Aquele jantar seria horrível.
̶ HENRIQUE II! ̶ Continuou o carinha de vermelho.
Claryssa parou de prestar atenção no restante da família real que entrava. Quando todos entraram na sala, ela finalmente pôde se sentar.
Funcionários bem vestidos entraram no salão, com bandeiras de prata cheirosas. A menina nunca viu tanta comida em toda a sua vida. Diante dela tinha arroz branco, baião de dois, e um arroz doce. Carnes que ela nem sabia de onde vinham. Óleos caros. Um castel de Choclo mais para frente. Pães. Manteiga. Barreado em um suporte chique e preto. Farofa. Pimentas e outras coisa que Claryssa não conhecia. Era tanta comida.
A menina olhou para as irmãs, que estavam igualmente estupefatas.
̶ Por que eu não nasci rica? ̶ Amélia perguntou para si mesma.
Foi meia-hora de silêncio entre as três, que comiam e ouviam as conversas alheias. Uma vez ou outra alguém falava com Amélia e Miranda, falando sobre o quão corajosas e fortes elas são para aceitarem a missão do rei. (Devo lembrar que elas vão para leste, tentar retirar as pessoas de perto da fronteira de Tinta com o Território de Matake.
̶ A viagem do senhor foi boa? ̶ Perguntou o rei para um dos homenszinhos de terno, que Claryssa descobriu serem comerciantes ricaços.
̶ Por favor, Majestade, me chame apenas de Miguel ̶ Disse o homem; ele era jovem, rosto limpo e cabelo para trás, estava muito contente. ̶ E sim, a viajem foi ótima. Só tivemos um pequeno problema com os nossos selvagens. Nada realmente importante.
Nossos selvagens?, Claryssa se perguntou.
̶ São como os selvagens do norte ̶ Explicou Miranda baixinho ̶ Só que invés de nascerem lá, nasceram aqui. Ficam atacando os madeireiros.
̶ O que é isso no seu prato? ̶ Claryssa nem prestou atenção na resposta.
̶ Não sei, tem jeito de repolho. Mas é roxo. ̶ Respondeu Miranda. ̶ Esquisito, mas bom. Pega, tem bem ali.
O jantar o deixou sonolento e cansado, seu único objetivo era tomar um banho e dormir. Só isso.
̶ Pensou no que eu te disse? ̶ Era sua mãe, empoleirada em seu ombro ̶ Vamos, é só tentar. Pelo menos uma vez.
Tudo começou pouco depois de seu pai, o rei Arthur IV, ter enviado uma carta pedindo a presença das Muniz. Quando receberam uma resposta da própria sacertodiza Chin, dizendo que não era capaz de cumprir com aquela missão, mas que suas filhas Amélia e Miranda iriam em seu lugar. E também iria a caçula, de 13 anos, que tinha o dever de entregar uma carta para Simon Freira.
Assim que sua mãe Eliza soube disso, a vida de Kenichi virou de cabeça para baixo.
Não posso acreditar que alguém da sua idade já já vai chegar, ela dizia, essa é uma ótima oportunidade.
Você só sai da ala oeste para vir ao salão de refeições, fica enfurnado no quarto o dia todo. Não fala com seus primos e nem com nenhum filho de qualquer um. Precisa ter algum amigo, sua mãe repetia várias vezes.
̶ Promete que vai tentar? O que tem a perder? ̶ Perguntou sua mãe. ̶ A menina vai ficar um bom tempo aqui com Simon. Vocês vão ter tempo de sair por ai. Estamos no período seco, não vão ter problemas com chuvas. Tem a biblioteca. A torre de observação. Tem muitos lugares para ir. Eu não quero que cresça sozinho.
Kenichi não gostava particularmente de ficar sob o sol quente. Mas estava disposto a acatar o pedido da mãe, mesmo que realmente não se interessasse nem um pouco na caçula esquisita da sacerdotiza Chin.
̶ Vou tentar.
Amanhã suas irmãs iriam partir. Partir para longe.
Claryssa estava no chão de uma biblioteca recém descoberta, entre duas estantes, com um dicionário servindo de travesseiro. Estava entre livros velhos e grossos, fedidos e amarelados.
Não quero ficar aqui, ela pensou. Gostou de Simon, não tinha nada a ver com ele. Claryssa só queria ou voltar para casa, ou ir com as irmãs. Nunca tinha ficado sem qualquer uma delas a seu lado, seria estranho.
̶ Ah, achei você ̶ Ouviu uma voz familiar. Levantou um pouco o rosto e viu o principezinho no pé daquele pequeno corredor entre estantes ̶ Lorenzo Ruiz demorou dez anos para terminar esse dicionário. ̶ Apontou para o livro sob a cabeça de Claryssa ̶ Ele se sentiria bem desmotivado se soubesse que sua obra prima seria usada como travesseiro.
̶ A obra prima dele está toda mofada aqui
̶ Sim, ̶ Ele deu de ombros ̶ quem hoje quer aprender yanomami? Saber só Mundi já é o suficiente.
Claryssa se sentou, um pouco envergonhada de ser pega largada no chão. Olhou para cima. Por que ele sempre estava impecável?
̶ Você vai ficar com Simon, não é? ̶ Kenichi perguntou.
̶ Espera... Você está... ̶ Riu ̶ Puxando assunto? Isso é bem perturbador.
Kenichi rolou os olhos e se sentou no chão, as costas apoiadas na estante.
̶ É o que parece.
Claryssa guardou o dicionário em seu devido lugar e também se apoiou na estante (o que não era muito confortável).
̶ Vou ficar sim com Simon. ̶ Respondeu ̶ Acho que vou aprender sobre, sei lá, ervas e essas...coisas, olha eu não tô conseguindo entender. Você querendo uma conversa como se fosse alguém amigável. Você riu das minhas meias!
̶ Amigável? Não. Não. Claro que não. ̶ Kenichi riu ̶ Meus pais e os comerciantes já vão vir para cá, só quero mostrar como o príncipe se dá bem com a Muniz mais nova. Politicagem, sabe. ̶ Seu sorriso se alargou ̶ E suas meias são lindas. Não existe nada como elas. Tirando sua queda, claro, foi bem melhor que suas meias. ̶ Desviou prontamente de um livro que vinha em sua direção, gargalhando.
Claryssa estava vermelha de raiva e vergonha.
̶ Príncipes não deveriam ser...encantadores?
Kenichi pôs a mão no peito como que ofendido:
̶ Eu sou encantador, tá legal? ̶ Voltou a sorrir. Pegou o livro que quase o acertou e folheou. ̶ Poemas. Um livro cheio de poemas.
Claryssa ficou em silêncio, sem saber porquê ainda estava ali (talvez estivesse se divertindo com aquela confusão).
̶ Gosta? ̶ Ele balançou o livro.
̶ Nunca li um só com poemas. ̶ Ela respondeu.
̶ Você sabe ler? ̶ Dessa vez Claryssa pegou o dicionário de yanomami e o ergueu no ar ̶ Espera. Pera. Pera! Acho isso é um sim. Certo, você sabe ler, já entendi.
Claryssa voltou a se sentar:
̶ Você gosta desses de poemas? ̶ Ela perguntou, lábios crispados e coração acelerado.
̶ Hm... Um pouco. Leio dois ou três poemas e já estou morto de tédio. ̶ Folheou o livreto. Ouviu Claryssa rir, pela primeira vez. ̶ Está rindo? Eu sou um palhaço por um acaso?
̶ Certo, estamos quites.
Comments (0)
See all