A noite chegou às ruas de Lyfort e One havia sido levada para a casa do Senhor Fraw, onde dormia em um dos quartos. Ao abrir os olhos ela deparava-se com o teto escuro e observava seus arredores, a fim de situar-se.:
-"Onde…" - Nem mesmo teve tempo de terminar seu pensamento, o senhor da casa havia aberto a porta de forma calma.
-Ah! Você acordou, fico aliviado, já estava para chamar o doutor Petrick…- Ele trazia consigo uma vela já acesa, presa a um castiçal simples, o que iluminou um pouco o ambiente em que antes havia apenas uma chama fraca ao lado da cama. - Se sente bem? Nos assustou quando caiu daquela forma mais cedo.
A menina apenas concordou com a cabeça, sentando-se na cama e arrumando seu vestido, enquanto ela se movia. O homem repousou o castiçal sob uma mesa posta a frente da cama, o que fazia a criança deduzir que alí também seria o local de trabalho do senhor.
-Então, conte-me, sobre a mulher…- Ele se sentou na cadeira que a mesa dispunha. - A que você viu no cemitério.
-Mulher…?- Sua mente estalou, enquanto ela recordava o que aconteceu, os olhos avermelhados e sanguinários olhando para si, o enorme cachorro e o que a mulher lhe havia dito. One recolheu-se arrepiada da cabeça aos pés, abraçando a si mesma. Uma reação normal ao medo.
Entretanto, quando olhou para o rosto de One, Fraw notou uma expressão neutra vinda da menina, como o nada, tão vazia quanto o vácuo do espaço, e foi a vez dele de sentir-se incomodado, pois ela parecia uma boneca de porcelana “movendo-se como gente”.
-Você gritou sobre uma mulher que antes era um..- Ele tentava lembrar, afastando o que havia pensado antes. E sua atenção voltou a ela quando a menina se pronunciou.
-Um cachorro.
-Isso!
-...
Com certo receio, Fraw sentou-se na ponta da cama, olhando o relógio de bolso que sempre carregava, e tomando novamente as rédeas da conversa, falou mirando a janela à sua frente, que não refletia nada além da escuridão do lado de fora.
-Pode dizer para mim.
-Você não ouviu da primeira vez
-…- Ele suspirou e voltou a falar- Ouvirei desta vez, e… Desculpe pela minha falta de atenção na situação.
-....- Ao passar minutos em silêncio, a criança decide que seria bom ao menos discutir sobre isso, e mesmo que estivesse receosa, contou-lhe o que viu.
Ele nada falou, apenas ouvia palavra por palavra da ruiva, arrepiando-se e ficando cada vez mais temeroso pela simples possibilidade de isso ter realmente ocorrido. Quando ela terminou, ele continuou em silêncio, e ela também. Até que batidas na porta fizeram ambos reagirem em um "susto" coletivo. Fraw soltou um risinho por finalmente ver uma ação realmente espontânea dela, mas não conseguia não se incomodar com a expressão tão vazia da menina, já que seu corpo parecia reagir como qualquer outro. E novamente as batidas chegaram a ser ouvidas por eles.
-Vou atender, fique aqui certo? Trarei comida quando voltar, você está com fome?- Sua voz era baixa, calma e parecia tentar confortar a menina, que respondeu com um simples
“-Sim.”
O homem de meia idade desceu as curtas escadas, a história contada não iria sair de sua mente por um bom tempo, abriu a porta, de modo que pudesse ver quem era e ao mesmo tempo proteger-se. A frente dele um vulto feminino parecia literalmente cair a sua frente pousando de pé. Seu vestido longo e leve remexia-se de forma violenta com o vento. Uma mulher baixa, de pele clara, cabelos esverdeados e muito bonita o observava com sorriso gentil.
-E...Em que posso ajudar?- Sua voz falhou por um instante
-Você?...Huhu...Não. você não me serve para nada.
-Err...Perdão?
One havia descido apressada atrás dele quando pensou ter ouvido a voz de uma mulher, antes de sair pegou uma caneta tinteiro muito bem cuidada que estava sob a mesa do amigo e, ao chegar ao último degrau da escadaria, ela e a estranha mulher fitaram-se. Quando viu One, o rosto da recém chegada deformou-se de tal forma que não era mais possível reconhecê-la como a bela figura de outrora, e antes que o senhor conseguisse fechar a porta, ela lhe arrancou o coração com apenas uma das mãos, o segurando enquanto ainda batia em seu palmo por poucas vezes até parar, o homem nada pode fazer além de cair de joelhos e depois ir ao chão, nem mesmo conseguiu dizer o que pensou para a menina pouco antes de ser atacado, “Fuja!...” Mas, se ele tivesse dado ouvidos a ela mais cedo, se no momento do velório houvesse se afastado para algum outro lugar com a menina, teria sido diferente?...Não? Seria esse seu destino?...Lembranças mundanas nem mesmo passaram pela cabeça do homem, que logo morreu sem sequer um exclamar saído de sua boca.
