Simon foi até seu melhor amigo, Xamã. Conheceram-se no recrutamento para a Grande Guerra, quase vinte anos atrás. Xamã era um homem corpulento, pele amorenada e olhos pretos. O mais habilidoso na arte das lâminas de toda a nação, visto por muitos como o mais corajoso e elegante soldado. 47 anos. E solteiro, caso esteja interessado(a).

Xamã agora era mentor de Kenichi Venturini, único filho do rei Arthur IV. Ele estava no salão de treino, relaxando os músculos depois de uma manhã de aula rigorosa com seu aprendiz.

̶ Olá, meu colega. ̶ Disse ele com o bom humor de sempre. ̶ Algo de novo?

̶ Sim, e é um problema. Preciso de uma segunda opinião.

Xamã pegou a carta enquanto deitava-se no chão, tranquilo.

̶ Não entendo, quem é Claryssa? ̶  Perguntou depois de ler.

Simon deu um suspiro prolongado, aproximou-se do amigo.

̶ Quando fomos até a divisão Cleópatra, logo após o ataque dos nossos soldados, para buscar feridos, Chin encontrou uma recém-nascida. ̶ Disse Simon, recobrando-se dos momentos vividos na Grande Guerra, aquele em que o Reino de Tinta lutou contra o Território de Matake. ̶ Ela disse que levaria a criança para um orfanato, mas pelo visto não levou. Estava criando-a todos estes anos.

̶ Isso é o que dá não termos feito uma visita depois da guerra. ̶ Alfinetou Xamã. ̶ Mas eu ainda não vi o problema nisso.

̶ O problema é: a garota herdou Yin.

Xamã ficou parado, ele bufou e sentou-se.

̶ Guiovane não teve descendentes, Yin-Yang parariam em algum lugar. ̶ Ele disse. Guiovane foi o último trancador de Yin-Yang.  ̶ Me diga, o rei já sabe?

̶ Não. Apenas eu e você.

̶ Fale com a rainha, então. ̶ Aconselhou Xamã. ̶ Rainha Elizabeth aceitaria a garota para que você pudesse treiná-la.

Claryssa recebeu a ajuda de América para encontrar suas irmãs. Amélia e Miranda acabavam de sair do escritório do rei.

̶ E então? ̶ A menina perguntou.

̶ Vamos partir amanhã pela manhã. ̶ Respondeu Miranda.

̶ Mas já? E eu vou ficar onde? Não quero ficar enfurnada em uma carruagem de novo.

̶ Você não vai com a gente. ̶ Disse Amélia.

América murmurou um "com licença" para chamar a atenção do trio.

̶ Vou levá-las para seus aposentos. ̶ A voz dela era baixa e doce, entorpecida.

̶ Sua voz parece de um fantasma.

Claryssa recebeu uma cotovelada forte do ombro.

̶ Menina! ̶ Miranda reclamou, furiosa. ̶ Olha, senhora, eu sinto muito. Sinto muito mesmo.

̶ Não se preocupe, está tudo bem. ̶ Disse América com expressão inabalável. ̶ Sigam-me.

Claryssa massageou o ombro dolorido e andou bem longe de Miranda, estava zangada.

̶ Assim que Vossa Majestade soube o quanto as Muniz são unidas como um nó, ele mandou organizar um quarto compartilhado. ̶ Disse América abrindo a porta do quarto. ̶ Sintam-se à vontade. O almoço será servido às doze em ponto, virei buscá-las. Desejam alguma coisa?

̶ Não, não. Estamos bem, muito obrigada. ̶ Disse Miranda, como sempre expressando seus bons modos.

Assim que a porta fechou, Miranda voltou-se para a caçula.

̶ Fantamas, Claryssa? De onde você tirou isso? Não se fala algo assim pra ninguém! Muito menos em um lugar como esse.

̶ Mas parecia, ué. ̶ Respondeu a menina. ̶ Não acha Amélia?

̶ É verd- ̶ Uma breve olhada no rosto vermelho de Miranda a fez mudar de ideia ̶ Não, o que você disse foi beeeeeem... errado.

Claryssa revirou os olhos e preocupou-se mais em analisar aquele quarto gigante. Três camas de casal, tapetes fofinhos, pinturas antigas e legais.

̶ Esse lugar é in-crí-vel! ̶ E pulou na primeira cama, esquecida de seu mal-humor. A colcha era quentinha, os travesseiros aconchegantes, dormiria se continuasse deitada. Pulou para a segunda cama, depois para a última.

Amélia olhou pela sacada, a visão para o jardim era maravilhosa.

̶ E então... ̶ Disse Claryssa. ̶ ...se eu não vou ir com vocês, onde vou ficar? Voltar para casa?

̶ Aqui, com Simon. ̶ Disse Amélia.

̶ E por quê?

Amélia abriu e fechou a boca, espiou Miranda. Miranda estava remexendo sua bagagem, enfim encontrando sua escova de cabelo.

̶ Venha cá, querida. ̶ Ela chamou. ̶ Diga-me, não gostou de Simon?

̶ Ele é um legal. Mas bebe chá muito quente. Ele não sente dor na boca? É esquisito.

̶ Sério? Esta é sua preocupação? ̶ Miranda penteava os compridos cabelos ruivos de Claryssa. Penteava com muita calma. Amélia fugiu para o banheiro.

̶ E teria outra mais? Não é como se fosse difícil se acostumar a viver no castelo.

̶ Concordo.

̶ Mas e a mamãe? Vai ficar sozinha lá. Bem, não exatamente sozinha, o José vai lá todo dia. Aí ele vai ficar falando sobre comércio, sobre a plantação de mangas dele e sobre qualquer outro assunto chato. Ele poderia escrever um livro, “100 assuntos mais chatos para acabar com conversas”. Mamãe vai surtar.

Claryssa ouviu Miranda rir baixinho.

̶ Mas por que eu tenho que ficar com Simon?

̶ Porque... ̶ As palavras ficaram presas na garganta de Miranda. ̶ Porque sim.

Miranda terminou de pentear os belos cabelos da irmã e agora penteava os seus. Claryssa levantou-se da cama, emburrada.

̶ “Porque sim” não é resposta. ̶ Disse ela.

̶ Mamãe está muito velha, sabe disso. Ela precisa saber que conseguirá se virar sozinha quando... quando ela se for. Entende? Querida, eu e Amélia já conquistamos nosso lugar no mundo, mas e você? Entende o que eu quero dizer? Simon é um bom professor, ele pode ensiná-la medicina.

Bom, Miranda não era tão ruim em mentiras. Aquela até que podia se tornar verdade! Retiro o que eu disse, Miranda não é tão ruim, Miranda é ótima com mentiras.

̶ E sabendo medicina, talvez precise buscar plantas medicinais em outras províncias... Ou atender pacientes do outro lado da nação. ̶ Miranda sabia que um grande sonho da irmã era viajar pelo mundo, conhecer outros costumes e crenças. Claryssa no mesmo instante deu um sorrisinho falso, ela enrolou uma mecha de seu cabelo no dedo indicador.

̶ Não acho que vou conseguir algo assim.

̶ Lembre-se do que mamãe nos ensinou: eu quero, eu posso, eu-

̶ Mas eu não quero tanto assim. ̶ E como mamãe vai cuidar de você? ̶ Amélia alfinetou, saindo do banho. Amélia sempre tomava banhos rápidos. ̶ Você vai ficar aqui, e ponto final. Agora, você não quer dormir? Viajamos a noite inteira.

Claryssa não estava com sono.