O dia estava amanhecendo. Odilon, parado perto da janela, tomava um chá de ervas calmantes, enquanto apreciava o nascer do sol sobre a pequena floresta conífera e sentia em seu rosto a leve brisa gelada, vinda dos montinhos de neve que tomavam conta do quintal.
Estavam em uma pequena choupana, no meio dessa floresta coberta de neve. Andrhel, o homem que salvou Polipedes, preparava alguma coisa no seu pequeno fogão de lenha, enquanto Polipedes dormia em uma estreita cama no canto do que parecia ser uma sala.
– Será que ela vai aguentar? – Perguntou Odilon, fazendo barulho ao sugar o chá da caneca. – Já faz uns dias que ela dorme sem despertar.
– Ela é forte, uma das mais fortes que eu já vi. – Andrhel fazia uma mistura de temperos. – Logo logo ela acordara. O ferimento já esta quase cicatrizado.
– Como pode ter cicatrizado assim tão rápido?
– Os gigantes de gelo tem a capacidade de se regenerar mais rápido do que a dos humanos.
– Polipedes não pertence aos gigantes de gelo. – Afirmou o príncipe.
Andrhel não insistiu em o convencer do contrario.
– Aaaaiiii! – Choramingou Polipedes, enquanto abria lentamente os olhos.
Andrhel correu para a cabeceira da cama e se colocou frente a feiticeira.
– Yavel? – Disse. – Você está bem?
Yavel é o outro nome de Polipedes, mas somente os gigantes de gelo a chamavam assim.
– Andrhel?! – A feiticeira deu um tímido sorriso.
Odilon percebeu que aquela troca de olhares significava mais que uma amizade. Andrhel alisou suavemente o rosto de Polipedes, que envergonhada o acariciava no braço forte e peludo. O príncipe, desconcertado com a cena tossiu secamente. A feiticeira retirou a mão do amigo do rosto e tentou se levantar.
– Merda! – Praguejou.
– Ainda não está totalmente cicatrizado. – Disse Andrhel, voltando para a beirada da cama com uma vasilha de sopa. – Tome! Isso vai ajudar um pouco.
Polipedes olhou com desdém para sopa.
– Sabe que não gosto disso. Por que não preparou as poções de cura, como te ensinei.
– Eu não tenho as fórmulas. Além do mais isso aqui não é para te curar, é somente para alimentar. Você passou dias dormindo, sem comer nada.
– Não vou comer isso. – Polipedes afastou o braço de Andrhel delicadamente.
– A saúde é sua. – Andrhel colocou a tijela de sopa de volta na bancada. – Então, o que te motivou a vir para Tanhur? Não sabe que aqui está tento repressão aos usuários de magia?
– Só comecei a suspeitar quando toda a guarda da cidade me perseguiu. – Polipedes tentou se levantar, mas não conseguiu. Gemeu e tornou a recostar na cama. – Diga-me, por que estão perseguindo os feiticeiros?
– Ah! Coisa desses religiosos. Milos, o novo rei, está sendo aconselhado pela bancada dos sacerdotes. – Andrhel passou um pouco de água do cântaro para sua caneca. Deu uma longa golada e secou a boca com o punho. – Eles estão dizendo que os tempos de guerra que se aproximam para Azhard é culpa de seu profundo relacionamento com a magia.
– Com isso estão fazendo ele ordenar a execução de todos os seres relacionados a magia, ou algo do similar. – Deduziu Polipedes. – Como você consegue viver tão livremente aqui?
– Bem, eu… – Andrhel hesitou em dar a resposta.
– Diga!
– Eu firmei um acordo com o rei. Protejo essas terras, em troca de não ser incomodado.
– Como pode? – Falou Polipedes, com voz rouca. – Se unir a uma pessoa que está fazendo uma coisa tão horrenda, ao invés de fazer algo.
– Milos é uma criança. Eu não mato crianças. Mais cedo ou mais tarde vai ter alguém que fará algo, mas não serei eu.
– Não mata crianças? – Perguntou Polipedes, retoricamente. – Da ultima vez que se meteu em assuntos políticos você ajudou a destruir um reino inteiro.
– Quem é você para querer me dar lição de moral, Yavel? Por acaso se esqueceu das coisas horríveis que você fez?
Ambos ficaram em silencio, apenas desferindo olhas raivosos um para o outro. Odilon, constrangido e ao mesmo tempo irritado com toda essa situação, resolveu se intrometer no assunto.
– Polipedes, lembre-se pelo que estamos aqui. Temos que ir resgatar Sotrel.
– Sim, verdade.
– E onde ela está? – Perguntou Andrhel.
– Agora se interessa por crianças? – Resmungou a feiticeira. – A pergunta que deveria ser feita é com quem e não aonde.