Aquela mulher agora abria a porta, empurrando o corpo que jorrava sangue pelo chão juntamente ao movimento do cadáver, sem dar nenhuma importância real ao seu crime, e agora, a poucos passos da garota. Não hesitava em se aproximar, elevando a mão ensanguentada, que já nem mesmo parecia humana, em direção à ruiva.
-”Essa coisa...Vai fazer o mesmo comigo...Tenho que fugir…”- Pensou One em choque.
-Eu vejo…- O sorriso retorcido se alternava entre o mexer dos lábios desta. - Que coisa...Brilhante...Tão pura..Tão...Deliciosa..
-”Minhas pernas...Não se mexem…”- One tremia, tentava reagir e subir as escadas, mas o que podia fazer? Uma criança seria facilmente pega por algo assim não importa o quanto tentasse correr então, o que faria?
-Venha aqui...Sim?
Levantando a mesma mão com que antes havia matado o escrivão, a criatura levantou o braço para ir contra o peito da menina, mas, quando estava por conseguir o que queria, um som estridente invadiu a entrada da casa. Algo como um disparo havia decepado por completo o braço da mulher, que urrou de dor e se voltou para a porta logo em seguida, onde ao longe podia observar um adolescente de pele escura, segurando duas armas que emanavam uma forte luz de tom dourado.
-GRRR...Maldito!...Maldito, maldito, MALDI..?-
-"Agora! Mexa-se braço, mexa-se!"- Em prantos ela conseguiu levar a mão que segurava o tinteiro.
Enquanto se preocupava em maldizer a sombra que corria em direção a casa, o ser não podia ver que One a atacara com a caneta que trazia consigo, acertando-na nas costelas de forma pouco profunda. Com raiva, ela a jogou contra a parede da escadaria com a mão que lhe restava, fazendo com que a criança batesse fortemente a cabeça, e já preparava-se para novamente ataca-la, sendo novamente impedida por mais um disparo, que desta vez acertou a parede ao lado de ambas, cortando alguns fios de cabelo da mulher. Uma voz masculina ecoou fortemente e o som do gatilho sendo apertado juntou-se ao grito do garoto.
-Corra! Agora! - Outro disparo falho se fez presente. - Tsk…
Obedecendo, ela se desvencilhou cambaleante e subiu as escadas, indo até o quarto do agora defunto. A ruiva escondeu-se atrás da porta, esperando que a pessoa que viera a sua ajuda soubesse o que estava fazendo. Foram minutos incessantes de coisas quebrando e gritos arrepiantes vindas do monstro. Até que um silêncio mortífero se fez presente, restava saber, quem vencera? quem ainda permanecia de pé? Passos pesados subiram as escadas e aos poucos se aproximaram da porta do quarto. A voz rouca e baixa do sujeito de antes veio por trás da porta fechada.
-Hey...Pode sair...Eu matei aquela coisa…- Parecia cansado, e recostava-se a porta.
Sentindo-se segura, One abriu a porta devagar. Paralisando ao perceber que olhos brilhantes a observavam de forma psicótica, não era seu salvador, nunca fora, mas sim a pessoa que causou todo este caos. A face que já fora bela a poucos minutos, estava rasgada, putrefa, irreconhecível, pedaços de sangue e pele caiam dos buracos feitos na musculatura de todo o corpo daquela coisa grotesca.
-E ele vai castigar os maus...E nas chamas do inferno eles vão...Arder...Huhuhu..- Uma mão deforme e quase despedaçada passou pelo vão da porta, a puxando com tal força para que ela fosse arrancada das dobradiças.
Carsel, percebendo sua sina, correu até a janela do quarto, agora aberta. Sem coragem para pular a jovem fechou os olhos ligeiramente, com um rosto desesperançoso e vazio, tudo oque estava acontecendo foi causado por ela? pensava.
O monstro, em estado quase irracional, avançou contra a criança com tudo o que tinha. E ela em um ato tristonho, levantou a cabeça e juntou as mãos em sinal de oração, em prantos, dizendo em tom choroso e baixo.
-Não...Não quero morrer...
Novamente, o silêncio, por segundos, parecido a um sonho, e apenas isso. Quando tudo se tranquilizou ela sentiu que estava sendo suspensa por alguém, teria sido pelo mesmo rapaz de antes? antes fosse. O ataque da criatura havia sido interrompido por uma estranha cortina de névoa negra que entrou pela janela, e, em meio a essa, uma mão feminina agarrara o rosto da mulher, a jogando ao lado contrário ao de One com tal força que a fez atravessar as paredes. A pessoa que a suspendia nos braços de forma protetora, seria uma velha “conhecida” de Carsel. Ela olhou para o rosto da moça, mas não ousou nem mesmo mexer-se. Aquele rosto enraivecido que já vira antes, novamente se formou, e ambas podiam escutar o esbravejo da fera, que só agora podia ver o que acontecia, levantando-se dos escombros do ataque que sofreu.
-Huhuhu...Então era você..Trinity.- Seu olhar enlouquecido podia ser visto em meio a poeira das paredes, brilhando tal qual os olhos de Trinity antes já o fizeram.
