Ele ofegava enquanto olhava o estrago que fizera. Não conseguia deixar de pensar “Por quê?”, afinal, Rudy tinha razão. Não havia motivos para que ele encarasse tudo daquela forma. Então por que mesmo sabendo disso, toda e qualquer boa lembrança de sua esposa somente o causava dor, angústia e desconforto?
“Você sabe a resposta.”
Ronald pulou espantado. Achou que estava ficando maluco, pois podia jurar que, instantes atrás, acabara de ouvir uma voz extremamente grave e macabra proferir tais palavras, no entanto, não sabia identificar de onde viera. Foi como se ela tivesse sido emitida direto em sua mente. O homem começou a ficar aflito. Era impossível que alguém tivesse invadido a casa, pois ele havia checado todas as fechaduras ao menos três vezes desde que voltou do trabalho. Imediatamente abriu a gaveta de uma pequena cômoda em seu quarto e retirou sua pistola.
– QUEM ESTÁ AÍ? – Vociferou, apontando a arma para a entrada do quarto, porém, não houve resposta. Nada havia lá além de escuridão.
Lentamente, com aflição e tremor, o homem começou a se aproximar da entrada, ainda com a arma em mãos. Olhou o quarto da falecida filha, passou pelo corredor que ligava os quartos ao cômodo do banheiro. Por onde passava, ligava as lâmpadas, mas nada de estranho havia. Era quase certo que não tinha mais ninguém ali e Ronald imaginou ter ouvido alguma coisa, no entanto, o homem não conseguiria relaxar até que se certificasse totalmente disso.
Chegou à cozinha. Tudo tão normal quanto os cômodos anteriores, mas a partir daquele momento, as luzes da casa começaram a falhar. Ronald, coberto pela escuridão daquela casa, ficou assustado por um instante, entretanto, pensou que não havia motivos para fazer drama por uma simples queda de energia. Foi até um dos armários que ficava no cômodo do banheiro, pegou uma lanterna e voltou para a cozinha. Só faltava a sala de estar. Lá, Ronald teria a sua prova de que o que pensou ter escutado era tão somente fruto de sua imaginação. Aproximou-se lentamente da entrada da sala e ao chegar lá, olhou atentamente. Nada. Somente escuridão. Passou a lanterna por todo canto do local e apenas confirmou. Ronald era o único naquela casa. Poderia agora finalmente dormir em paz, ou assim pensava.
No momento em que Ronald desligou aquela lanterna, a figura do que parecia ser um vulto humano, parado em frente à porta de entrada da casa, com visíveis olhos grandes o encarando, aterrorizou o homem. Mesmo que fosse mais racional acender aquela lanterna de novo para se certificar de que não estava delirando novamente ou mesmo que estava de fato delirando, Ronald não se importou com nada disso naquele momento. Tudo que veio à sua mente naquele instante foi o desejo primitivo de fugir da frente daquela coisa.
Ronald tentou desesperadamente correr, mas ao chegar à cozinha, tropeçou na perna de uma das cadeiras e caiu no chão. Tanto a arma quanto a lanterna caíram de suas mãos. O impacto fizera a lanterna acender. O homem rapidamente engatinhara até a arma e a pegou, porém, antes que pudesse se levantar completamente, algo irrompeu em sua mente.
“Não adianta fugir.”
Aquela mesma voz grave e macabra, que Ronald sequer sabia identificar de onde vinha, novamente pairava sobre sua cabeça. Seu estômago congelou de tanto pavor. Imediatamente virou-se para a entrada da sala e o que viu o fizera paralisar.
Uma mão aparentemente humana surgia daquela entrada acompanhada posteriormente do resto do corpo. A figura do que parecia ser um homem alto, de pele pálida, calça e sapatos pretos e uma camisa social parou completamente em frente àquela entrada. A luz da lanterna não chegava a iluminar seu rosto; as únicas coisas visíveis naquela região eram dois olhos grandes e anormalmente abertos fixados em Ronald. Ao ver aquela figura, cada músculo do corpo de Ronald transbordava um pavor indescritível.
– V-você… Você é o… A-Apodítico…? – Sua voz aterrorizada ressoava em gaguejos.
– Vejo que o recado do último que visitei surtiu algum efeito em você.
