Uma noite de verão; sem ventos e sem ruídos, apenas se ouvia o ciciar das cigarras e o cricrilar dos grilos. O céu estava limpo e estrelado, com uma lua tão brilhosa que iluminava totalmente a Serra; quase não se fazia necessário o uso do lampião.
A garota olhava ao redor em busca de vaga-lumes, mas por algum motivo, não havia nenhum. Com uma pá grande na mão esquerda apoiada no ombro, um lampião na mão direita e uma mochila de viagem nas costas, a menina caminhava pela íngreme e estreita trilha da montanha.
Seu vestido roxo com alguns adornos e desenhos simbólicos coloridos contrastava com a sua velha e surrada bota preta. Em volta de seu rosto um lenço branco que fazia um nó na frente.
– Tem alguma coisa de especial nas noites de verão. Murmurou.
– É como se minha alma estivesse livre para vagar por ai. Disse a garota com um cínico sorriso em direção a lua.
Subindo e subindo, sem esboçar nem cansaço nem entusiasmo; até finalmente avistar a silhueta de uma capela a poucos metros de distância.
Era uma igreja simples, feita de madeira. Sua estrutura indicava abandono, mas por dentro estava razoavelmente conservada. Ao entrar na pequena igreja, largou toda sua bagagem em um canto perto da entrada, tirou seu rosário para fora do vestido e foi fazer uma oração perto do altar.
*
Não muito distante dali uma pequena vila coberta em uma fina neblina tomava forma. Com seu lampião em mãos a garota vagava de casinha em casinha.
– Ô de casa!, poderia me conceder um lugar para dormir?” ela gritava de casa em casa, batendo violentamente com sua pá na porta das pobres residências.
Até que finalmente uma das casas ascendeu o seu interior e a porta se abriu. De pé na porta estava uma mulher alta, de cabelos loiros, bochechas rosadas e de forte envergadura; vestindo um grande vestido verde com branco. Ao olhar para aquela garota franzina de traços delicados carregando uma pesada pá em seus ombros, um sentimento materno pareceu transparecer em seu olhar.
– mas que coisa!, uma garota vagando sozinha pelas montanhas, onde estão os seus pais, menina?
– Eu moro descendo a serra, tia. Desobedeci meus pais para subir as montanhas e brincar e perdi a hora. Estava com tanto medo de voltar que acabou ficando noite…
A mulher então olhou de cabo a rabo aquela estranha garota carregando uma pá e um lampião; pensou em dizer algo mas no final apenas soltou um longo suspiro.
– Minha nossa senhora, essas crianças de hoje em dia… Venha, venha; não vou deixar uma criança sozinha a noite. Com um tom de repreensão, a gentil senhora convidou a garota para entrar.
– Nunca mais desobedeça seus pais ouviu bem?
– Sim senhora!
Ao entrar na casa, dava para sentir um gostoso cheiro de comida caseira.
Como a casa era pequena, a cozinha ficava junto da entrada; na mesa estava sentado um homem que parecia estar na meia idade com um grande bigode lendo um jornal. Também possuía uma forte envergadura junto com uma grande barriga, seus suspensórios davam um tom caricato a sua aparência. Correndo na volta da mesa havia duas crianças, um menino e uma menina, cerca de 7 ou 8 anos, ambos usavam roupas bem parecidas com a de seus pais.
– Erich! Frederica! Já falei para parar de correr pela casa! Comportem-se pois temos visita!
As crianças em um instante pararam de correr e encararam em direção a porta. O pai abaixou o jornal e expressou uma reação confusa.
– Eer… Prazer, eu sou Madalena; Lena para encurtar… Peço total perdão pela minha intromissão.” Cobrindo um pouco o rosto com seu lenço, Lena educadamente fez sua apresentação.
Passado alguns segundos da surpresa inicial, O patriarca esboça um amigável sorriso e diz:
– Bom, se minha mulher a convidou então sinta-se em casa!
As crianças curiosas foram para perto da inusitada convidada.
– Moça, moça quem é você? Nunca te vi por aqui. Falou a garota a encarando de perto.
– Ohh, que vestido mais esquisito, tá cheio de desenhos. Disse o garoto tocando em seu vestido.
Antes que pudesse matar sua curiosidade inocente, sua mãe deu lhe uma bela bofetada em sua face.
– Isso é jeito de se tratar uma dama!? Até quando terei que te ensinar bons modos?
