Aviso: Esta obra menciona relacionamentos tóxicos, machismo e abuso de poder.
Se a raiva é vermelha, a inveja é roxa.
Pelo menos a inveja de Eliza Silver era roxa como hematomas ou como trajes de meio-luto, escorrendo farta pela boca enquanto subia em um banquinho para observar a pintura de Prosérpina pendurada na parede. Claro que ela viria — e logo cedo, antes de Theo partir para o trabalho, antes que os vizinhos do prédio em Gower Street percebessem alguma coisa estranha. A desculpa era a cesta de comida que a mãe sempre enviava para Theo, mas o objetivo da visita, naquele dia, era claramente outro — só que a atenção da jovem acabou sendo fisgada para a imagem dourada iluminando a minúscula sala de estar.
— Mas que belezinha, essa daí. Quem é a modelo? Aquela puta da Annie Miller? — Eliza olhou o quadro mais de perto, quase farejando a tela. — Sabe o que foi que a “senhorita” Miller me aprontou? Ela fez o Hunt cancelar a sessão que tinha marcado comigo, a cobrinha! Eu precisava dos cobres que ele ia pagar! Já não bastasse o que o Rossetti aprontou comigo? Você sabe o que aquele desgraçado fez?
— Eliza, desce desse banco, você vai estragar a tela! Anda, você não é mais criança…
— Vê que engraçado? Sou adulta e ele sabe, mas me trata como se fosse criança o tempo todo! — Eliza falou com o quadro como se a Prosérpina pintada na tela pudesse responder. — Ele é mesmo bobo, não é mesmo, Virgem Maria?
— Eu disse para descer! — Theo a puxou pela faixa presa na cintura, e Eliza desabou nos braços do colorista. Ela era tão magra, tão pequena, que dava até pena; parecia mesmo uma criança enfiada em seu xale gasto e no velho vestido azul (que já tinha sido creme e depois verde, e sabe-se lá que cor seria na próxima estação, quando fosse tingido novamente). — O que você veio fazer aqui, afinal?
— Entregar sua comida…
— Conta outra! — Theo quase agarrou a jovem pelos ombros. O penteado de Eliza tinha desmontado, os cachos castanhos caíam pelo rosto. Parecia tão exausta quanto ele. — É dinheiro outra vez? Ou é o tal sujeito que anda te seguindo? Qual a história do dia?
— Quem te contou?! Não, não responde, eu sei quem foi. — Eliza olhou para o quadro novamente. — Você é que tem sorte, Virgem Maria. Os homens rezam pra você. No meu caso, quem tem que ficar de joelhos sou eu… — Eliza viu como Theo se erguia com dificuldade do tapete empoeirado, recolhendo uma joia dourada que tinha caído do bolso do colete. — Você bem que podia me arranjar um marido. Assim eu não precisaria me preocupar com aquele maldito Horlocks atrás de mim.
— Não era Hummel? — Theo se ofereceu para ajudá-la a se levantar. Eliza aproveitou a mão estendida e puxou Theo para perto, empurrando-o para a poltrona no canto da sala.
O colorista ficou lívido quando a jovem ergueu um pouco as saias e a crinolina e sentou-se em seu colo. Mais púrpura, quase preto: um ataque colérico com armas ocultas debaixo dos trajes surrados. Antes fosse desejo de verdade; isso seria capaz de aceitar. Mas eram só raiva e frustração, e ele era o alvo mais fácil para desovar os sentimentos.
— Eliza, por amor a Deus!
— Você não acredita em Deus, Theo Jansen, que eu sei. — Ela deu um beijo na testa do colorista, o cabelo solto roçando no rosto dele, que se sentiu gélido como no meio do inverno. Quando seus dedos desceram pelo colete, Theo afastou as mãos dela com raiva. — Qual o problema? Com vergonha do julgamento da Virgem Maria? — Eliza se acomodou melhor contra o colorista, apoiando os braços na parede e prendendo a cabeça de Theo. — Vamos, Theo, um beijo pelo menos? Um beijo você consegue me dar, não consegue? Eu sei que você gosta de mulher. Pensa que eu nunca vi você com as colegas da minha mãe? Não sou mais criança.
— Tanto não é que deveria parar de se comportar como uma. Por que eu deveria te beijar? Para você fingir que eu sou o Rossetti?
