três. Eu, Vicent e Rossane voltando a pé para nossas casas. Eu morava próxima dos dois, que viviam juntos em uma pensão. Bom, em quartos diferentes, mas na mesma casa. As famílias deles sempre foram muito unidas! Na nossa antiga cidade, todo mundo sabia que a família Poisson e a família Boole eram quase uma coisa só. De certa forma, a pequena família Date também estava sempre presente. Já fazia um tempo que só meu pai e eu carregamos esse sobrenome.
— Você está bem, Katrin? – indagou Vicent.
— É, você parece bem nervosa. — Rossane também se preocupou. — Aconteceu alguma coisa?
— Bem, vocês sabem como é. – Pensa idiota, pensa! – Meu pai vai andar de avião para lá e para cá. Tenho o maior medo de que alguma coisa aconteça com ele. Eu sei que é meio paranoia da minha cabeça, mas acho que virou um trauma depois do que aconteceu com a minha mãe.
— Não fique assim! A probabilidade da gente morrer atropelado agora é bem maior do que a do seu pai morrer em um acidente de avião – afirmou Vicent.
— Que reconfortante – respondi em tom de brincadeira.
— O que você esperava dele? – zombou Rossane.
E assim seguimos todo o caminho. Indo de um ponto a outro em uma conversa meio morna que, para ser sincera, ajudava a diminuir a ansiedade de chegar logo em casa. Uns 40 minutos depois, Vicent e Rossane se despediram e seguiram para o outro lado da rua. Estávamos no meio do inverno e, por isso, quase tudo já estava escuro. Eu estava torcendo para que Shame estivesse me esperando ou, pelo menos, que estivesse perto.
Fui me aproximando da porta de casa tentando parecer normal. Tentando esconder a minha felicidade exagerada e nervosismo. Assim que eu coloquei a chave na tranca, escutei a voz de Shame vindo de dentro de casa, me chamando. Meu coração começou a bater muito rápido. Fiquei com um medo real de infartar, por meio segundo. Bobagem! Entrei com tudo, superfeliz! Shame deve ter vindo de bicicleta por outra rua para me surpreender.
Assim como do lado de fora, tudo estava escuro. Talvez ele quisesse fazer alguma surpresa. Fechei a porta.
— Shame? — chamei pelo garoto e acendi uma das luzes. Um choque imediato.
—Shame… — soltei baixo, respirando com dificuldade e chorando, descontroladamente.
Lá estava ele, com uma faca atravessando seu estômago.
Algo com um sorriso maligno e olhos vermelhos como o sangue o segurava pela gola, apreciando a vista, arrancando o pouco de vida que o meu loirinho ainda tinha. Shame tentava, inutilmente, se afastar do seu assassino, o empurrando sem qualquer tipo de força. Ele me pedia ajuda com o olhar.
Antes que eu pudesse fazer alguma coisa, um cutelo atravessou seus fios loiros e pousou em seu crânio. Só consegui deixar um “não” fragilizado escapar da minha boca. Foi quando aquela criatura terminou de rasgá-lo, dispersando o seu sangue por toda a sala. Não aguentei um único segundo depois disso. Vomitei tudo que podia logo ao meu lado. Bem naquela hora, quando eu precisava gritar por socorro, não conseguia, me afogava.
— Parece que cometi um pequeno erro – disse o olhos vermelhos, andando em minha direção.
Desesperada, tentei empurrar meu corpo para longe, mas, minhas pernas estavam congeladas. Caí encostada na porta. Não conseguia ignorar o cheiro de sangue que me causava mais náuseas.
Meu coração estava tão acelerado que falar se tornava difícil. Eu apenas babava e chorava, feito criança. Foi quando um calor me envolveu, seguido de uma luz. Aquilo me paralisou ainda mais. Durou apenas alguns segundos e logo me senti congelada novamente.
Nesse momento, os olhos estavam a um metro de mim, apontando o seu cutelo.
— Que droga! Tudo que eu não queria que acontecesse aconteceu hoje, que azar. — Meu corpo só tremia. Ele ficava frio à medida que sentia a morte chegar. Perdia a consciência perante as últimas palavras do monstro assassino na minha frente: — Tenha bons sonhos…
Inquisição é uma obra literária de fantasia científica que constrói um gigantesco universo mágico, tijolo à tijolo, sob a ótica da ciência moderna.Do romance à ação, da comédia à tragédia, “Inquisição: O Teorema Perdido de Fermat” é o primeiro volume da série e narra como uma instituição ousou se colocar entre a humanidade e o fim dos tempos.
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