O Homem de Terno me levou para o dormitório, onde eu fiquei sozinha por não mais do que uma repetição da coreografia de amanhã. Hop chegou e me ajudou a praticar, não focamos no tecido - até porque lá não havia nenhum - mas na junção das músicas.
Apesar da dor no ombro e de ter que dançar e atuar por pouco mais do que 6 minutos, a parte preocupante é que ainda me confundo no mashup. Meu corpo insiste em usar o lado esquerdo como dominante, sendo que isso nunca, antes, foi um problema. Okay, talvez algumas vezes, mas eu devia ser capaz de me controlar, conscientemente!
Hop passou comigo, pacientemente, as partes que eu tinha mais dificuldade até que ele me obrigou a parar.
-Coreano ser importante também. - disse ele - Vai ter repórter e vão pedir entrevista. - ele estava sério e pontuando uma de minhas maiores falhas, mas dei um meio sorriso. Ele é lindo e o sorriso dele me derrete todinha, mas ele falando português… isso é um nível de fofura que quebra a escala do quão perfeito alguém pode ser.
-Ok.
Hop me fez perguntas em português e eu respondi em coreano. Toda vez que errávamos uma palavra, o outro tinha que nos corrigir. Embora confesse que me parece errado corrigir os erros de conjugação dele. Uma voz dentro de mim dizia que eu me arrependeria disso logo, logo. Mesmo sem ter argumentos para rebatê-la, não dei ouvidos para a voz.
Pouco a pouco os membros da banda foram chegando, sendo que quando Min chegou ele sugeriu pizza para o jantar. Com “sugerir” entenda: ele admitiu estar com preguiça de cozinhar e por isso já havia feito o pedido por nós. K foi o último a se fazer presente.
-Eh?! WooJin? O que está fazendo aqui? - perguntou Park.
-Nós sempre comemos juntos antes de um show ou …. - senti-me nas nuvens por ter entendido quase tudo. Fiquei tão feliz que esconder que percebi os olhares dirigidos a Park foi uma tarefa extremamente fácil.
Porém há uma variável que me incomoda nesta equação, uma que venho ignorando: esses programas costumam ter uma plateia de centenas, né? Não sei qual programa vamos amanhã, nem para qual emissora, mas não tem aquelas que não aceitam brincar e alugam estádios para essas apresentações? Por favor, que não seja assim amanhã!
-Tudo bem? - perguntou Han.
-Sim. É só que… - sussurrei a última parte para Hop. Se for para começar o massacre, que seja em minha língua materna - faz muito tempo que não me apresento ao vivo.
-Oh! Você se apresentar antes? - concordei com a cabeça. - Sério?! Quando?
-Hey! - chamou Han - Nós também queremos saber o que deixou Hop tão…
-O quê?
-Eles querem saber o que me deixar surpreso.
-Ah.- deixei Hop traduzir já que estava fora do alcance de minhas capacidades. Todos ficaram surpresos.
Por quê?
Eu já disse para eles que fiz ballet e circo, não? Será que eles não se lembram? Não, pelo menos o circo eles tem que se lembrar, caso contrário nossa apresentação amanhã está em risco. Será que eles não cogitaram que eu cheguei a me apresentar? Será que eles acreditavam que eu era uma daquelas pessoas que só apareceriam nos ensaios e nada mais? Pode ser… Teria sido mais fácil se fosse assim… muito mais fácil. Devia ter pensado nisso antes!
-Onde você se apresentou? - perguntou MC, enquanto K traduzia a pergunta.
-Como bailarina ou artista de circo? - pergunta válida, já que são palcos diferentes.
-Waaa! Você se apresentou com os dois? - dessa vez foi K quem perguntou, deixando a tradução para o líder. Afirmei com a cabeça antes de responder:
-Sim, mas nunca para mais do que algumas centenas de pessoas. E já faz anos.
Todos estavam maravilhados e queriam histórias.
Isso não se faz!
Meu coração de fã não está preparado para isso!
Engasguei várias vezes ao contar o passado de Amanda. Algumas vezes por me esquecer das palavras apropriadas, outras por, apenas, não querer contar a verdade.
Eles são artistas, já fizeram um álbum para aqueles que duvidavam das habilidades deles: músicas falando que quando os adversários desistirem, eles iriam tentar mais algumas vezes; dizendo que enquanto todos seguiam o sistema, eles seguiam o sonho deles; dizendo que a menos que tenham passado pelo que eles passaram não se pode jogar pedras… Em tese, se eu contar para eles que fui Prima apenas porque as outras crianças brincavam ao invés de ensaiar; que elas assistiam Dragon Ball ao invés dos filmes da Barbie, eles me entenderiam. Mas se existe uma coisa que todos que já almejaram a carreira científica sabem é que a teoria nem sempre condiz com a realidade.