– Estão com os gigantes de gelo. – Disse Odilon com uma triste voz.
–Eles invadiram o palácio de Antífes, em Fahel. Reviraram tudo, quebraram tudo, atearam fogo em tudo. – Estavam procurando por mim. Eu não estava lá, por isso levaram Sotrel, para forçar Odilon a me usar como moeda de troca.
– Suponho que o responsável por essa invasão tenha sido Adanahel. – Andrhel esfregava a mão no queixo, dando a impressão de que suas suposições eram certas.
– Se bem me lembro, Odilon. – Falou serenamente a feiticeira. – Você disse que tinha um plano. Essa é uma boa hora para compartilha-lo.
– Precisamos reunir um exercito para confronta-los. Se você me ajudar retirarei todas as acusações que Antífes fez contra você.
Andrhel soltou uma gargalhada descontrolada. O homem ria tanto que esbarrou na prateleira, derrubando alguns frascos de tempero e condimentos.
– Você está louco rapaz? – Dizia, tentando conter sua risada. – Entrar em Névoa? No território deles? Isso é muito perigoso.
Odilon ficou desconcertado com a situação, respirou fundo, a fim de não dar nenhuma resposta indevida. Fazia o máximo para desviar o olhar de Andrhel.
– Embora eu não compactue com o senso de humor de Andrhel, – Disse Polipedes, Olhando com reprovação para Andrhel, que ainda suspirava tentando cessar o riso. – tenho que admitir que em parte ele tem razão. Entrar em Névoa é uma manobra muito arriscada. – A feiticeira suspendeu o corpo um pouco para cima, ajeitando o travesseiro. – E nós dois sabemos que seu pai nunca concordara com tal coisa.
– O que sugere fazer então? – Falou secamente.
– Eu tenho um plano, mas também tenho minhas propostas. – Polipedes não fez rodeios ao mostrar que estava querendo ser beneficiada com o problema do príncipe.
– Diga, quais são suas exigências?
– Cem mil dobrões de ouro.
– Mais isso é uma quantia muito grande! – Disse o príncipe, assustado com tal exigência.
– Considere isso como meu pagamento e mais um adicional de indenização pelas falácias que disseram sobre mim. – A feiticeira estava decidida. – Garanto que não fará falta aos cofres de seu pai.
– Muito bem! – O príncipe não quis fazer barganha. – Mas se o plano falhar…
– Não vai falhar. – Interrompe-o. – Você terá sua filha de volta e com meu dinheiro sumirei de uma vez das vistas da família Antífes.
– E qual é o seu plano? – Perguntou Andrhel, tentando se reiterar na conversa. Agora ja não ria mais.
– Você vai me levar até eles como o combinado. Só que ao contrario do que eles pensam eu vou estar a par da situação.
– Ah! Ótimo! Saímos de um suicídio para outro. – Resmungou Andrhel. – Vai mesmo querer levar essa loucura adiante?
– Eu não tenho mais nada a perder. – Odilon estava decidido em seguir com o plano. – E como isso vai continuar?
– Projetarei uma copia de mim, enquanto você finge fazer a troca eu me encarrego de inspecionar o lugar e ver se Sotrel realmente estará la. Se sim, assim que a por em um lugar seguro volto para te pegar.
– É isso mesmo que eu estou escutando? Esse plano é uma porcaria. como pode ter tanta certeza de que isso vai funcionar?
– Bantar não irá perder a chance de me ver humilhada. Então provavelmente ele vai estar lá e vai fazer aquele monólogo tediosos que ele sempre faz.
– Com certeza. – Andrhel meneou a cabeça de forma afirmativa. – E nesse período que você vai checar o perímetro. – deduziu.
– Exatamente. – Confirmou a feiticeira.
– E se esse homem não estiver lá? – Odilon estava começando a duvidar da funcionalidade do plano.
– Dificilmente eles andam separados. vocês so terão que ter cuidado com Adanahel e Eiron. – Anfrhel cruzou os braços, adotando um tom e uma postura mais seria. – Bantar, mesmo sendo o líder é mais maleável, entretando, seus capangas não seguem tanto seus métodos.
– Certamente. – Devemos chamar reforços.
– Como assim reforços? Esse gigante de gelo não vem conosco? – Odilon se referiu a Andrhel com total desrespeito.
Polipedes olhou para Andrhel, implorando para que ele fosse junto. Mesmo sem dizer uma palavra o príncipe percebeu o que se passava e achou estranho, uma vez que nunca tinha visto esse lado sentimental da feiticeira. Passou a vida toda a vendo como uma mulher forte e independente, e agora estava ali, presenciando a mesma feiticeira indomável fragilizada em uma cama, implorando a ajuda de um homem.
