Imagino que deve ter sido engraçado: chamaram Amanda e a primeira pessoa a responder foi um homem com o típico disfarce coreano (chapéu, máscara cirúrgica e óculos de sol); com a segunda pessoa percebendo que era a vez dele também sendo um homem e ele tendo que informar a única mulher no grupo que era a vez dela. Houve alguns risos, mas, em geral, haviam vários olhos surpresos. Será que só engraçado se souber das circunstâncias ou Amanda podia ser nome para machos na Ásia - igual a Alice?
No consultório estava uma médica alemã, bem diferente do estereótipo em minha cabeça: da minha altura; cabelos escuros; pele morena clara. Mas com uma presença que ocupava todo o cômodo. Ela poderia muito bem ser a protagonista ou a vilã de alguma história. Não sabia nem queria fazer minha aposta.
-Bem-vindos. - disse ela com um delicioso sotaque germânico - Eu sou Raika Schmidt, serei a médica de vocês. - ela olhou para o Homem de Terno - Outro paciente?
Fiz que não com a cabeça, mas antes que pudesse responder alguma coisa, ele falou:
-Não confiamos em você. Estou aqui para garantir que você não faça nada estranho. - olhei para ele em descrença.
Sério?!
Eu não fui a única a não acreditar no que ouvia. Raika olhou em descrença para o locutor, depois olhou para o meu corpo e por fim para mim.
-Você não tem que confiar em mim. Ciência é ciência em qualquer parte do mundo. Se alguém te falar o contrário, não confie nessa pessoa. - Errada ela não está.
O Homem de Terno ficou vermelho de raiva.
-Mesmo assim, como podemos saber se você não vai divulgar informações confidenciais?
-Por que eu desperdiçaria meu tipo fazendo isso? - Eu a conheço a menos de 5 minutos e já não quero ser inimiga dela. - Além do mais, eu sou uma médica. Qualquer médico que não respeite a confidencialidade de seu paciente, não merece ser chamado de médico.
Sim, claro. Não vamos colocar em questão que ela, assim como eu, tem que saber guardar segredos, caso queira manter o emprego.
O Homem de Terno ficou mudo.
-Estou aqui para estudar um caso nunca antes catalogado. A menos que haja provas concretas a respeito, falar qualquer coisa sobre o assunto é fazer papel de idiota na frente da comunidade médica.
-Nada de fotos ou vídeos.
Ela o olhou como se ele fosse retardado e disse:
-Por que eu iria fazer isso?
Não aguentei. Soltei um riso.
-Raika, sabe de quem é esse rosto ou o dela? - perguntei em inglês.
-Um coreano em seus 20 anos, no máximo, e uma mulher irritante.
-Como você sabe se sou irritante? - ela me olhou com descrença. De certa forma, me senti até aliviada com a atitude.
-Porque estou aqui fazendo um doutorado que não queria, ao invés de liderando o laboratório do meu pai.
Ok, ela tem razões para não gostar de mim.
-O doutorado pode te ajudar.
-A quê? Já estava com todo o meu plano de vida encaminhado e graças a essa anomalia - ela falou com nojo - estou aqui, estendendo meus anos de estudo, para descoberta acadêmica que nunca poderá ser publicada ou relatada. Então me diga como isso pode me ajudar, em qualquer forma?
Com o meu melhor sorriso de cara-de-pau eu respondi o óbvio:
-Nós ficamos te devendo uma. - O Homem de Terno me olhou como se eu fosse louca.
-Sim, vocês estão. - o olhar dela me dizia que ela já sabia o que ela queria como pagamento.
-Já que estamos esclarecidos, vamos começar com alguns exames simples: um mapeamento genético, uma tomografia e um eletroencefalograma. - se isso era o que ela chamava de simples, eu não queria saber o que me aguardava - Quero checar se isso pode ser um defeito ou evolução genética ou uma alucinação causada por um tumor ou algum outro distúrbio. - aish, não acho que vou gostar dela.
-Você quer testar se somos uma espécie de Sensate, se somos doidos ou se temos doenças mentais? - ri. Não me importo com quem estivesse ouvindo, as aparências estão sendo descartadas desde que deixei August me escutar chantagear o CEO - Entendo você acha que Amanda pode estar alucinando ser alguém famoso que ela admira, mas sua teoria passa a ser falha a partir do momento que mesmo que August tivesse lido todos os meus comentários, cartas e e-mails, ele não saberia como pedir ajuda para você.
-Tomografias e eletros não servem apenas para isso, há a possibilidade de ser um delírio, assim como de um tumor, negar essas possibilidades seria estabelecer preconceitos dos quais me recuso a adotar. - ela disse me encarando. Retiro o que eu disse. Gostei dela! Quero dizer, não desgosto dela! - Parte do motivo para pedir estes exames é para checar se houve mudança corporal. Se o cérebro feminino passou a se comportar como masculino e virse-versa; assim como também quero comparar o DNA da Amanda de antes com o do corpo dela de agora. - ela começou a tamborilar os dedos em cima da perna - A lógica me diz que é impossível que o DNA do corpo da Amanda tenha sido alterado, mas a lógica não parece fazer parte do problema…
Esta última frase ficou estranha.