Aquilo foi o suficiente para fazer com que Eliza se erguesse depressa e ajeitasse as saias. Theo respirou fundo e olhou para o quadro. Prosérpina via tudo de camarote. Era truque da luz ou os olhos da pintura estavam arregalados de novo? Com o que ela tinha se surpreendido? Com o fato de ele ter recusado a proposta ou pelo ataque?
— Por que você está fazendo isso? Você está encrencada, é isso? — Por algum motivo, caçou o camafeu dentro do bolso. Precisava ter certeza de que a joia ainda estava ali, que ele não tinha se perdido de todo.
— Como assim, “encrencada”?
— Você sabe. Se o Rossetti disse que não vai assumir a responsabilidade, eu posso falar com ele, não precisa…
— Como você tem coragem de pensar isso de mim? — Eliza ficou vermelha o suficiente para Theo perceber que ela estava ofendida de verdade em ser vista como uma grávida abandonada.
— O que você quer que eu pense? Primeiro, Rossetti diz que você está sendo seguida, depois você me apronta uma dessas. Quem é o sujeito? O que ele te disse para você precisar pedir auxílio para o Rossetti? Ou para a segunda opção?
— Você é mesmo um palerma, Theo Jansen!
— Você já me chamou de coisa pior antes. — O colorista bufou enquanto abria a porta da frente. — Se realmente precisar de ajuda, me procura na loja. Aqui em casa não posso mais te receber. Se você vai se comportar desse jeito…
— Está com medo de que eu vá te comprometer? Só por causa daquela loja mequetrefe, você se acha melhor do que eu? Você sempre vai ser aquele moleque piolhento que minha mãe pegou para criar!
— É, mas quem procurou quem agora?
Eliza não ficou para ouvir mais nada: saiu do apartamento batendo porta e pisando duro escada abaixo. Theo sibilou um palavrão entredentes, desabando na poltrona favorita, xingando no idioma de seus antepassados, agarrando o cachimbo e a sacola de fumo e depois abandonando-os novamente na mesinha, com raiva.
— Caralho! Por que eu ainda me preocupo com ela?! — disse para si mesmo. A resposta do silêncio foi algo que queimou o alto de sua cabeça: a expressão de Prosérpina diante dele parecia diferente. Menos assustada, talvez. Mais curiosa, até: a curva do pescoço se esticando, como se quisesse ver melhor o que acontecia na poltrona. — Vê só o que tenho que aturar? Ela passou a vida toda me tripudiando, e ainda se acha no direito de… de… de eu sei lá o que ela quer. Se pelo menos ela quisesse mesmo…
Fechou os olhos, respirando fundo. Que ridículo, agora estava falando sozinho! Ou pior, falando com uma pintura na parede! Aquela onda que o tinha afogado de um só golpe também era púrpura — púrpura de um tom que ele queria de todo jeito esquecer, que o fez ignorar tudo a seu redor, que queria afogar e trancafiar de novo dentro de si antes que fizesse mais uma besteira. Eliza, para ele, ainda tinha seis anos, uma menina que dizia que o pai dela morava num castelo no Pall Mall (o pai que ninguém jamais vira, que não lhe dera um sobrenome — e Pall Mall era distante como a Terra da Lua para gente nascida na sarjeta como eles dois). Por que ela ainda conseguia feri-lo tanto?
Ele teria de bom grado a beijado de volta, se o sentimento por detrás da ação fosse genuíno. Teria carregado ela para a cama — ele não era feito de pedra, por mais que parecesse. Teria até se casado com Eliza — perdoado todas as humilhações proporcionadas por ela, se ao menos tivesse dito a verdade. Mas ela só fizera aquela cena toda porque Rossetti tinha lhe dado um fora. Alguém a estava seguindo? Conta outra: ela já tinha usado essa tática antes. Foi assim que conseguiu a atenção de Rossetti.
Por que ele ainda se importava com isso?
Se tivesse erguido o rosto uma vez mais, veria que Prosérpina seguia observando-o com uma curiosidade ainda maior, os dedos apertando a romã a ponto de o suco escorrer pelos dedos calejados. Mas ele ignorou o quadro até a hora de se vestir e seguir para o trabalho, deixando a tela na escuridão.
Continua…
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CRÉDITOS
Autora: Anna Martino Edição: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Preparação: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Revisão: Lavínia Rocha Diagramação: Val Alves Título tipografado: Samia Harumi
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