— Mesmo com esses grandes poderes, ainda terá que frequentar a escola? — ecoou na mente de Gael o questionamento bem-humorado de Luís, enquanto ele relembrava esse momento ao retornar para casa mais tarde do que o habitual. O cenário ao redor estava pintado pelas cores do entardecer, criando um ambiente cênico e sereno.
Naquele momento, a memória o transportou para o passado, quando o garoto faltou à aula no dia em que recebeu os seus poderes. Tal descuido resultou em consequências, pois acabou ficando de recuperação em três matérias na escola. Seu avô sendo bem zeloso e severo, foi chamado para uma reunião e repreendeu-o e lhe colocou de castigo.
Desde então, Gael passava tardes solitárias, enquanto seus amigos, Daniella e Luís, voltavam para casa sem ele, uma rotina que se repetiria durante todo o mês que se seguiria. O reforço escolar, somado ao castigo imposto por seu avô, que confiscou seu notebook, celular e videogame até que seu comportamento melhorasse, trazia-lhe certo abatimento. Ele sabia que não estava em recuperação por seu próprio erro, mas devido às exigências dos guardiões.
A frustração o dominava, especialmente ao pensar que não conseguiria terminar a emocionante saga de “One Piece” em que estava e descobrir o desfecho tão esperado. Ele temia encontrar seu mestre Karumo durante suas jornadas e, sem querer, receber um spoiler, o que tornava seus pensamentos um pouco cômicos.
— Qual é a cara de frustração? Parece que o reforço ainda não acabou — disse uma voz melodiosa atrás de Gael. Era Stef Lykaios, uma colega da recuperação que seguia o mesmo caminho para casa todos os dias. Ela lhe chamou a atenção com um leve sorriso amigável.
Stef possuía uma estatura pequena, um pouco acima de 1,50 de altura. Seus cabelos ondulados exibiam uma tonalidade castanho claro com mechas lilás nas pontas, que contrastavam de forma graciosa. A pele morena da garota resplandecia sob a luz do crepúsculo. Gael percebeu que era a primeira vez em dias que a garota dirigia-lhe a palavra.
Já haviam se passado dez dias desde que Gael havia adquirido seus poderes extraordinários, e, desde então, os guardiões não haviam feito contato com ele.
— É só que estou meio frustrado por ter ficado de recuperação. Meu avô tirou meu celular, meu notebook e meu videogame por causa disso. Então não terei nada para fazer hoje à tarde.
— Sei bem como é. Meus pais também fazem o mesmo comigo sempre que fico de recuperação, mas já me acostumei com isso — Afirmou a garota, buscando oferecer palavras de conforto e empatia para Gael. A luz do sol iluminava seus cabelos e refletia em seus olhos, tornando sua expressão ainda mais suave e acolhedora.
Porém, Gael estava claramente sendo evasivo sobre a verdadeira natureza de suas tardes. Na realidade, ele se dedicava a repetir os movimentos ensinados por Karumo durante o treinamento.
Respirando profundamente pelo nariz e soltando pela boca, Gael podia sentir a energia das chamas fluindo por todo o seu corpo, como uma onda ardente que o envolvia completamente. O poder elemental irradiava de dentro para fora, preenchendo o ambiente com uma aura única e poderosa.
Karumo havia instruído Gael em exercícios que desafiavam seus limites, fazendo-o sentir como se seus pulmões pudessem arder como brasas. Agora, praticando aquilo diariamente, ele percebia que todo o seu corpo também experimentava sensações igualmente intensas, como se estivesse sendo transformado por aquela força ancestral.
Todas as vezes que ele sentia uma ardência por todo o seu corpo, quase insuportável, Gael dizia “Ignis” e então algo maravilhoso acontecia: o cenário ao seu redor se iluminava com a mais magnífica das chamas. O garoto possuía o dom de manipular o fogo sem mesmo chamar pelo nome verdadeiro de seu elemento. Entretanto, almejava aprimorar ainda mais seu controle e maestria, e para tal, persistia em seu treinamento árduo e diário.
Desde o momento em que decidiu embarcar nessa jornada, sua motivação era a de presenciar novamente a majestosa aparição do leão de fogo, testemunhado ao lado de Karumo e Kira. Contudo, apesar de suas inúmeras tentativas de convocar o poderoso ser, este permanecia ausente.
Apesar das vezes em que, por um triz, quase incendiou seu próprio quarto, Gael conseguia, cada vez mais, dominar pequenas e médias esferas flamejantes com a palma de sua mão. No entanto, quando se tratava de um fogaréu imponente, sua habilidade se esvaía, deixando-o impotente diante da magnitude do elemento. Assim, vivenciou momentos em que quase destruiu o próprio cômodo em que dormia, trazendo frustrações que o inundavam.
De alguma forma, essa sensação de não estar plenamente em controle de seu poder ecoava também ao empunhar a misteriosa espada que adquirira. Ao exibir a reluzente arma para seus amigos Luis e Daniella, estes a encararam com admiração e temor, impressionados com sua aparição súbita. Mas o que realmente inquietava Gael era a sensação persistente de que algo essencial lhe faltava.
O jovem não conseguia identificar com clareza o que era essa lacuna, não conseguia abraçar plenamente o sentimento necessário ao manejar aquela lâmina, pois, afinal, jamais tivera uma espada em mãos. As palavras sábias de Karumo ecoavam em sua mente, mencionando que o poder da espada evoluiria com as batalhas que viriam. Porém, como poderia enfrentar tais desafios, se não conseguia sequer acreditar na arma que lhe fora confiada? O dilema o consumia, envolvendo-o em um turbilhão de incertezas, como labaredas dançantes que cercavam seu ser.
