O dia seguinte foi corrido.
Horas antes do amanhecer, eu estava de pé começando a verdadeira rotina de August: sessão de fotos, na qual August iria comigo e faria as poses que o fotógrafo pedisse, deixando-me com a simples tarefa de imitá-lo; depois tive uma rápida reunião sobre Make Me Sin, onde pedi desculpas por não ter levantados os pontos de melhoria durante a reunião anterior, seguida por um leve preparação para o MV; finalizando com aulas de flow até o café-da-manhã. Já estava cansada antes mesmo da minha primeira refeição, o que me fez ter certeza de que eu nunca iria querer ser uma Idol. Sinceramente, não sei como August - qualquer um - pode aguentar uma vida assim.
Com o desjejum tomado, nos dirigimos ao prédio da principal da WoW Entertainment, onde o Homem de Terno e o CEO me aguardavam como se estivessem prontos para me arrastar para O Malebolge¹. Coitados, mal sabem eles que o meu destino final é o Lago Cocite².
-Aqui. - O Homem de Terno me entregou três páginas de um texto escrito em inglês e três em Coreano. Ao menos isso faz sentido.
Fiquei com a versão em inglês e passei a versão em coreano para August. Passei os olhos na versão em inglês do documento, tive vontade de rir em alguns trechos, mas não me detive em nenhum.
August terminou de ler pouco antes de mim, mas não fez nada. Por isso eu o encarei.
-Não vai...? - perguntou o August, dado o contexto, acho que a palavra faltante é “assinar”.
-Você quer que eu assinar? - repeti a nova palavra, sem me preocupar com conjugação.
O CEO e o Homem de Terno pareciam surpresos com a minha capacidade de me comunicar. Não entendi bem o porquê, mas isso, infelizmente, acabou com as minhas chances de aprender o que eles falam de mim, pelas costas.
Ele disse algo que eu só entendi o ‘você’, então ele pegou o telefone dele, digitou algo e me passou a tradução.
“Você é quem fez exigências"
Eu queria muito escrever ‘Mas eu não dou a mínima’. Mas como a menina recatada que sou, escrevi “Fiz isso por você, se por você está tudo bem, eu assino, senão é só falar que eu não concordei com o ponto que você quiser mudar”. Ele me olhou dúbio.
A essa altura eu sei que meu rosto é bem mais expressivo que o dele, mas espero nunca mais ficar em dúvida na vida! Que cara de retardada, eu fico quando tenho dúvida!
Ele digitou “Isso tá errado”, mas nada nesta situação é certo. Por isso respondi com um sorriso.
"Mas você não tem nada que queira mudar?" - digitou ele.
Sim, havia muitas coisas que eu queria mudar ou, somente, tirar foto para mostrar para os outros que realmente existiu um contrato assim, mas, novamente, eu não era a beneficiária deste acordo.
"Acho que a quantidade de ações que ele quer que eu devolva é muito grande," no contrato estava escrita 1,5% "mas como é você quem decide o que é um sucesso, por mim tudo bem." Sem contar que não havia nenhuma cláusula que me impedia de comprar novas ações ou que previa possíveis desdobramentos.
Não entendi nem metade das palavras usadas, mas tenho quase certeza que August pediu para trocarem a taxa das ações por música, porque, afinal, era disso que estávamos falando. O CEO e o Homem de Terno, depois de debater por alguns minutos, concordaram. Contudo, algo na postura de August mudou, o que fez com que a discussão continuasse por mais, pelo menos, 10 minutos, comigo entendendo apenas o meu nome e a palavra 'música'.
Aproveitei que o rosto do rapper não é tão expressivo e mantive a expressão neutra.
Confesso que me senti curiosa quanto ao que era dito e até tentei me concentrar para ver se eu entendia mais, mas eu não tinha o direito. Eu era a pessoa que estava estragando a vida de August e que, por isso, ofereceu uma ferramenta para que ele pudesse ter parte do que era dele de volta. Eu não tinha o direito de opinar.
O Homem de Terno, com a testa franzida, abriu um laptop e digitou algumas coisas. Enquanto todos aguardavam as mudanças que ele faria no contrato, só consegui pensar que eu queria jogar minhas pernas em cima do braço da poltrona - manter a boa postura cansa! -, mas não o fiz, pois August nunca o faria. Quando o Homem de Terno terminou de digitar, ele mostrou o documento em inglês para mim. Ainda estava engraçado, qualquer advogado iria rir dele, mas as principais mudanças é que, além do valor a ser devolvido, voltar a ser 1% das ações, eu e os membros do MoonLight tínhamos que decidir, em conjunto, se as músicas a serem lançadas podem ser classificadas como um sucesso ou não.
