Ishtar, ainda tão jovem, presenciou mais milagres que qualquer um. Samyaza desconhecia o conceito de tempo, pois nasceu na alvorada da Terra.
O campo era repleto de flores e diversas eram as cores. Os dois estavam isolados de tudo e todos naquela imensidão floral, apenas um na companhia do outro, se sentindo uns com o universo.
Samyaza, delicadamente, passeava os dedos entre os longos fios de cabelo de Ishtar, sobrepondo uma mecha sobre outra e fazendo uma bela trança:
-Eu fazia isso com meus irmãos lá no Céu. Quando não estávamos brincando, sentávamos na grama e fazíamos tranças no cabelo um do outro. - aquelas memórias reviveram na mente de Samyaza.
Ishtar ficou em silêncio, até olhar para o céu azul acima dos dois:
-Como era lá no Paraíso? Você nunca me conta sobre lá.
-Era bom. Tudo era bom, tudo foi feito para ser perfeito. Yahweh fez aquele lugar especialmente para nós. - Samyaza sorriu, porém com melancolia em sua voz.
Ishtar ouvia atentamente:
-Mas, nem sempre foi assim. Há muito tempo, um anjo se rebelou contra Yahweh, e travou uma guerra que dividiu o Céu. Lúcifer era o nome dele.
-Por que ele fez isso?
-Alguns dizem que foi por causa do orgulho enorme dele, outros dizem que ele queria tomar o lugar do Criador, e tem alguns que dizem que ele estava querendo nos libertar. Acho que nunca vamos saber ao certo. - Samyaza pensou por um tempo.
-E o que aconteceu? Você lutou nessa guerra? - Ishtar se mostrava cada vez mais preocupada.
-Não, eu era muito jovem. Por fim os anjos rebeldes foram julgados e banidos do Paraíso; eles foram mandados para o Abismo, um lugar onde a luz de Yahweh não chega; o Inferno. E esses anjos caídos viraram criaturas terríveis, com chifres e dentes pontudos.
Ishtar imaginou como tais criaturas poderiam ser e sentiu calafrios, ela sabia que anjos eram capazes de tomar formas horripilantes, mas um monstro das profunzedas do abismo era inconcebível para ela:
-Espera, você disse que chegou a ser mais jovem, você teve infância? - Ishtar rapidamente mudou de assunto.
-Eu não diria que seria uma “infância”, pelo menos na concepção de vocês humanos. Nós, anjos, nascemos e cumprimos nosso papel até o dia de irmos embora. Somos como as estrelas no céu; nós surgimos em uma explosão e vamos perdendo nosso brilho até morrermos. - Samyaza sorriu.
-Que espetáculo. - Ishtar riu. - Mas quando você acha que isso vai acontecer? Não quero que você me deixe aqui sozinha.
- Se eu fosse você, eu não ficaria preocupada com a minha morte. Ainda tenho eras e eras pela frente. Até lá você já vai ter ido embora. - Samyaza disse triste.
Os dois permaneceram em silêncio por um bom tempo, Samyaza refletiu no que acabara de dizer; havia muitos outros segredos que ele guardava consigo, segredos sobre sua própria vida e que ele não poderia mais esconder:
-Você acha que quando eu morrer eu posso ir para o Paraíso? - Ishtar se virou para olhar o anjo no fundo dos olhos, e o outro não conseguiu responder.
Ele já havia explicado que as almas humanas iriam para o Mundo Imortal assim que seu corpo físico perecesse, podendo ascender ao Paraíso ou ser condenada ao sofrimento eterno.
-Eu espero que sim, mas não sou eu quem decide isso. - Samyaza levou seus dedos até o rosto da outra e a acariciou. De fato, Samyaza era um Vigilante, estava fora de seu alcance impor julgamento sobre as almas humanas.
-Então, a gente pode se encontrar na vida eterna! Você mesmo me disse que nossa alma permanece na vida após a morte. - a outra exclamou.
-Ishtar, eu não vou para o Paraíso. Eu não posso voltar para lá. - o anjo disse com um nó na garganta.
A mulher o olhou incrédula:
-Como não?
-Fugi de lá para poder ficar com você, Ishtar. Estou cometendo um crime contra o próprio Céu. Além do mais, sou responsável por todos os Vigilantes terem fugido pra cá também. Os arcanjos devem estar nos procurando. - Samyaza assumiu preocupado.
Ishtar, com lágrimas em seus olhos, abraça Samyza, ela agarra o tecido de suas roupas e não pretendia largar nunca mais:
-O que vai acontecer com você, Samy? O que vai acontecer comigo? - ela chorou.
-Eu não sei, Ishtar. Eu não sei. - o anjo a abraça de volta.
Ishtar seca suas lágrimas e o olha diretamente:
-Preciso que prometa que você vai ficar bem.
-Como vou prometer se…
-Só preciso que me prometa. - Ishtar o interrompeu.
Samyaza ficou segundos pensativo e decidiu mentir:
-Prometo.
Os dois se abraçaram novamente, e naquele momento apenas se permitiram ouvir o vento e a respiração um do outro.
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