Aquela mesma voz novamente se propagava, no entanto, não era possível nem sequer ver algum resquício da boca daquela coisa enquanto tais palavras eram ditas, e ainda que ele estivesse frente a Ronald, não parecia que aquela voz tão sombria estava sendo emitida dele. Era como se realmente estivesse ressoando na mente de Ronald, o que o deixou ainda mais aterrorizado.
Ronald rapidamente pôs a arma em mãos e apontou para a coisa a sua frente, ainda tremendo de medo.
– COMO DIABOS VOCÊ ENTROU AQUI? EU TRANQUEI TUDO! – O homem gritou.
– Foi você quem me permitiu entrar. Através da ferida que deixou.
Ronald nada entendeu.
De repente, o Apodítico começou a se aproximar lentamente, mantendo o inflexível olhar no homem. Em um ato de desespero, o homem descarregou o cartucho da arma na coisa à sua frente. Não sabia dizer se as balas simplesmente não atingiram a figura ou se o pânico de Ronald o impedira de mirar com alguma mínima precisão. A única coisa que era possível saber é que a criatura permanecia ali, como se nada tivesse acontecido.
Ao se aproximar o suficiente, na teoria, a luz da lanterna deveria revelar o rosto daquela coisa, no entanto o que havia ali desafiava as leis da física. Não havia nada senão o que parecia ser uma mancha de escuridão. Era como se a luz não pudesse atingir o seu rosto, se é que havia algum ali. Os contornos eram distorcidos, como se fosse ficando mais escuro à medida que ia adentrando aquela mancha. A única coisa visível naquilo eram aqueles olhos aterrorizantes.
Se era possível deixar o pobre Ronald ainda mais aterrorizado, aquela visão hedionda e totalmente fora da realidade acabara de fazê-lo. O homem sequer sabia mais o que pensar. Estava completamente paralisado e tomado pelo terror.
Ao ficar apenas alguns centímetros de Ronald, a criatura parou. Ronald não aguentava encarar aqueles olhos por mais que cinco segundos. A sensação era parecida com quando sua esposa o encarou no dia de sua morte. Era como se aqueles olhos penetrassem até o canto mais profundo de sua alma.
– O-O que é você? – A voz apavorada de Ronald indagou.
– Vejo que está confuso, Ronald. Não seria justo privá-lo da verdade.
Ronald permaneceu em silêncio por alguns segundos, no entanto, ao tentar raciocinar, prosseguiu.
– O-O que você fez… Com minha esposa e minha filha…? – Gaguejou.
– É um fato que me encontrei com sua filha – A criatura manteve-se em silêncio por um instante, e então prosseguiu. – No entanto, jamais cheguei perto de sua esposa.
Ronald estava confuso, afinal, tinha certeza de que aquela coisa havia aparecido para a sua esposa também. Era muita coincidência que não apenas dois membros da família se suicidassem em meio aqueles casos, como também que a criatura estivesse agora mesmo visitando Ronald.
– Você tem certeza de que não sabe o motivo, Ronald? Não tem nem ideia do que possa ter levado a sua esposa àquele trágico destino?
Ronald ficou em silêncio. Sentia que não adiantaria mentir para aqueles olhos.
– Ela o amava e admirava muito, não? Você era como o próprio mundo dela. Você também se orgulhava de tê-la como esposa e dizer que a amava. Era um casal tão lindo e apaixonado…
Aquelas palavras causaram angústia em Ronald.
– Não gosta de ouvir isso, né? Eu imagino o porquê. Pode ter mentido para seu amigo naquele parque, mas não pode mentir para mim. Muito conveniente dizer que não conhecia aquela mulher e pôr a culpa do seu nervosismo em mim.
Ronald começou a sentir um nó na garganta.
– Creio que nem preciso perguntar o motivo de ter se encontrado com ela em um motel uma semana antes da morte de sua esposa, afinal, o pobre Ronald estivera tão carente devido à carga horária do trabalho da mesma…
A garganta de Ronald passou a queimar.
– Mas será que você ao menos considerou a possibilidade de que algum conhecido poderia tê-lo visto? Um vizinho, quem sabe, e tal pessoa acabar informando sua esposa sobre o ocorrido?
Cada músculo de seu corpo começou a estremecer.
– Pobre Jane. Passou dias sem querer acreditar no que ouviu de dona Anastasia, para que uma semana depois acabasse faltando no trabalho para confirmar o que foi dito, quando o marido, convencido de que ninguém soube de seus atos desprezíveis, resolvesse repeti-los.