O garoto então começa a chorar e corre para o lado de seu pai, na qual faz uma expressão de cansaço como se aquela não fosse a primeira vez que passasse por uma situação vergonhosa. A irmã ria da desgraça do irmão enquanto a mãe pedia mil desculpas para Lena.
– N-não se preocupe eu não me importo” Disse ela extremamente sem jeito.
Passado a confusão inicial, ambos se sentam a mesa. Pela janela se via que a neblina começava a ficar cada vez mais densa.
– Quase ia me esquecendo as maneiras. Meu nome é Olga, sinta-se em casa, Lena.
– Fritz Shmidt. Falou o homem com orgulho.
– Erich! Disse o menino com um sorriso banguela.
– Frederica. Disse a garota abraçando sua boneca de pano.
Novamente Madalena fez suas apresentações e a família continuou a conversar. Prozas simples e comuns; Fritz, assim como sua esposa e todos naquela vila, descendiam de um antigo povo que migrara para o reino de Altarusia a mais de 1 século. A vila em que vivem é mais ou menos comunitária, ambos exercem suas devidas funções nas plantações e nas fazendas, embora o cultivo próprio e o exercício de outros oficios era comum.
E por um longo tempo a conversa continuou; havia algo de aconchegante naquele lugar: as luzes, o cheiro da comida, a família reunida na mesa… Lena sentiu como se pudesse ficar para sempre ali, para todo o sempre…
*
– Auch! Violentamente a garota desperta e coloca as mãos em volta do pescoço. Uma sensação de queimação terrível, seguida de uma incontrolável tosse seca.
– D-droga. Sussurrou ela tirando o rosário em volta do pescoço.
Ao retirar o rosário a dor e a tosse pararam. O rosário brilhava um vermelho escarlate até ir lentamente se apagando.
O quarto estava escuro e emanava uma aura pesada. Não havia muitos moveis, apenas uma cama, uma mesinha e um guarda-roupa simples, todos empoeirados e com teias de aranha, como se tivessem sido abandonados por muito tempo.
Sentada na cama estava Madalena ainda respirando rapidamente. Após mais alguns suspiros, levantou-se e foi em direção a janela do quarto. Lá fora a neblina estava intensa, tudo estava tão branco que nada dava para se enxergar; até que pequenas luzes surgiram no horizonte e pareciam andar em perfeita sincronia.
(Está na hora)
Do lado do armário estava sua bagagem. Madalena então ascendeu o lampião, pegou sua pá e sua bolsa e prontamente saiu do quarto. O ar estava pesado. Caminhando pelo pequeno corredor, em um instante chegou na cozinha. Aquela cozinha era familiar, era a mesma cozinha na qual estava a pouco tempo; contudo, estava nas mesmas condições que encontrara o quarto. Abandonado as traças. Colocou o Lampião no chão e tirou de dentro de sua mochila um pacote de velas coloridas e ascendeu uma. Lentamente começou a se aproximar da mesa e a medida que a luz atingia o local notava-se que havia algo ali em cima.
Ossos humanos. Um fêmur no lado direito, um crânio na ponta, um úmero na esquerda, e outros ossos em cima e em baixo das cadeiras.
Três velas foram acendidas, cada uma colocada no chão perto da mesa; Madalena calmamente recitava uma prece. O ar começava a se agitar e o fogo das velas a oscilar. Terminada a oração, abriu sua mochila e tirou quatro sacolas pretas e começou a colocar os ossos la dentro.
– Oque está fazendo com a gente!!? Ecoou a voz que parecia ser de uma criança.
– Levando vocês de volta. Disse sem olhar para trás.
– Aqui é a nossa casa, você não pode!
O ar começava a ficar cada vez mais pesado, as duas velas postas nas extremidades se apagaram. Apenas a do meio restava acesa.
Madalena lentamente virou para trás. Uma figura com uma forma inconsistente com olhos negros em forma de espiral a encarava. Atrás dela estava mais três figuras de tamanhos diferentes.
– Você não tem direito. NÃO TEM! Gritou e apontou em direção a Lena.
Lena começou a sentir falta de ar, como se uma mão invisível estivesse apertando seu pescoço.
Urgh… V-vocês...P-precisam…… Com uma pressão muito maior daquela sentida ao acordar no quarto, sua consciência rapidamente começou a fraquejar.
– Frederica, já chega. Disse Uma das figuras.
-NÃO! Ela tem que pagar! Gritou o ser apertando ainda mais o pescoço de Lena.
