Piscou uma, duas, três vezes. Por um momento a menina ruiva havia se distanciado completamente da realidade, lembrou-se, era a única ainda sentada enquanto o padre se pronunciava. Este seria o funeral de mais um aldeão de Lyfort, cidade interiorana do estado de Ramspef, onde a garota residia com seu pai. E ela não tinha a devida atenção ao evento mórbido, na verdade, isso não trazia sentimento nenhum para si, talvez por ser criança, talvez porque não conhecia o defunto o bastante para lamentar como os outros presentes na antiga capela. Estava ali por educação, em lugar do genitor ocupado e que raramente via. -”Quero ir deitar…” - pensou. Tudo ali era tedioso.
-Que os deuses...Sentem-se ao teu lado...E nenhum mal volte a abater seu cansado corpo...O que nos resta, é saudade, em nome da santidade…
-Amém- Ela também se pronunciou, torcendo para que acabasse logo.
Em meio a calmaria, passou do lado de fora da janela uma longa e negra sombra. Surpreendendo One, que não tardou a olhar para fora. E estranhou, parecia ser a única que percebera tal acontecimento, pois todos os enlutados, ainda despediam-se do morto envolto em pano branco. Ficou na ponta dos pés em busca da gigante sombra, nada. Decidiu então sair de mansinho pela lateral espaçosa do salão, esgueirando-se pelos outros aldeões que estavam de pé à frente da porta.
Levantou a saia do vestido o bastante para que pudesse apressar os passos, andando por um corredor curto, mas muito bem decorado. Pilastras de mármore esculpidas sustentavam a estrutura principal, enquanto adornos de madeira enrolavam-se e formavam variadas formas entre a parede, tudo feito a mão, bem cuidado e limpo. Mas nada disso chamava a atenção da menina como a tal sombra, e foi em sua procura que ela se deparou com um antigo portão:- “ Para onde leva? “- se perguntava ofegante. Sem hesitar, One alcançou a velha tranca com a mão, puxou-a e empurrou o portão.
O ranger deste se fez alto, estridente, mas não diminuiu o alvoroço da pequena, que seguiu apressada por ele, parando logo em seguida em um caminho demarcado por terra pisada, sinal de muitas idas e voltas de tal lugar. Não era qualquer caminho, não, não, este levava até um morro muito próximo, e neste morro, estava localizado o cemitério:
-”Já se foi?” - debatia consigo mesma internamente, enquanto olhava ao redor a procura do que poderia ter feito tal coisa na janela.
Quando pensava na possibilidade de ter apenas presenciado alguma ilusão, ou que fora apenas um animal qualquer já antes visto, One pode presenciar a frente do portão do cemitério, a poucos passos de adentrar pelo portão. Grandes cortinas de fumaça mais escuras que o ébano juntavam-se formando cauda, patas, tronco e cabeça de um animal obscuro. Em espanto, ela se escondeu junto ao portão, imaginando o que na terra seria aquilo, e para sua surpresa, vozes em cânticos acompanhavam o mesmo caminho que fizera a poucos instantes. -”Estão vindo para cá?!- Ela olhou para o corredor, confirmando a vinda do cortejo fúnebre em sua direção, e depois voltou a olhar para o topo do morro, qual foi sua surpresa. O animal agora a olhava nos olhos, e nem mesmo a distância entre eles fazia com que não fosse perceptível que era ela o alvo de sua mirada feroz. Os olhos deste brilhavam em tom vermelho, profundos, selvagens, enraivecidos. Poderia aquele cachorro enorme conseguir vê-la também? ou seu cruzar de olhares seria apenas uma inoportuna coincidência?
Esta possibilidade se descartou assim que a fumaça novamente encobriu a criatura, que agora tomava a forma humana de uma mulher de cabelos curtos escuros, e olhos igualmente vermelhos como os do espírito que estava ali segundos atrás. Não tirara sua expressão irada do rosto enquanto se transformava. A criança ao ver os demais passarem por ela tentava impedi-los:
-N...Não! não podem ir até lá!!- Ela segurava as roupas de alguns, que apenas davam-lhe bronca por brincar naquele momento e logo seguiram em frente, mas ela continuava:- A mulher! aquela mulher não é humana!- Todas suas tentativas de fazer com que a escutassem foram em vão, até perceber a aproximação de um rosto conhecido. Um homem de meia idade, muito bem vestido, de óculos posto a face, e um relógio de pulso na mão parou um instante para conferir o que tanto assustava a pequena:
- Hey, o que houve senhorita Carsel? - Ele a indaga aproximando-se.
-Escrivão Fraw! - One segura a mão do homem, tremendo de anseio pelo o que aconteceria se aquela coisa atacasse a todos ali. - Tem uma mulher no portão do cemitério, mas antes ela era um cachorro, e antes era só fumaça e…-O homem a interrompeu tocando sua testa.
-Não parece ter febre… Tem certeza que se sente b…
-Me sinto! Não estou brincando! Ela…- Quando a menina se vira de volta em direção onde havia visto tal aparição, a mulher parecia continuar apenas a observando, mas agora tinha uma expressão neutra, e todos que passavam pelo portão pareciam nem mesmo nota-la ali ao lado da fila.
-Escute...Senhorita Carsel...Veja bem…- Os olhos da menina arregalaram-se e o suor lhe descia a testa frio. suas mãos já não suspendiam mais às do homem, paralisada, ela nem mesmo conseguia fazer outra coisa fora abrir e fechar a boca levemente.-...Não há ninguém lá.
As últimas palavras do homem adentraram sua cabeça como um disparo momentâneo, mas o fato citado não poderia ser mais aterrorizante, do que a cena que lhe passava agora. Bem a sua frente, One podia testemunhar. A alta mulher, acima do caixão parado as portas do cemitério, cravando a mão destra entre o peito do falecido, arrancando-lhe e devorando o que parecia ser um enorme bolo de carne decomposta, sorrindo em sua direção de forma diabólica e sanguinária. Entretanto, nada daquilo realmente acontecia em sua realidade, pois o moribundo ainda estava inteiro sob os olhos dos outros ali, e, de uma só vez, sem nem mesmo conseguir retomar o fôlego, one pôde ouvir, como se fosse lado a lado de seu rosto, uma voz rouca, intermitente e raivosa lhe sussurrando:
~Eu… Vejo... Você.- Assim que a indagação terminou, a menina caiu de uma só vez, desacordada, assustando o Sr.Fraw e quem ainda se deslocava para o local do enterro.
-Senhorita Carsel?! Senhorita Carsel!
Imagem final:
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