Como esperado, o sentimento de culpa não desapareceu.
Olhando pelo lado positivo, ao menos ele não piorou.
Durante o café-da-manhã, reparei que K, Park, Han e Min não estavam em casa. Perguntei se eles haviam saído, pensando que devia estar em um sono muito pesado para não perceber K saído, mas Hop me respondeu que eles deviam ter decidido passar a noite nas próprias casas.
Ouvir a resposta de Hop me fez sentir um baque muito forte.
Eu esqueci que eles tinham casa!
Esqueci que eles tinham vida!
Eu fiquei babando nas fotos do apartamento do MC e passei horas conversando com a Gab, estimando quanto seria a casa do Min se fosse em algumas cidades brasileiras. Mas eu, simplesmente, esqueci.
Imperdoável!
Eu realmente estraguei a vida deles…
-No ficar triste.
Como não ficar triste? Eu atrapalhei o pouco tempo de vida própria que eles tinham!
-Um dia eu quero retribuir tudo. - não sei como, mas era o mínimo que poderia fazer.
-Todo bem. No se preocopar. - sim. Eu queria muito dar um abraço nele.
Hop me ajudou a praticar coreano no primeiro momento da manhã, mas pediu que eu o ensinasse algumas coisas em português. Como dizer não?
Sem brincadeira, o Brasil consegue manter grupos musicais quase sozinho, por isso não é incomum alguns apelarem para a fanbase brasileira. Não sei se o MoonLight apenas se aproveita de nós ou se realmente gosta da gente - honestamente prefiro não pensar a respeito. Embora Hop, Park e MC possam vir a ter realmente uma ligação conosco. Afinal, em shows, Park já mencionou alguns memes brasileiros; MC sempre interage com os fãs nas plataformas oficiais e já respondeu a vários comentários brs (além de ter participado dos infames “lendo comentários picantes”); e Hop é o Hop. Em todos os shows (Rio e São Paulo), que consegui achar na internet, ele tentava falar português; quando algum movimento surgia no Brasil, ele sempre aparecia dizendo que, mesmo sem estar perto de nós, ele tentaria nos ajudar e que esperava que as músicas dele (e do ML) pudessem nos acalentar nos momentos difíceis. Claro que o fato da maior fanbase dele estar no Brasil não tinha nada a ver com isso. Afinal, qualquer lugar no mundo poderia ter doado 1.000.000 para caridade em nome dele, para comemorar o aniversário dele. Na verdade, dependendo do país, seria até mais fácil! Eles só não fizeram.
Depois da nossa aula mútua, ele me levou para o estúdio, no qual eu passava ao menos 2 horas do dia imitando a projeção de August. Nunca pensei que eu poderia enjoar de ver o rosto dele, mas confesso que a situação não está ajudando. Por isso, apesar de passar ao menos 2 horas aprendendo a ser August, eu intercalava a projeção dos movimentos com entrevistas, nas quais eu tentava copiar não apenas a linguagem corporal, mas, também, as palavras, meio-sorrisos e olhares.
Foi nessa brincadeira, que descobri que August evita olhar para K e virse-versa, o máximo possível. Será que eles não se dão bem? Pelas entrevistas, esta atitude dura ao menos dois anos. Ah, não entenda errado! Eles não se evitam, nem nada do tipo, mas se eles não tiverem que se falar ou se ver, eles não o fazem.
August começa conversas casuais com todos, principalmente Min (seu melhor amigo - segundo revistas, sites e jornais), troca olhares com todos, mas só olha para K quando o mais novo está falando ou quando o que está falando é direcionado a ele. K não é muito diferente, as conversas casuais ocorrem com maior frequência com Park e Han (amigos instantâneos que se juntaram devido a idade próxima - segundo entrevistas), K já é bem mais extrovertido do que August e bem mais afetado pela cultura ocidental, por isso ele toca os membros da banda, e não somente troca olhares, mas quase não toca o rapper, apesar de direcionar olhares a ele com maior frequência do que o primeiro.
Não acho que minha análise esteja errada, mas pode ser simplesmente uma incompatibilidade de personalidade. Não necessariamente uma briga. Será que eu devia perguntar a respeito? Não, melhor não. Se eu consegui fazer 4 anos de engenharia sem fazer uma pergunta em sala, então eu não precisava fazer esta pergunta, também. Como eu tinha conseguido estabelecer o padrão do August, o resto não era da minha conta!
Não preciso arranjar mais um motivo para conseguir a inimizade deles.