Quando a pizza chegou foi tomada por uma falsa sensação de alívio. Sei bem que o tópico da conversa vai voltar para mim, mas uma brecha é tudo o que eu preciso para não cuspir a detestável verdade. Para não me odiar um pouco mais. Para não chorar.
Ficamos mais algumas horas conversando, com Hop se gabando por conseguir conversar comigo em português; Park decidindo aprender português; MC e Min me ajudando a praticar para as entrevistas; Han fazendo alguns passos da coreografia… eu me senti feliz.
Sei que é errado e vou manter a minha palavra ao CEO, mas senti como se o MoonLight - mais do que nunca - fosse a família que eu sempre sonhei. Não aquela família tradicional, a qual todos pensam ao se ouvir a palavra “família”, criada por aleatoriedade genética e todos os níveis do que a sociedade chama como ‘coincidências’, que pode levar muitos a loucura ou depressão. Mas, sim, aquele tipo de família que você escolhe. Fui ensinada a chamá-los de amigos, mas, por algum motivo, assim como para Gab, sinto que poderia desabafar com eles. Não do mesmo jeito que fiz em minhas cartas. Talvez nunca conte para eles sobre o ballet, sobre os lados feios e nojentos de minha vida, mas me parece que se eu reclamar do meu dia para eles, eu irei ouvir mais do que um simples “É a vida” ou “Você está reclamando disso? Você devia agradecer pela oportunidade que teve...”. Por este grupo de pessoas, sei que poderia fazer qualquer coisa.
Se isso não é família, eu nunca seria capaz de entender o significado de uma palavra tão amarga.
Pensei que teria dificuldades em dormir, mas o sentimento de pertencimento fez-me adormecer como não acontecia há um bom tempo.
A manhã da apresentação amanheceu um pouco mais fria do que a anterior, mas fiquei feliz em ter me levantado cedo. Primeiro porque pude responder a uma mensagem que meu chefe havia me mandado por Discord, pedindo por mais textos. Respondi a ele que hoje e amanhã eu estaria fazendo alguns exames, mas depois disso colocaria minhas entregas em dia. Segundo, porque pude comer o café-da-manhã de Min.
-É bom ter alguém para comer comigo, aqueles… - não entendi toda a frase, mas fiquei com vergonha de responder. Ele estava bravo comigo pela última vez? Espero que não.
-Comer é importante. - disse com toda a minha fluência.
-Não é? Mas esses… preferem dormir, aish! - pensei nas vezes que preferi dormir do que comer.
Comer e dormir são vitais para manutenção do corpo, pular os dois com muita frequência faz mal - disse a garota que fica sem dormir para terminar o trabalho, sem perder tempo com refeições…
-August não toma café-da-manhã? - Será que eu devia parar de comer?
-Ya! - Ele me assustou, ao levantar o talher para cima como se ele fosse me agredir - Qual o problema de comer quando está com fome?
-Sim. - disse a voz de Han pouco atrás de mim, assustando-me. - Se está com fome, coma. Se está com sono, durma. - ele bocejou - Se não atrapalhar a agenda está tudo bem.
-Ok. - respondi, voltando a comer.
Min me encarou.
-O que foi? - perguntei.
-Você… desde quando seu coreano é tão bom?
-Oh! - Han se assustou, espantando o sono - É bom, não é mesmo?
Este é o perfeito modelo de frase que eu não sei responder em coreano. Se for relacionado ao trabalho de August ou palavras do dia-a-dia eu já estou em um nível decente - desconsiderando a leitura e escrita. Nada fantástico, mas sei entender o que falam comigo, embora responder perguntas seja mais difícil. Na verdade, falar é mais difícil do que entender.
Pensei em todo o meu vocabulário e montei a frase do melhor jeito que pude:
-Consigo entender melhor do que falo?
-Mas já está muito bom! - garantiu Han - Daqui a pouco vai estar fluente.
Neguei com a cabeça, tentando estampar medo e desaprovação com os meus olhos.
-Are, o que foi? - perguntou Park, saindo do quarto dele.
-Esta criança está com o coreano muito bom. - disse Han animado. É engraçado ouvi-lo (não só ele) me chamar de ‘esta criança’, já que eu sou apenas alguns meses mais nova do que ele. Porém compreendo que seja para evitar confusão neural, já que chamar August de qualquer coisa que não o nome dele, ou o pseudônimo dele, deve ser confuso. Eu sei responder quando me chamam pelos nomes de August, mas não deve ser agradável para eles. Por isso deixo que me chamem assim. Por isso, não porque eu gosto.
-Hm. WooJin já falou isso. - Confirmei com a cabeça. - Oh! Ela me entendeu.
-Como K disse. - eu lembrei.
-Sim, mas eu… - Park falou.