Surpresa, digitei no tradutor "Você tem certeza?", recebendo um aceno e um meio sorriso como resposta. Eu não podia querer mais nada! Eu podia cair morta que ficaria feliz.
Talvez não literalmente, porque não sei como isso afetaria o August, mas deu pra entender o que eu quis dizer.
O Homem de Terno imprimiu o documento no qual eu assinei como Amanda e August como Lee Yuwon. Se eu quisesse, poderia alegar que sem a presença de um advogado ou sem o documento ser reconhecido em cartório, ele seria inválido. Contudo eu ficaria com um pé atrás com qualquer advogado ou cartório reconhecessem a veracidade de tal documento... Na verdade, nem sei se as leis de contrato de firma daqui são iguais aos do meu país de origem!
De qualquer forma, fui alertada que no dia seguinte a apresentação na TV, faríamos um show...
-O quê?! - Não sei dizer quem estava mais surpreso: eu ou August. - Como assim? - dissemos em sincronia. Acho que finalmente estou encarnando o meu papel.
-Será um show de 5 músicas para o show de aniversário do ZinApp. - disse o CEO como se não fosse nada demais - Ninguém espera que os grupos que se apresentam lá façam um bom trabalho, por isso se você falhar lá vai ser melhor do que no LunaFest.
Fiquei com raiva.
Eu uso - usava - o ZinApp! Ele é uma das melhores fontes para se ler quadrinhos BL de toda a República da Coreia! Como assim tudo bem fazer um show ruim pra eles?!? A indignação tomou conta de mim, até eu me lembrar que a Coreia é um país conservador e preconceituoso. Não havia nada a ser feito.
Simples assim, o turbilhão, que se instalava no meu peito, foi embora, deixando um leve vestígio. Mesmo este vestígio estava cansado demais, calejado demais para fazer alguma coisa. Afinal, os pais de Gab esperavam ansiosos o dia que eu sairia do armário, como prova de que, mesmo num país mais liberal, o preconceito está intrínseco.
Vi medo estampado no meu rosto. Não o julgo. Afinal, este seria o primeiro passo, oficial, para o fim da carreira de August. Ao menos ele teria uma chance como Amanda…
-Você não…
-Calma! Você não precisa… - entendi, mais ou menos, que August estava preocupado com algo mais do que eu fazer o show, mas, por falta de palavras e contexto, não consegui identificar a preocupação dele. - Já está decidido! Ela precisa praticar! - pergunto-me se ninguém me chama pelo nome, pelo mesmo motivo que eu não os chamo ou se é, simplesmente, para evitar legs no cérebro.
-Se ela se acha no direito de… - presumo que seja chantagear - ela…! - Não sei se ele estava descontando a raiva em mim ou atestando um fato, mas em ambos os casos era justo.
Com a reunião encerrada, August mandou uma mensagem para os meninos, avisando sobre o show, antes de me acompanhar para o início das gravações de Make Me Sin.
Antes do almoço, gravamos as cenas que não sofreram tantas alterações, devido a minha demanda. Todas as cenas tiveram de ser regravadas ao menos duas vezes. Não consegui acertar nada de primeira e só consegui acertar uma cena de segunda, provando que nunca seria uma boa atriz.
No caminho para a nova locação, August pediu almoço para nós, para termos o que comer quando chegássemos lá. Como ainda não me adaptei à culinária coreana, eu pedi algo com mais arroz do que qualquer outra coisa.
Confesso que, observar-me comer as sopas e acompanhamentos preferidos de August me causou um leve enjoo. Um dia, prometi a mim mesma, eu vou comer o que os meninos comem.
À medida que nos alimentamos, os meninos iam chegando. Alguns pediram por porções de comida - fiquei mais do que feliz em alimentá-los. Claro que não estava relacionado ao fato de não sentir prazer em comer, certeza que era para agradar meu lado tiete.
-Oppa, você terminou… as músicas? - Ainda não me acostumei com K tratando August com tamanha intimidade. Nas entrevistas é sempre hyugi.
-Sim.
Okay, não sou um gênio nem fluente na língua, mas tenho quase certeza que August disse que terminou de editar as músicas.
-O que foi? - perguntou Min.