– Não importa o quão triste seja seu olhar; eu não vou. – Andrhel virou-se de costas, a fim de evitar o triste olhar de sua amiga.
Polipedes suspirou e cruzou as mãos sobre o colo. Todos ficaram em silêncio. Odilon se sentou e pôs sua e apoiou sua caneca na mão esquerda, que pusera apoiada com o cotovelo em cima da mesa. Polipedes estava com um olhar pensativo, olhando para o vazio. Andrhel permanecia de costas. Seu olhar estava triste, pois mesmo sua real intenção era a de ajudar Yavel e o príncipe, todavia sabia que não poderia deixar aquelas terras; sabia que sua obrigação com Milos estava acima de sua amizade de sua antiga amizade. “ o rei seria implacável, se soubesse que eu deixei essas terras.”, pensou. “Torac já foi invadido pelo exercito de Polian, se eu me ausentar posso deixar os inimigos entrarem aqui também.”
– Merda! – A feiticeira fez um gesto negativo com a cabeça.
– Não adianta Yavel. Tentar derrotar os gigantes de gelo com ideias vagas e pouco contingente é impossível. – Andrhel pegou um pedaço de pão em cima da bancada, molhou na sopa e comeu. – Desista.
– Não podemos desistir. – Odilon levantou a cabeça, depois de ter quase dormido. – Minha filha esta nas Mãos desses homens.
– Não se iluda, Odilon. A essa altura sua filha já deve estar morta.
Odilon se levantou e confrontou Andrhel, que se manteve ereto, mostrando que seu tamanho era maior do que o do jovem príncipe.
– O que? Vai encarar? – Andrhel pegou seu machado e começou a deslizar o dedo no fio da arma.
Odilon fitou seu olhar nos dele. Sabia que não poderia ganhar essa luta, mas ficou la, parado, recebendo o bafo quente que saia das narinas de Andrhel.
– Ah! Por favor! – Polipedes estendeu a mão direita e uma duas luzes roxas, em formato de mão distanciaram o príncipe do gigante. – Dois homens feitos brigando por bobeiras. Andrhel, pare de ser pessimista. Odilon, pare de enfrentar Andrhel. Ele nos ajudou e recebeu-nos em sua casa. Seja mais gentil.
– Minha filha foi sequestrada e minha casa destruída. Esse… brutamontes diz que minha menininha esta morta. E eu que sou o indelicado?
– Sejamos francos, príncipe. Já tem dias que isso ocorreu. Bantar detesta esperar e até agora você não entregou Yavel.
– Eu já pedi para parar de falar asneiras, Andrhel.
– Isso são fatos.
– A situação vai se resolver. – Falou Polipedes sutilmente.
– Ah é? Vai se resolver? Quem vai resolver? – Berrou.
– Eu vou resolver. – Retrucou a feiticeira, com um grito.
– Ah é? E como vai fazer?
– Eu vou me entregar. – Sussurrou.
Andrhel, irritado com que acabara de ouvir foi para fora da casa. Bateu a porta com tanta força que parte da neve que estava no telhado caiu.
– Você… você não pode se entregar. – Odilon esfregava aos mãos no rosto.
– É o único jeito. Prepare nossas coisas. Sairemos em breve.
Polipedes passou pelo pequeno caminho de pedras, que ia da casa ao portão de saída. Passou por Andrhel, que estava sentado do lado de fora, bebendo algo em uma pequena garrafa, mas não quis olha-lo diretamente.
Andrhel, ao perceber que a feiticeira se aproximava, desviou o olhar para não a ver partir. Sabia que sentiria saudades, porém não queria aceitar a ideia absurda que ela teve, por isso estava aborrecido.
– Sabe, Andrhel – Sussurrou Odilon no conto do ouvido. – eu pensei que você era um homem de verdade. Uma cara capaz de enfrentar qualquer desafio. Vejo que estava enganado. Você não passa de peão nos jogos dos reis, um mero utensílio da realeza. Foi assim com Bantar, agora com Milos e sabe o que mais? Vai ser assim com todos os outros reis que vierem, sabe o por que? Porque você é um fraco. Apenas, mais uma marionete.
– Fui eu quem libertou uma prisioneira para satisfazer os desejos de Bantar?
Odilon cuspiu no chão.
– Você é um verme.
– Vou lembrar disso quando você estiver em apuros novamente. Agora vá embora. – Andrhel fechou a mão direita. – antes que eu acabe com você.
Odilon saiu encarando Andrhel, que observando o olhar de ameaça do príncipe, levantou a cabeça, em sinal de questionamento.
Polipedes já estava longe da casa. Odilon apressou o passo para conseguir acompanha-la.
Comments (0)
See all