Era como se uma peça da sua próxima evolução estivesse faltando, mesmo treinando apenas 10 dias, para o garoto, ele havia chegado no seu limite de aprendizado, o grande problema é que ele não fazia ideia de como poderia entrar em contato com um dos guardiões, o que lhe restava era passar o resto da tarde em casa todos os dias treinando e aqueles pensamentos levou o garoto a se lembrar da conversa que teve com seus amigos.
— É como se você fosse o Ace… — disse Luis a Gael, observando o fogo em sua mão direita e a espada na mão esquerda — Mas com essa espada, parece que você não combina muito com ele.
— Pior que estava pensando a mesma coisa, no meio de todos aqueles seres ancestrais, fui um completo idiota ao me chamar de Ace — Silva coçou a cabeça se lembrando do momento cômico que havia tido quando despertou seus poderes.
— Uau! — exclamou Daniella, surpreendida ao ouvir o que Gael havia vivido nas últimas horas e, para eles, nos últimos segundos — Então, definitivamente, sua vida mudou para sempre. Quem diria?
Daniella ficou maravilhada com a narrativa de Gael.
— Você ainda está aí? — O questionamento de Stef trouxe Gael de volta à realidade, fazendo com que Silva se sentisse um completo idiota. Enquanto a garota tentava confortá-lo, ele havia lhe deixado de lado, absorvido em seus próprios pensamentos.
No entanto, suas reflexões foram abruptamente interrompidos quando um carro foi destruído bem diante deles. Com os olhos arregalados, Gael se voltou para Stef e, num impulso, gritou:
— Corra!
Com um olhar aterrorizado, a garota fixou os olhos em Gael, como se ele tivesse testemunhado algo terrível. Para sua surpresa, ela então correu. Sem hesitar, Gael clamou pelo nome verdadeiro do fogo:
— Ignis!
O fogo irrompeu por todo o corpo de Gael como uma lambida quente e ardente, envolvendo-o em uma aura incandescente que emitia um brilho ofuscante, como se uma grande forja tivesse nascido dentro dele. O calor pulsante parecia emanar do próprio âmago do jovem, elevando sua energia a um nível incomum.
No auge do espetáculo de chamas, o calor intensificado e a dança das labaredas começaram a se desvanecer. Aos poucos, o fogo foi se dissipando, revelando uma lâmina que apareceu nas mãos de Gael. A espada emanava um brilho prateado, refletindo a luz ao redor com um fulgor metálico. A lâmina era visivelmente afiada. No entanto, Gael experimentava uma sensação de desalinho ao segurar a empunhadura, como se não fosse feita para o formato de sua mão. O contraste entre a perfeição da lâmina e o desconforto da empunhadura criava uma tensão palpável dentro de si, mas aquela espada teria que servir.
O ser colossal a sua frente media mais de 4 metros de altura, e sua pele cinza contrastava com as folhas avermelhadas das árvores ao redor. Ele Vestia uma sandália que parecia pertencer a tempos ancestrais, e uma surrada tanga de pano que cobria suas partes íntimas, quando o mesmo avistou o garoto apenas gritou:
– M E T R A G A M O G U A R D I Ã O D E S S E P L A N E T A!
O monstro emitiu um grito gutural. O brutamonte se aproximava, deixando claro que estava ali para um confronto. Entretanto, o que mais deixava Gael apreensivo eram as armas que o ser carregava consigo.
Na mão direita, o monstro brandia um porrete colossal de madeira sólida, com uma aparência robusta e entalhes que sugeriam uma origem primitiva, como se tivesse sido extraído de uma árvore antiga. Apesar de sua construção bruta, o monstro manuseava o bastão com uma precisão que revelava experiência em combate.
Na mão esquerda, o ser segurava uma arma ainda mais intrigante: um soco inglês modificado. Em vez de ser apenas de metal, a peça tinha um tom verde-água que brilhava sob a luz fraca do ambiente. No entanto, o aspecto mais marcante do monstro estava em sua cabeça.
O garoto observou o ser com os olhos arregalados, absorvendo cada detalhe impressionante à sua frente. A cabeça careca e brilhante do ser, com um único olho majestoso e penetrante no centro da testa, lembrava de maneira inconfundível a figura lendária de um ciclope.
Indagando para si mesmo, as perguntas aglomeravam na mente de Gael:
— O que um ser desse tamanho está fazendo aqui na Terra? Como uma criatura dessas apareceu no meu bairro? — As palavras de seu mestre, Karumo, ressoavam em sua mente, trazendo de volta a lembrança da frase que havia lhe dito durante o treinamento:
— Não se preocupe, seres fortes não vão aparecer na terra.
No entanto, ao finalizar seus pensamentos, uma inquietude o atingiu profundamente, entendendo que se saísse vivo dali, mataria Karumo com toda certeza.
— Seres fracos, o que será que é um ser forte para ele? — Indagou Gael em seus pensamentos tentando entender o que Karumo queria dizer com aquela mensagem.
O garoto também recordava os ensinamentos das aulas de história com o professor Bernardo Pitta, especialmente quando Daniella sempre fazia a pergunta certa. O que antes parecia apenas teoria, agora ganhava vida diante dele. Há apenas alguns dias, ele e seus amigos viam essas histórias como mitos, mas agora, diante de seus próprios olhos, estava testemunhando uma criatura que tinha saído das páginas dos contos e se materializado em seu mundo.
Concentrado e buscando coragem dentro de si, Gael preparou sua espada com toda a determinação e experiência que havia acumulado nos últimos dias. Sentia o peso da responsabilidade como o novo guardião da Terra enquanto o ciclope avançava em sua direção. O porrete colossal, carregado com a força de séculos, era brandido com agressividade, pronto para destruir Silva. Cada segundo se arrastava, aumentando a tensão no ar enquanto ambos se preparavam para o confronto iminente.
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