Aviso: Esta obra menciona relacionamentos tóxicos, machismo e abuso de poder.
O que hoje é provado um dia foi só imaginado.
— William Blake, “Proverbs of Hell”
Sed fugit interea fugit irreparabile tempus.
(Mas ele foge: irreversivelmente, o tempo foge)
— Virgílio, “Geórgicas”
— Pois você diga para aquela menininha que ela pode ir para o inferno!
Dizem que a raiva é vermelha. Theo fechou os olhos e notou que não, não era o caso ali. A raiva daquele pintor na sua frente não era vermelha como sangue — puxava mais para o laranja, como brasas mornas ou pôr do sol. Ele estava bravo, mas não furioso. A musa tinha sido trocada por outra, a paixão anterior cessara. Até o tom irônico da palavra menininha não carregava nem fogo, nem veneno: era só resquício de quando ainda se importava.
Theo abriu os olhos devagar, readaptando-se ao ambiente: as estantes cheias de caixas e vidros, pigmentos vindos de todos os cantos do mundo, os tubos de metal com o rótulo da Higgins & Co. esperando para serem recheados com tinta a óleo e etiquetados; os livros-caixa empilhados em um canto, os relatórios de venda a serem conferidos, o calendário na parede com a data errada — marcava 5 de setembro de 1848, e não dia 4, como era de fato. Não eram nem 9 da manhã e lá estava ele lidando com problemas que não lhe diziam respeito ao invés de cuidar das tintas e dos pigmentos, que eram seu ganha-pão, afinal de contas.
Problemas como Dante Gabriel Rossetti, metade inglês, metade italiano, e completamente irritado, que parecia ter esquecido que tinha dez anos e quase dez centímetros a menos que Theo, um sujeito que, por sua vez, tinha punhos acostumados a socar tipos bem menos metidos a besta.
— Patrão! Temos visita! — Uma voz de barítono do lado de fora do escritório interrompeu a briga antes de nascer. O dono da voz ouvia tudo atrás da porta, mas Theo não ficou irritado. Aquela era uma das muitas funções do sujeito na loja: colocar freios no mau humor do dono.
— Jansen, meu caro! Desculpa interromper! Preciso de uma mãozinha… — Outra voz, mais doce e animada, soou longe. Aquilo sim era uma imensa surpresa, e Theo abriu a porta sem pensar duas vezes.
Dois homens entraram no escritório carregando um enorme pacote embrulhado em papel pardo e jornal velho. O da direita, moreno de barba imensa, era o braço-direito de Jansen, um homem a quem chamavam Samir: um anglo-egípcio que parecia disposto a chamar atenção de propósito em trajes que misturavam Oriente e Ocidente, o nariz largo e os fartos cabelos cacheados em elegante desalinho. O da esquerda atendia por Paul ou Pável, dependia do dia — sempre Pasha para os íntimos, como Theo. Naquela manhã, parecia um boyar muito moderno com a gravata estilo Osbaldeston e o redingote esmeralda combinando com os adoráveis olhos verde-claros. Quem o visse na rua, com certeza diria que tinha encontrado o filho de um czar.
Tudo na dupla era feito para distrair, como assistentes de mágico que puxam o olhar da plateia para longe de onde o truque acontece. Eles sabiam usar o fato de serem diferentes como uma arma, e fizeram isso com sucesso para remover o foco da encrenca no escritório.
Ou pelo menos era o que parecia à primeira vista.
Mas nada naquele escritório era o que se via à primeira vista.
— Pela comunhão dos santos, mas isso aqui é um estorvo… — o boyar resmungou enquanto manobrava com grande estardalhaço para colocar o pacote na escrivaninha. — Ah, desculpe, querido, não sabia que você estava com visitas… — A mentira era doce e rosada aos olhos de Theo, um confeito lindo recheado de veneno de rato. — Rossetti, meu caro, que surpresa! Como vão os familiares?
— Todos bem, senhor Doyle. — O pintor sorriu como se a vida fosse um mar de rosas, esticando os olhos para cima do pacote. — Trouxe novidades para Jansen?