O estômago de Ronald agora queimava.
– E agora ele se contorce todo por se lembrar da culpa refletida nos olhos da esposa naquele dia. Culpa essa que o assola sempre que tenta ouvir aquela música.
Ronald olhou para o lado.
– Não consegue encarar, né? Sabendo que esses olhos também veem a verdade. – Ouviu-se então o que parecia ser uma assombrosa risada. – Sua esposa sempre cultivou muito bem o próprio mundo. Nunca me deu qualquer espaço para conseguir visitá-la. No entanto, você o destruiu. Esmagou não apenas a confiança e o amor que aquela pobre mulher depositou em você, como também a sua razão de viver.
Cada centímetro do corpo de Ronald agora queimava, como se estivesse prestes a explodir.
– Acha mesmo que alguém tão desprezível quanto você tem algum direito de viver?
Naquele momento, Ronald sentiu como se estivesse no fundo de um poço vazio e insondável, onde tudo que existia era a mais intensa escuridão.
– Se não me engano, foi aqui que sua filha morreu né? Pobre garota malcriada. Achou que só porque havia recebido pouco naquele mês, tinha o direito de furtar a carteira do próprio pai. Ah, os mais jovens são tão fáceis de quebrar, é uma maravilha. Seria cômico se você morresse no mesmo lugar que ela, não acha?
Ronald sequer conseguia falar mais.
– No entanto, a hora não chegou. Ainda há uma coisa que você precisa ver.
~~
Era dia. Ronald acabara de acordar em sua cama. Não conseguia acreditar no que havia acontecido. Queria pensar consigo mesmo que tudo não passou de um sonho, porém, a magnitude do caos que sentia dentro de si não poderia ter sido ocasionada por um sonho. O homem estava desnorteado, não sabia o que fazer ou pensar. Tentando ao máximo buscar algum refúgio, veio-lhe à mente a ideia de ir novamente àquele parque.
Apreciar aquele ambiente confortável e pacífico aliviava seu stress. Era a única coisa que conseguia pensar naquele momento. Não perdeu tempo, sequer trocou de roupa e foi direto ao carro. No caminho, estava tão mergulhado no desespero que sentia que não parou para prestar atenção à sua volta.
Se ainda havia algum pingo de luz no poço em que aquele homem se encontrava, o que ele viu ao chegar àquele parque acabara de apagá-la completamente.
O que outrora Ronald via como um belo e vivo cenário verde, agora estava acinzentado. Sem cor. As árvores e gramas pareciam ter um aspecto velho e morto. Tudo que Ronald conseguia notar quando os pássaros pousavam na terra eram as aves brigando enquanto dilaceravam minhocas. A brisa antes agradável agora era fria e produzia um ruído perturbador. Aquele mundo que antes fora belo, agora parecia hediondo e sem vida, como se não fosse possível para Ronald viver ali.
“Consegue ver? O cenário que sua esposa viu naquele dia.”
Aquela voz macabra e familiar irrompeu na mente de Ronald novamente.
“O fim do mundo.”
Ronald correu desesperadamente para casa. Tão imerso em seu próprio desespero que nem sequer lembrou que havia deixado o carro na praça.
Ao voltar, sentiu o estômago revigorar. Imediatamente correu para o banheiro e vomitou na privada. Cada parte de seu corpo voltou a queimar como quando encontrou aquela coisa. Então o homem levantou-se e foi até a pia para lavar o rosto. Lembrou-se então da cena de sua filha naquela mesma situação e de seu grito de desespero ao olhar para frente.
“Me diga, Ronald.”
No impulso, o homem olhou para o espelho à frente. A mancha escura em seu rosto, de contornos distorcidos, com apenas dois grandes olhos anormalmente abertos no meio dela, encarando-o, foi apenas o gatilho para que, alguns minutos depois, se entregasse ao fim.
“Quem é a besta?”
~~
“Reféns de um mundo de mentiras
Que vós mesmos manchastes
Não escondam! Não escondam!
Ele sabe toda a verdade
Não adianta esconder ou fugir!
A ferida no mundo jamais se curará
Piorar tudo irá ao mentir
Pois mais próximo dele você estará
E quando no poço de mentiras afundar
O Apodítico até ti irá
O cenário do fim você verá
E a ele se entregará.
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