– EU DISSE JÁ CHEGA!
O grito fez com que o ar pesado se esvaísse em segundos e a entidade assustada começou a lentamente tomar a forma que parecia ser de uma garota.
– M-mas, eu não quero ir… E-eu estou com medo… O espírito então abraça chorando a entidade ao lado que havia tomado a silhueta de um homem.
– Você está aqui por nós não é mesmo? Por favor, faça oque tem que ser feito… E não se preocupe em separar nossos ossos, afinal, não estamos mais neste mundo.
Antes que Lena pudesse retomar o folego, as entidades desapareceram em um piscar de olhos.
Sem muito enrolar, Madelena retomou o seu mórbido dever.
*
Na névoa densa que cobria a vila vagava várias silhuetas em direção a um só lugar; o topo onde ficava a capela. Seguindo a procissão das almas, escutava-se conversas, risadas, tristezas e cantares. As memórias perdidas e esquecidas pelo tempo novamente se expressavam. Tão vivos!, mas ao mesmo tempo, tão mortos!
Em cima da igreja uma jovem mulher com uma coroa de velas recitava uma prece enquanto as almas se juntavam ao redor. Ela estava toda de branco, longos cabelos ruivos cacheados. Por mais que seu rosto fosse belo ele não transmitia nenhuma impressão positiva.
(Eu não esperava encontrar tantos espíritos assim)
Madalena caminhava no meio das almas.
– Atenção meus fiéis seguidores! É chegada a hora prometida em que todos irão para o paraíso!
As almas em volta da igreja começavam a se agitar.
– Contudo! Creio que exista infiéis no meio de nós… Portanto, não será possível abrir a porta do paraíso sem que todos estejam de acordo.
Furiosos, os espíritos começaram a emanar energias negativas, a névoa branca ficara cinza escura.
– Filha da…. Acho melhor eu sair daqui. Sussurrou Lena para si enquanto cautelosamente, na ponta dos pés, se mandava.
-Você ai, menina carregando está pá, para onde está indo?
– Eeh…
Os espíritos então rapidamente se reuniram em sua volta. A tensão e adrenalina pairava no ar.
– Diga, minha criança, quem é você? Disse ela em uma voz passiva agressiva.
Madalena lentamente se virou e encarou a mulher.
– Acho… que você já sabe a reposta.
A linda moça abre seu olhos. A esclera de seus olhos eram negros, não havia íris nem pupila, apenas pura escuridão.
– Deveras, minha cara.
Os espíritos assumiram uma forma monstruosa e partiram para cima da garota, mas antes mesmo que pudessem tocá-la, em uma fração de segundos uma rachadura se desenhou no chão em volta de Lena formando um octograma com o semblante da mistica estrela.
O místico símbolo emanou fechos de luzes que dizimou os seres malignos em instantes. As almas restantes assumiram uma forma humanoide e começaram a fugir emanando uma energia de pavor.
– Heh, grandes fiéis os seus, acho que está na hora de você fundar uma nova religião.
A jovem misteriosa deu um sorriso amargo.
Lena então prosseguiu:
– Dizem que a muito tempo havia espíritos fantásticos conhecido como fadas; seres animísticos criados pela própria força da natureza. Entretanto, dentre estes mesmos seres existia também formas malignas. Uma força da natureza que nasce da essência da morte. Para sobreviver é necessário que se alimente de almas perdidas… E o nome atribuído a esses espíritos malignos-
-Banshee. Disse a jovem mulher com uma expressão sombria.
– Há vários anos atrás, as pessoas que moravam nesta área sofreram um horrível destino que fez com que suas espíritos renegassem a própria morte… Mas me diga, minha criança, você sabe o quão raro é encontrar um lugar recluso cheio de almas penadas? Você sabe quantas décadas eu passei para convencer cada uma delas?… Me diga, como pretende pagar pela sua intromissão? Com seus braços? Pernas? Talvez eu devesse arrancar suas tripas enquanto ainda está viva!
– Em nome da única Igreja e do reino de Altarusia; Desapareça deste mundo! Proclamou apontando a pá em direção a Banshee.
- He he he he HA HA HA HA HA!!! Você é engraçada… Qual o seu nome, minha criança?
-Não me chame de sua criança. E o nome é Madalena.
– Muito bem, Madalena, pode me chamar de Duana, meu verdadeiro nome. Se quer tanto que eu suma então venha e tente me exorcizar!
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