— Com medo de perder o posto de prodígio favorito do nosso colorista, meu caro? — A risada escondeu bem o golpe sutil que desestabilizou o pintor. — Imagino que vocês estejam tratando de negócios?
— Ele já estava de saída. — Theo cruzou os braços, esforçando-se para que seu sotaque não atrapalhasse mais ainda o raciocínio. — Eu dou o recado, Gabriel… Você vai pagar a sessão para a Eliza, não vai?
— Manda o tal de Hummel pagar! Não foi por causa dele que ela me deu o cano? Por que ele a estava seguindo? Então ele que cubra o prejuízo! — Rossetti fingiu que ainda estava irritado ao pegar casaco e chapéu no gancho da porta, mas sabia que tinha perdido a pose e a dignidade ao morder o confeito imaginário na voz de Doyle e, com a boca queimando, fugiu antes que a situação ficasse pior.
Ainda assim, quando Theo fechou a porta do escritório, quase se pôs a xingar em seu idioma natal — as palavras vinham em roxo profundo como ostro, todas cuspidas com um desgosto imenso, mas engolidas depressa em um gesto automático de sobrevivência. Maldito Rossetti!
— O que a Eliza aprontou agora? — A voz de Doyle era sempre verde e cálida, uma eterna primavera.
— Deu o cano numa sessão com Rossetti e disse que não apareceu porque um sujeito a estava seguindo na rua e precisou se esconder… E aí ele veio reclamar comigo da “desculpa esfarrapada”, dizendo que não tinha de aturar uma menininha tola se fazendo de vítima — respondeu Theo devagar, procurando as palavras corretas.
— Bem, patrão, desculpe a honestidade, mas entendo o raciocínio do senhor Rossetti… — Samir disse. — A senhorita Silver pode não ser sua irmã de sangue, mas o senhor é o homem da casa, é claro que ele viria falar com o senhor.
— Não, não sou o homem de casa nenhuma, nunca fui! E mesmo que fosse, a Eliza não obedece nem à mãe, por que obedeceria justo a mim? — Theo suspirou, coçando a cabeça a ponto dos cachos ruivos se erguerem como anêmonas. — Enfim, depois vejo isso… O que tem no pacote, Pasha?
— Uma encrenca daquelas, e só o melhor colorista de Londres pode me ajudar.
— E como o melhor colorista de Londres não estava em casa, você veio me ver.
— Posso dar um tabefe nele? — Pasha se voltou para Samir, fingindo-se ofendido.
— Não tenho autorização para responder, senhor Doyle. — Samir fez grande esforço para manter a seriedade, mas o sorriso entregou o fato de ter achado graça no chiste. — Patrão, eu vou cuidar da frente da loja, se precisar de alguma coisa…
Theo apenas assentiu, os dedos ajeitando o cabelo revolto — seu secretário sabia que visitas de Pasha Doyle costumavam ser sigilosas.
E não para menos. Assim que a porta foi fechada, Pasha soltou um suspiro comprido, e enfim as partes menos óbvias ficaram visíveis: a pele pálida e difusa como as nuvens, os dedos esverdeados como ramos de plantas selvagens, os olhos cor-de-púrpura como flores selvagens — o lado feérico precisando de ar.
— Você está mesmo nervoso — foi tudo o que Theo disse.
— Querido, você não queira saber o quanto. — E ao boyar Pasha voltou antes que Theo piscasse. — Enfim, eis aí meu problema. Abre o pacote e me diz o que vê.
Theo pegou uma faca e cortou as amarras do pacote, rasgando o papel como quem lida com um presente de aniversário.
Foi surpreendido por um par de olhos de um tom quase sobrenatural entre o verde e o âmbar, tão vivos que, por um instante, julgou que a imagem era um reflexo de alguém atrás dele. Tão vivos que fizeram algo ressoar dentro de si, uma vibração que não se lembrava mais de como era.
Puxou o resto do papel para descobrir o retrato de uma mulher em trajes dourados falsamente medievais, os cabelos cor de linho presos em uma rede bordada com pérolas. Ela olhava de volta para ele. Segurava uma romã rachada no meio, as sementes de um rubro tão vivo que parecia sangue fresco.
Prosérpina, ele pensou: Prosérpina, condenada ao mundo inferior por conta de seis sementes de romã.