-Não entendi. - avisei e ele riu, envergonhado.
Pouco a pouco os outros foram acordando e se juntando a nós. Alguns já estavam atrasados para os seus compromissos, por isso eles não tomaram café-da-manhã.
Os meninos saíram para seus respectivos compromissos e Hop me levou até a empresa, onde encontrei meu corpo. De lá, fui gravar mais algumas cenas de Make Me Sin, participei de uma sessão de fotos promocionais para o MV e depois fui almoçar. August me ajudou com o flow e com o vocabulário no tempo livre.
Não sabia o quão perdida no tempo estava, até perceber que o "tempo livre" foi o caminho até ao estágio para a apresentação.
Vida de idol não é para mim… É muito fácil esquecer de comer algumas refeições e comida é muito importante!
Talvez pela apresentação ter sido montada de última hora, mas enquanto vestíamos os figurinos, eles estavam recebendo os acertos finais; a maquiagem foi simples e o cabelo de todos estavam parecidos. Dito isto, fiquei encarando o cabelo preto de Min. O cabelo castanho tinha ido embora a menos de 10h e eu já estava sentindo saudades dele.
-O que foi? - perguntou ele.
-Nada. - Sei que eles podem escolher a cor dos cabelos e que os cabelos são deles, mas acho que Min combina tanto com o castanho que estava antes…! Do mesmo jeito que Hop combina com o loiro platinado.
-Você está…? - Não sei o que ele falou, mas todos começaram a contar casos, dos quais não entendi nem metade. Embora, tenho quase certeza que estavam tentando me acalmar.
Para minha surpresa, o último item do figurino foi uma máscara para mim. Não daquelas que tampavam apenas uma parte do rosto, mas daquelas que mesmo atrapalham a visão - pergunto-me o quanto devo ter contorcido o rosto para surgirem com este recurso.
Pergunto-me porque ninguém me informou da minha falha.
Depois de prontos, subimos ao palco onde ensaiamos a coreografia mais algumas vezes. Agora, até mesmo minha intimidade com os tecidos me incomoda.
Ensaiamos a queda duas vezes (senti-me burra por não ter pedido por algum equipamento ou andaime que já me colocasse no topo do tecido, onde eu só teria o trabalho de me aconchegar nele. Especialmente a cada rajada de dor); descobri que durante a troca de roupa eu tiraria a máscara e ela seria levada junto com os tecidos - tive alguns gatilhos por causa disso, mas nada que eu pudesse reclamar.
Em instantes estava tudo acabado. Outra banda veio ensaiar, enquanto voltávamos para o camarim. Tivemos um ajuste final nos figurinos, a maquiagem corrigida e nos passaram para vestir mantos que cobriam todo o corpo.
Antes que eu me desse conta, o programa havia começado.
Um aparelho de televisão foi ligado e MC sussurrou para mim que estávamos sendo filmados. Se eu não me engano, alguns programas filmam todos os artistas durante a performance dos demais participantes para mostrar cortes das reações deles - presumo que fosse um destes.
ML seria o encerramento, por isso tive bastante tempo para assistir e comparar as apresentações. Quanto mais observava as demais bandas, mais minha ideia me parecia infantil. Todos traziam um lado selvagem, sexy ou sedutor, enquanto a minha cópia malfeita estava mais para um teatrinho. Quis me desculpar com os meninos, mas saber que haviam câmeras em mim, fez com que eu me contivesse.
Sei que é errado objetificar pessoas e que o mundo do entretenimento usa a sensualidade como arma, mas dessa vez os coreógrafos estavam de parabéns! Conheço a maioria das bandas apresentadas e eu tive que meditar para esconder o que as performances (das boy e girl bands) me causaram.
Novamente, não sei se é uma reação do corpo de August ou minha… talvez os dois?
No último bloco do programa, eu segui os meninos até perto do palco, onde todos tiramos nossos mantos. Pelo earphone ouvi várias palavras de encorajamento, mesmo quando os meninos se escondiam na plataforma abaixo do palco.
Fui instruída a subir nos panos antes de ligarem as luzes, mas saber que haviam centenas de olhos voltados para mim, congelou-me no primeiro impulso de dor. Felizmente, meu senso de responsabilidade, ou culpa, me fez subir.
Não sei de quem foi a ideia, mas queria dar um beijo em quem sugeriu o uso da máscara. Não me concentrar em esconder a dor fez a escalada bem mais fácil do que nos ensaios...
Perto do topo, antes de me enclausurar vi dois pares de pessoas próximas aos nós dos panos.
Fiz meu casulo, ouvindo os meninos discutindo se eles seriam ou não capazes de subir em tecidos. Tive vontade de rir, enquanto ajustava as voltas em minhas pernas.
Ouvi o apresentador e me senti vencedora por entender frases completas do que era dito.
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