-Então você quer ter acesso aos nossos exames? - perguntou August.
-Se você tiver exames não genéricos, sim. Mas se tudo o que você tiver não passar de check-ups e raios-x, eles serão desnecessários.
August soltou um “Ah!”, enquanto eu respondi:
-Tenho tomografias, o quão recentes você precisa que elas sejam? - August me olhou como se eu fosse louca, assim como o Homem de Terno.
-Normalmente eu pediria apenas a última, mas dadas as circunstâncias, todas.
-Ok, mas as mais antigas são impressas. Vou ter que pedir pra Gab enviá-las. As mais novas eu tenho salvas no drive.
-Por que você fez tomografias? - perguntou o Homem de Terno.
-Não sei dizer. - dei de ombros - Nos últimos anos eu tenho feito porque pagam os meus exames, eu só tenho que aparecer. Acho que quando era pequena eu fazia tomografia porque vivia caindo e cheguei a bater a cabeça mais de uma vez… mas não tenho certeza.
-Interessante…
-O que é interessante? - perguntou o Homem de Terno. Confesso que achei mais intrigante o fato deles não terem me perguntado quem pagava meus exames do que o que ela me falou. Quero dizer, Raika não perguntar a respeito é aceitável, mas qual era a visão que eles tinham de mim para não me perguntarem isso? Ou será que isto estava atrelado a algum tipo de preconceito?
-Vocês já testaram para ver se conseguem acessar as lembranças um do outro?
-Já. - respondi, sem pensar, fazendo August me olhar preocupado - Mas o fato do meu coreano ainda estar ruim é um bom indício de que não tive sucesso.
-Ruim, você diz… comparado com o quê?
-Com... todos? - respondi em coreano.
-Você percebe que este todos a quem você se refere são nativos da língua?
-E você que eu tenho que me passar por um? - ela parou de tamborilar os dedos, pegou papel e caneta e anotou alguma coisa.
-De qualquer forma, vou colher uma amostra de sangue de cada um e um pouco de saliva. - ela pegou duas seringas, duas agulhas e dois cotonetes - Assim que terminarmos vou pedir a tomografia, o corpo feminino deve consegui-la mais fácil, então tem como você me passar os arquivos do drive ainda hoje? - era estranho se referir a August como corpo feminino, mas entendo que nossas identidades possam ser confusas para ela.
-Claro. - tirei meu telefone do bolso e abri o drive, procurei minha pasta de exames e estava prestes a compartilhar apenas as tomografias, mas mudei de ideia. Já que estava tudo online, resolvi compartilhar todo o meu histórico médico, desde que me juntei ao grupo - Só colocar seu e-mail.
Passei meu telefone para ela e tive a leve vontade de socá-la, quando ela riu ao travar a tela do aparelho e ver a foto do ML. Contendo o meu impulso, ofereci-me para ser a primeira a tirar o sangue.
Por pura força do hábito, ao sentir a picada, desviei os olhos das pessoas e olhei para a agulha e para o recipiente que se enchia com o líquido vermelho. Acho que fiquei desapontada, esperava que o sangue fosse de outra cor; que brilhasse; sei lá. Era pedir demais alguma prova óbvia do motivo da troca?
Aparentemente sim.
Em seguida ela colheu amostra de saliva da minha boca. Foi estranho ter um cotonete na boca. Nunca pensei que esta seria a sensação.
August ficou obviamente incomodado ao ver o sangue deixar as minhas veias, pois, ao contrário de mim, ele preferiu olhar para qualquer outro lugar do que para a agulha.
Já esperava, mas não pude evitar de ficar desapontada ao ver o meu sangue ser extraído na mesma tonalidade que o dele. Todavia, ao contrário de mim, ele não pareceu se sentir nenhum pouco incomodado com o cotonete na boca.
É engraçado ver o quão diferente nós somos.
Raika falou um tanto de coisa que poderia muito bem ser alemão, dado o meu nível de entendimento - só sei que ela passou mais alguns exames para serem feitos e que o Homem de Terno se encarregaria de encaixá-los em nossas agendas.
Assim que saímos do consultório, August olhou alguma coisa em seu telefone e, logo, se despediu de nós. Imagino que ele deve estar aproveitando o anonimato de uma turista, enquanto eu tenho que andar com minhas babás… falando nisso, onde estão os seguranças? A Coreia é um país tão seguro que não preciso de um ou estão considerando que quem estiver comigo na hora que eu sair fará o papel de segurança? Se é assim, o que acontece quando saio com outro membro da banda?
-Quem é Gab? - perguntou o Homem de Terno.
Havia várias formas de se responder essa pergunta: com a verdade, com a meia verdade e com a completa mentira. Sendo que a última opção abria brecha para incontáveis histórias.
-Minha amiga, quem comprou as ações para mim. - ele parecia muito preocupado - Não se preocupe, ela não sabe o que está acontecendo. - menti.
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