E pensar que Samyaza, um ser celestial dotado de tantas virtudes, abdicou de tudo isso para morar junto aos humanos. Ele agora estava preso na Terra.
Samyaza guiava as dezenas de bodes e cabras pelo pasto com seu cajado de madeira, ele nunca imaginaria que aquela seria sua nova vocação na Terra, seu novo lar. Ao olhar para o lado, via sua esposa, Ishtar, sentada em uma pedra olhando para o céu.
A mulher sentia a leve brisa em seu rosto, fazendo seus longos cabelos balançarem no ar, ela olhava os pássaros voarem por todas as direções:
- Eu não entendo. Você tem asas para voar, você pode ir para onde quiser sem ninguém te impedir. Mas, você escolheu ficar aqui, preso no chão junto com a gente. Por quê?- disse após perceber seu marido se aproximando.
- Foi o que eu achei mais certo para mim: mudar completamente de vida. Mas há fatores que me impedem de fazer muita coisa. - ele deitou seu cajado no chão e sentou-se ao lado de Ishtar.
- O quê, por exemplo?
- Longa história. - Ele suspirou.
Houve um silêncio entre os dois, podendo ser escutado apenas o canto das aves e o barulho do rebanho:
- Eu queria poder ter essa liberdade, igual aos pássaros.- Ishtar revela.
- Gostaria de poder voar? - Samyaza sorriu e se levantou.
- Talvez. Eu passei minha vida na mesma cidade, e poder viajar para conhecer lugares distantes não é uma possibilidade. - ela suspirou triste.
Samyaza se afastou um pouco de onde Ishtar estava sentada:
- Samy? Aonde vai?
A última coisa que Ishtar conseguiu ver claramente foram duas asas saindo de trás de Samyaza, e uma brilhante auréola surgindo em sua cabeça. O anjo levantou voo e agarrou a mulher no colo, levando-a para os céus:
- SAMYAZAAAA!!! - Ishtar berrou guturalmente quando sentiu seus pés saírem do chão.
Ela se agarrava nas roupas de seu marido e fechava os olhos, conseguia sentir o forte vento em seu rosto e ouvia o bater de asas do anjo que a levava para longe da terra firme:
- NÃO ME DEIXA CAIR! - gritava.
- Não tema, minha função é exatamente essa!. - Samyaza sorriu.
O anjo sobrevoou as planícies, suas asas cortavam o céu como as de uma ave de rapina em caça. Samyaza voou para cima e os dois atravessaram as nuvens, podendo ver as estrelas no céu cada vez mais perto.
- Ishtar, olhe! - ele disse.
Ela tomou coragem para olhar e viu o quão alto eles estavam, já nem era mais possível identificar onde estava o vilarejo de Ishtar:
- Pelo amor de Assur, estamos muito alto! - Ela sentiu um frio enorme na barriga.
- Isso aqui não é nada, mulher.
- Samyaza, você vai me colocar no chão agora mesmo! - Ishtar gritou no ouvido do marido.
Obedecendo ordens, Samyaza começou a descer, seu corpo deitado na horizontal e suas asas completamente imóveis enquanto planava. Ishtar ainda agarrava firmemente no pescoço de Samyaza, que a segurava no colo:
- Você tem que admitir que a vista daqui é incrível. - Samyaza riu.
- Realmente, é inacreditável. - Ishtar disse boquiaberta.
- Eu sabia que você ia gostar. - o outro sorriu.
Assim que passaram pelas espessas nuvens e se aproximaram cada vez mais do solo, Ishtar viu se estender no horizonte um imenso corpo de água bem maior que um lago, e muito maior que um rio:
- Samy, aquilo é...? - Ishtar olhou desacreditada.
- O Mar Mediterrâneo? É sim. - Samyaza sorriu.
O anjo finalmente aterrissou e colocou Ishtar no chão com toda a delicadeza do mundo. Ela sentiu as pernas bambas e apenas caiu na grama e agarrou a terra com suas mãos, era um alívio enorme estar de volta à terra firme:
- Não acredito. Samyaza, você é louco, completamente maluco. - ela disse ofegante enquanto tateava o chão.
- É melhor você ir se acostumando, porque pretendo te levar a muitos outros lugares. - ele disse, segurado Ishtar por debaixo dos braços e a ajudando a levantar.
Quando a adrenalina passou, Ishtar olhou para o horizonte e viu a imensidão de água, ela respirou fundo e sentiu a brisa salgada em seu rosto:
- Mas como, como chegamos aqui? O mar fica a meses de viagem da minha cidade!
- Nós, anjos, não só podemos voar, mas ir para qualquer lugar a qualquer momento em um piscar de olhos. Não precisa me agradecer. - Samyaza gesticulou.
Ele abriu as asas, levantou voo e desceu até a praia:
- Vai ficar aí só olhando?! - ele chamou.
Ishtar o seguiu logo atrás, se apoiando nas pedras para poder chegar até a praia. Ela tirou suas sandálias e sentiu a areia fresca em seus pés. Lentamente andou até o mar enquanto observava o Sol se pôr bem em sua frente, e seu rosto era beijado pelos raios daquela estrela, que a enchiam de um sentimento de paz, algo que Ishtar não sentia há muito tempo.
A água do mar tocou seus tornozelos e a fez rir, tudo aquilo era novo para ela. Olhou para o céu que era o mais belo quadro de tons de azul, alaranjado, rosa e vermelho; Samyaza voava livremente de um lado para o outro, finalizando a obra de arte.
O anjo voou rasante ao mar e espirrou água sobre Ishtar:
- Samy! - ela exclamou, sentindo a boca salgada.
- Que foi? Quer vir para a praia e não quer se molhar? - ele provocou.
Ishtar não respondeu e apenas deu um tapa na água, espirrando mais água em Samyaza, que não teve tempo de desviar:
- Ei! - ele exclamou - Então, vai ser assim?
Foi travada uma batalha nas ondas do mar, mas os gritos de guerra eram gargalhadas. O cabelo e as roupas encharcadas de Ishtar a faziam lembrar de sua infância, quando ela e seus irmãos brincavam no riacho a tarde inteira.
Era a primeira vez que Samyaza presenciou um sentimento tão genuíno, ele nunca sentiu nada parecido quando ainda morava no Paraíso. O anjo percebeu que aquela era a vida que queria seguir, pois seu maior desejo era se sentir humano.
Ishtar então foi surpreendida quando Samyaza a pegou no colo:
- Samy, me solta! - ela protestou.
- Tem certeza? - o outro disse, ameaçando jogá-la na água.
- Continua me tratando assim pra você ver. Como pode um anjo “cheio de virtudes” ser desse jeito. - provocou.
Samyaza não tinha uma resposta para aquilo, apenas se deixou perder no olhar de Ishtar. Estava apaixonado.
Os dois se beijaram, estava salgado por conta da água do mar, mas esse era o menor dos seus problemas, pois o Sol já havia se escondido no horizonte, e os dois ainda precisavam voltar para casa.
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