-Pff…- Sem nada a dizer fora o breve riso abafado a mulher de cabelos negros como a noite segurou One ainda mais firme nos braços, rosnando como um lobo prestes a atacar, a pressão que se fazia no lugar era sufocante, e a menina quase não era capaz de ficar consciente.
-Nada a dizer? pena...Queria lembrar das suas últimas palavras...Então, morra!- A criatura tentou esmagá-las contra a parede usando a mão que lhe restava, o que foi em vão, já que em um segundo elas já não estavam lá. -ONDE ?!
-Deixa eu te dizer uma coisa, Mariella.
-”Então elas realmente se conhecem?” - pensou Carsel ainda agarrada a Trinity, por pura e espontânea necessidade.
-Andei ignorando seus ataques pela região, só porque um dia estivemos por aí zanzando. Mas...Seu erro foi vir aqui hoje.- Os olhos da morena iluminaram-se de um vermelho vivo e seu rosto retorsia-se como um grande lobo feroz.
-HA! Não somos diferentes Trinity. Eu sei que você no fundo concorda conosco, hm? Vamos, matemos a santa, eu deixarei você ficar com a alma dela. O clã ficará feliz em te ter de volta.
-Hm…-Ela sorriu abaixando a cabeça, olhou rapidamente para a criança e, por um momento, destinou um olhar amoroso para esta. Trinity então a jogou pela janela em um só movimento. E One estendeu os braços na direção dela com a ação, sem entender o que estava acontecendo.
-H…HAHAHAHAHA...ISSO! Trinity, minha irmã! Que inesperad….- Antes mesmo que pudesse perceber, algo cortara o braço restante da criatura-....GHAAAAH!.
A morena estava agora de costas para Mariella, seu braço direito havia deformado-se de forma parecida ao da antiga colega, mas estava inteiro e em uma coloração escura de vermelho, o sangue do monstro escorria braço abaixo, pingando sob o chão.
-Cala a boca. Lixo como você, só serve para enterrar a sete palmos na terra.
Os vidros de todas as janelas da casa estouraram, e Mariella caiu de joelhos no chão. Ela então pode ver, do lado de fora, uma sombra à frente da janela, o menino de antes havia saltado até o primeiro andar, segurando One em um dos braços, enquanto o restante apontava a arma em sua direção. Suas roupas rasgadas, sangramentos que pareciam não estancar, e a ausência de uma das armas mostravam sua perda na batalha contra a criatura. Mas ele a olhava de forma vitoriosa, cheia de orgulho e infantilidade, e atirando contra a testa da mulher diz com um sorriso ferido:
-Te vejo do outro lado.
Minutos se passaram, todos estavam reunidos fora da casa. Trinity havia coberto a menina com lençóis da cama e o grupo parecia esperar alguém. O menino não parecia sentir dor alguma nos inúmeros machucados que sofreu, e estava deitado na grama balbuciando sobre o ocorrido ofegante:
-Ela era forte...E que rostinho feio...Um ômega trêszinho não matava...Cara de c…
“POF!” - A mulher havia estapeado a testa dele.
- AI! EI! EU TO MACHUCADO SABIA?!
Ela não parecia se preocupar o mínimo com a reclamação dele, pelo contrário, riu minimamente por ver sua reação. O vento soprou forte e frio, fazendo parecer que nada de mal havia acontecido. Os vagalumes sambavam pelo ar alegres e dispersos, enquanto o pequeno grupo pôde ver ao longe na estrada dois homens se aproximando. A visão fez com que o jovem atirador indicasse animado:
-Ah! KHALI! MIKAEL! AQUI! -Ele acenava frenético
-Não vai fazer com que Mikael ande mais rápido . -trinity retrucou
-Não, mas avisa a ele que estamos aqui.
-Ele é cego, nem viu você acenar.
-Ora por favor, ele pode sentir e ouvir!
Trinity nada disse, apenas arqueou a sobrancelha e suspirou voltando-se para a menina que parecia estar calma demais. Ao contrário do que geralmente faria, ela vai até ela e senta-se ao seu lado, mas para sua surpresa, One se afastou para o lado ao mesmo tempo. “Me ignorando”- Pensou enquanto ia novamente para o lado, em vão, a criança novamente se movimentou para o lado contrário. Brava ela rosna entre as palavras:
-Não seja tão descarad..
-Você iniciou tudo isso.
-O que?
-No cemitério. Você fez o mesmo que ela.
Os homens haviam chegado na mesma hora em que ela pronunciou a última palavra, boquiabertos, os três companheiros da moça indagaram a suas formas, Khali esbravejou alto, o menino parecia surpreso e também foi barulhento, enquanto Mikael em tom de dúvida, mas muito calmo também perguntou:
- Você fez...O que????
Aviso:
Hoi, desculpem a demora, uma pessoa da minha família teve problemas de saúde por isso não tive tempo de escrever nos dias que queria. Obrigada por ler até aqui, compartilhe e deixe seu like porque me ajuda muito ^^)/
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