Para não ser engolido pelo dourado e âmbar que atiçavam os sentidos, concentrou-se nos detalhes. Um ponto chamou muito a atenção: Prosérpina apertava a romã entre dedos levemente calejados — interessante, pensou. A modelo devia ser uma garota das classes mais baixas, do tipo que vinha atrás de dinheiro e um pouco mais de aventura do que teria em sua província natal.
— Bonita, a moça. — Pasha sorriu.
— Sim, linda! — Theo se aproximou da pintura. Não era um quadro recente, dava para notar pelo cheiro da tela e pelas pequenas rachaduras na superfície. Mas os pigmentos tinham resistido muito bem à passagem dos anos. Uma execução perfeita, obra de mestre. — De onde veio?
— Longa história, longa e meio entediante. O caso é que preciso de seus talentos.
— Que talentos? Não entendo nada de magia!
— Mas entende de tintas, não entende?
— Ganho meu sustento com isso, sim, mas as tintas que eu fabrico são… Quero dizer, elas não fazem nada saltar da tela.
— Deus nos livre dessa mocinha saltar da tela! — Pasha piscou os olhos. Desta vez, ficaram azuis e não verdes. Ele realmente estava nervoso. — Enfim, ouça. Pelo o que meu cliente relatou, esta moça aqui era parte da coleção pessoal da afamada imperatriz Joséphine da França. Como isso chegou aqui em Londres, o dono da pintura não quis contar, mas aqui está. Enfim, o sujeito quer saber se a tela tem… digamos… elementos inumanos. Se não está na tela, está na tinta.
— Ah, então por isso que ela é assim chamativa? — Theo fez um muxoxo. — Que graça tem usar magia para criar quadros?
— A graça de sempre: o resultado e não a execução. O destino e não a jornada. A fama e a fortuna, e não o suor e os calos e as dores nas costas. Tem quem prefira a glória sem precisar se esfalfar por ela.
— Atalho é para trânsito, não para arte. Enfim, do que eu entendo? Você com seus problemas e eu com os meus. — Theo apontou para a porta.
A loja, queria dizer. O problema dele era a loja e as tintas. Magia era o território de gente como Pasha. Eram amigos de longa data, e o fato de que não se importava com a natureza daquela criatura era o que selava a amizade entre eles. Bem, isso e o fato de que o falso-russo o tinha ajudado muito nos primeiros dias como dono da Higgins & Co., quando as pessoas ainda sussurravam que o testamento do antigo dono fora forjado para favorecer o holandês filho-de-ninguém, que, num golpe do destino, tinha subido de vida às custas da morte de um filho dileto da sociedade londrina.
Dois anos desde que Frederick morrera, e Theo ainda não conseguia se acostumar com isso. Com certeza Rossetti não se atreveria a falar grosso com um legítimo filho dileto da sociedade. Porque Frederick nunca se rebaixaria a dar atenção a um projeto de pintor como Rossetti.
Mas Frederick, que Deus o guardasse, nunca seria capaz de entender por que aquela pintura diante dele era tão especial. Não teria entendido que aquela Prosérpina implorava por socorro, para ser devolvida à sua pátria, para ser resgatada do inferno abaixo da terra.
Prosérpina também era Perséfone, a rainha do mundo dos mortos, a consorte de Hades. Ela implorava ajuda agora, mas depois se acostumaria com o inverno e com o marido — até mesmo passaria a gostar da escuridão e do poder que recebera.
Ele olhou de novo: era impressão ou a expressão no rosto da modelo tinha mudado? Aquele olhar de surpresa não estava ali antes; as sobrancelhas douradas pareciam um tanto mais arqueadas. Ele olhou de novo — não, tudo estava como antes.
— Como eu te ajudo? — Theo voltou o olhar para Pasha. Porque ele devia sua vida àquele filho das fadas, e faria qualquer coisa por ele. Magia não lhe dava medo, porque magia era como amor: coisa que acontecia com os outros e nunca com ele.
Continua…
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CRÉDITOS
Autora: Anna Martino Edição: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Preparação: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Revisão: Lavínia Rocha Diagramação: Val Alves Título tipografado: Samia Harumi
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