Revisei, em minha cabeça, dezenas ou centenas de formas em que eu poderia tentar expressar minha dúvida, mas sempre terminava em um beco sem saída.
-Inglês está bem. - assegurou Park.
-Português também. - sorriu Hop com confiança.
Pelo sorriso de Hop, eu falei em português:
-August não disse que levaria um dia para juntar as músicas, como já está pronto?
Hop traduziu para os demais.
-Mas você estava comigo na hora. - disse August.
-Quando você me ajudar com o flow? - perguntei espantada.
-Sim. - respondeu ele, simplesmente.
Será que é por isso que o chamam de gênio da música? Parece uma boa justificativa.
-Are, por que ela parece tão ...? - perguntou August - Sou tão…?
Perguntei a K o que o rapper disse e ele disse que eu estava tão surpresa que parecia que eu não acreditava nele.
-Eh?! Não! Não! Não! É só que… - mudei para o português - eu nunca conseguiria ensinar alguém e juntar três músicas ao mesmo tempo. Isso parece impossível!
Hop traduziu, com clara felicidade por ter me entendido. Graças a isso, pude ver meu rosto envergonhado. Bem melhor do que quando eu tenho dúvidas.
-Eu não sei, é difícil? - Ele estava muito envergonhado!!! - Vão ensaiar, vocês tem pouco tempo.
Os mais novos caçoaram um pouco de August antes de receberem o chamado de MC para começarmos o ensaio.
Eu, August e um dançarino a mais, ensaiamos cerca de cinco vezes a apresentação completa, com algum estranho nos filmando, para depois adicionar às redes sociais. Depois ensaiamos alguns trechos em específicos, como a partir da liberação dos tecidos até o final da dança de panos, para ver se eu realmente conseguiria trocar de roupa sem ninguém me ver. Em seguida, focamos no próximo mashup.
Por bem ou por mal, como eu me fiz protagonista da queda, as cenas eram minhas, embora assumisse o lugar de August na coreografia.
Fiquei extremamente feliz ao fazermos uma pausa para experimentarmos o figurino, embora tenha ficado muito envergonhada ao ter o meu timing de troca de roupa cronometrado. Como August - e mais ninguém - pareceu se importar, eu deixei quieto e fiz a troca quantas vezes me foi pedido. Aparentemente eles não acreditavam que eu podia me trocar tão rápido. Ou era só para ter uma média dos valores…?
Antes de praticarmos, pela última vez, a versão completa da apresentação, com figurino, eu estava com tanta dor que me parecia um milagre eu ainda estar consciente. Eu, definitivamente, não estava sorrindo, mas estava focando cada célula do meu corpo em não errar, em lembrar a coreografia, por isso não tenho certeza de como estava o rosto de August.
Resolvi acreditar que não estava contorcido de dor, já que ninguém me chamou a atenção.
Após a prática, bebi toda a garrafinha de água, sentindo-me culpada por tomar a decisão de usar a mão esquerda como dominante toda vez que não houvesse câmeras à vista; enquanto ouvi os meninos discutindo sobre o que fazer para o Show de Aniversário do ZinApp. Sendo honesta fiquei feliz que eles estavam se esforçando para fazer um bom show.
Mais uma vez eles se mostravam seres humanos decentes. O que não deveria ser elogio, mas que, por comparação, passava a ser.
Coisas assim me lembram de como o padrão do mundo é absurdamente baixo, fazendo, como consequência, com que os meninos do ML sejam humanos astronomicamente superiores aos demais.
Por isso, mesmo entendendo a crítica às fãs deles que acreditam que não vale a pena namorar com alguém que não eles; não nego que entendo o ponto de vista delas.
Com o cair da noite e o apaziguar da dor, lembrei August de nosso compromisso. K perguntou se podia ir. Por mim tanto faz, ele ou qualquer um ir, mas August não o deixou, dizendo que era apenas para nós dois irmos.
Ironicamente, o Homem de Terno estava nos esperando no Hospital. Ele nos aguardava com um tradutor - que eu ainda não entendo o porquê de eu não poder usar um 24h por dia - e, ainda, entrou no consultório quando chamaram por meu nome.
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¹Segundo A Divina Comédia, Malebolge é o 8º Círculo do Inferno pelo qual Dante passa, destinados aos fraudulentos.
² Segundo A Divina Comédia, Lago Cocite é o 9º e último Círculo do Inferno pelo qual Dante passa, destinados aos traidores.
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