Eu voltei a praticar o andar. Pois, apesar de parecer simples, era algo intrigante. Observando a projeção de August, eu não conseguia entender o porquê do meu passo ser mais alto. Tínhamos a mesma massa corporal, mesma altura e divisão de músculo - caramba, eu estava no corpo dele! Por que o meu andar era mais alto?
Três batidas anunciando a presença de alguém, distraíram-me da minha busca.
Desliguei a projeção antes de abrir a porta. Não sei quem era, mas entendi que era para eu seguir aquela mulher. Pedi alguns minutos para limpar o estúdio, mas ela disse para deixá-lo do jeito que estava.
Queria não ter entendido o porquê disso.
Não precisava ser um gênio para saber que August devia estar me esperando na sala do CEO. Não, qualquer um podia adivinhar isso. A grande questão era: como ele estava? Ele estava calmo? Com raiva? Pronto para me mutilar? Conformado? Eu, sinceramente, não faço a menor ideia. Meus estudos sobre ele não me revelaram a menor dica sobre o que esperar e, mesmo se tivesse dado, nesta situação tão atípica, teria mesmo como saber o que estava por vir?
Não sei, só sei que havia me resignado a aceitar qualquer que fosse a reação dele. Afinal, ele estava no direito de surtar.
Mesmo tendo tomado esta decisão, o nó na garganta, que se formou em frente à porta da sala de vidro, me deu uma leve vontade de desistir e sair correndo.
A mulher que me acompanhava deu três batidas na porta e esperou o comando de entrada.
As paredes da sala foram construídas em vidro, com somente a metade inferior delas sendo fosca. Dava para ver o interior dela, mesmo sem entrar. Por isso não precisei supor que August estava falando com o CEO e K antes de eu entrar, isso era um fato. O que eu não conseguia imaginar era o motivo de K estar ali. Mesmo que minha constatação sobre a afinidade deles estivesse errada e os dois fossem melhores amigos, eu conseguia me comunicar com o CEO que conseguia se comunicar com August. Não havia necessidade de um intérprete.
Confusa e com o coração na mão, eu entrei na sala, após receber a permissão.
Tentei não olhar para o meu corpo ao entrar, mas não consegui. Era estranho me ver sem ser por um reflexo. Eu estava igual ao reflexo que vi ontem, embora, até então, não tinha reparado nas olheiras escuras e profundas, provenientes de muitas noites mal dormidas. Não preciso supor o motivo delas, mesmo que ele tivesse dormido 8h todas as noites depois da troca, elas ainda estariam ali, embora menos aparentes. Meu colar não estava à vista.
Todos observavam na expectativa de algo acontecer. Contudo, o que decorreu foram instantes de silêncio, com o aumento da minha vontade de sentar.
Apesar de achar o silêncio constrangedor, eu estava bem com ele. Ele não me excluía ou excluía alguém, todos participamos igualmente dele.
O silêncio era igualitário.
O CEO começou a conversar com August, provavelmente perguntando se havíamos trocado ou tirando dúvidas. Confesso que estava curiosa sobre o que era falado, mas o orgulho que senti por entender várias palavras aleatórias, impediu-me de fazer perguntas. A boa notícia é que ao me concentrar no que era dito, consegui entender frases completas.
Se o que entendi estava correto, nada do que estava sendo dito me era útil - embora alegrasse meu lado tiete.
Algumas frases depois, K foi gentil o bastante para traduzir, de forma geral, o que me era dito - com o que ele me disse e o que eu entendi, percebi que estava num mato sem cachorro. Basicamente ML teria que performar num programa, para receber um prêmio e eles estavam checando as possibilidades: se August poderia se tornar meu professor particular de coreano; se ele podia me ajudar com o rap; se ele poderia atuar como meu empresário, para me impedir de fazer besteira… Contudo, o que eu não recebi tradução, mas que consegui entender foi CEO pedindo cuidado a August e K, “principalmente agora” - foi o que ele disse. Moral da história: confiança zero em mim.
Justo.
Quando recebemos um pedido de dispensa, eu aproveitei a oportunidade.
-Preciso falar com o senhor. - eu até que sei o nome do CEO, mas decidi não chamar ninguém pelo nome, a menos que seja necessário - Podemos marcar uma hora?
-Falar agora.
Até que dava, mas preferi não fazê-lo.
-Preciso do meu computador para te mostrar algo, como não sabia se o veria hoje, deixei ele no... dormitório. - eu quase disse meu quarto. Nada bom! Mesmo que pensasse nas coisas como minhas, eu não podia dizer isso em voz alta!
-Descobriu como desfazer a troca?
Uma voz dentro de mim disse que se eu negasse, ele não me concederia o tempo, no entanto eu não queria mentir para os meus idols - ao menos não mais do que o necessário.
-Não. Mas é algo tão importante quanto. - ele disse em coreano que eu não sabia do que estava falando e antes que K pudesse traduzir, eu respondi em inglês: - Se é o que você acha, pena. Mas minhas estimativas estipulam perda de alguns milhões de dólares caso o problema não seja resolvido… mas pode ser que, assim como o senhor disse, eu não saiba do que estou falando.
Potencialmente falando, havia como eu levar a WoW Entertainment a falência, principalmente se Gab vendesse as ações dela. Infelizmente, conheço-a bem o suficiente para saber que ela iria reclamar por meses, se o fizesse. Especialmente ao levar em consideração o fim do ML.
K estava muito chocado, mas traduziu quando August pediu. Já o CEO ficou bravo. Só entendi algumas palavras do que ele quase gritava. Mas, infelizmente, ele não podia bater no rosto de August e se ele queria me ofender com palavras, talvez tivesse funcionado se eu o entendesse - embora ele tivesse que se esforçar um pouco para isso .
-Não entendi nada do que disse. Eu só estou falando de uma possibilidade que pode ou não vir a acontecer em algumas semanas. - Mexi numa mecha da franja, um hábito de August que estou tentando adquirir - Posso estar errada, já que eu não fiz economia, não posso dar certeza. Embora, pra mim, isso pareça tão óbvio quanto a regra da alavanca. - por que eu falei regra da alavanca?! Eles são mais de humanas do que o povo de humanas! Isso pra eles deve ser um idioma a parte!
-Do que você está falando?
-Aparentemente, nada importante. - dei um meio sorriso.
Como eu odiava o fato de K poder me entender. Queria muito que eles não me vissem como o monstro, o lixo que sou.
-Volte em duas horas.
-Tem certeza? - disse em coreano. Era hábito do August dizer isso, sempre que ele sabia que estava certo e a outra pessoa errada. Por isso quando K e o CEO me olharam com surpresa, escolhi acreditar que era devido a minha atuação.
Ele me mandou sair e eu, muito sabiamente, obedeci. Só não fui direto para o dormitório, porque precisava arrumar a minha bagunça. Apesar de dizer isso, não é como se eu tivesse deixado a sala empapada de suor, afinal era um treinamento comportamental. Apenas tinha que recolher os objetos que me ajudavam a praticar.
August me perguntou onde eu estava indo, antes que eu pudesse me deleitar com minha capacidade de compreensão, K traduziu.
-Arrumar a sala de treino. - respondi em coreano.
August perguntou algo que K traduziu como “mas você só tem 2 horas”.
-Duas horas é muito tempo. - disse em inglês, que foi imediatamente traduzido. É, acho que minha análise estava errada.
Na sala peguei a garrafa d'água, livro, caneta e papéis que estavam no chão e os pus na bolsa.
-O quê você faz aqui? - perguntou K. Sinceramente, fiquei surpresa que ele e August pareciam me esperar.
-Prático. - respondi sem pensar. - Coloco vídeos de entrevistas, programas e shows e tento imitar August. - era uma forma de colocar.
-Wah…! Ela… - K voltou a traduzir. Consegui ver com a visão periférica August apontar para o espelho coberto por isofilme. K respondeu alguma coisa, da qual somente compreendi “Não sei. Não tenho certeza.”
-Uso isso para impedir a imagem de ser projetada na outra parede. Desse jeito posso tentar copiar os movimentos do espelho.
-Seu coreano está bom…
-Não o suficiente. - disse em coreano - É difícil falar, mas se me concentrar, consigo entender. Mas eu sabia o que August disse porque ele… - não sabia a palavra, então mudei para inglês - apontou para o espelho.
-Ahhh…! - K traduziu minhas palavras finais e August comentou algo. Desta vez, K não foi gentil o suficiente para traduzir o que o rapper disse.
Meu lado tiete foi às alturas quando K pegou para nos levar ao alojamento. No caminho de lá, ele e August colocaram a conversa em dia, ao menos, pelo que entendi. Em algum momento, K me disse que não conseguiram achar minha habilitação e que isso dificultaria August tirar a licença coreana. Foi então que eu disse que não a tinha. Apesar da surpresa, eles não persistiram no assunto - provavelmente porque seria cansativo ficar traduzindo e esperando a tradução.
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