Aviso: Esta obra menciona relacionamentos tóxicos, machismo e abuso de poder.
Durante um mês inteiro, Prosérpina assistiu de camarote à vida de Theo Jansen, da hora que ele acordava até partir para a loja de tintas, da hora que chegava em casa até dormir.
Que espécime divertido, aquele moço ruivo. Era dedicado em tudo o que fazia — fossem os catálogos de tinta a óleo ou a análise da tela, tudo com o que se envolvia ganhava atenção total. Ela tentava não se mexer quando ele a tirava da parede e punha-se a analisar de perto a lona da tela — com uma lupa, com os olhos, com os dedos, raspando os cantos da tela para analisar a tinta em um pires, fazendo anotações variadas em sua caderneta, falando sozinho enquanto procurava adivinhar que pigmentos tinham sido transformados em folhas, mármore ou pérolas na pintura. Ele fazia comentários para si num idioma estranho, ia e voltava franzindo a testa, cutucando aqui e ali, evitando olhá-la nos olhos por algum motivo.
Mas quando a olhava, era como se o sol iluminasse tudo. Nesses momentos, ele falava com ela com sorrisos, pedia desculpas se precisasse raspar algo, ria-se dos enfeites dos cabelos (“deve dar trabalho para tirar na horar de dormir, hein? E essas joias pesadas, será que eram suas ou o pintor emprestou as de alguém?”), pensava em voz alta (“será que você chegou a ver Napoleão? Ele era baixinho mesmo com diziam? Quantos bailes você deve ter visto daí… Para acabar nesse fim de mundo!”).
Às vezes, ele recebia pessoas em casa: pintores, modelos, artistas que fumavam e bebiam, falavam da falta de dinheiro e dos mecenas que andavam escassos como dias de sol, lamentavam as dores de amor e as dores físicas. Falavam de seus planos, de sociedades secretas, do horror antiquado da Academia Real de Artes e como tudo deveria mudar. Ela viu como Theo aconselhava pessoas, como ajudava com dinheiro ou com indicações; e como preferia passar horas lendo, acomodado em sua poltrona preferida, acompanhado apenas de um cachimbo de cerâmica, longe de todo o barulho.
De todos os visitantes, Samir era o mais fiel, e o único que Theo ficava contente de verdade em ver. Prosérpina passou a ficar feliz ao escutar a voz grave do outro lado da porta, porque quando aquele anglo-egípcio e seus coletes de seda vermelha estavam ali, ela partilhava do segredo deles.
As pessoas sussurravam suspeitas de todo tipo sobre os dois. Se soubessem que o mais jovem mestre colorista de Londres e seu secretário eram dois casamenteiros, o que diriam?
— Que temos na lista hoje? — Theo pegou o cachimbo enquanto afastava a bagunça da mesa, guardando os instrumentos que usava para analisar o quadro.
— Ainda tem o caso da senhorita Julia… Eu andei conversando com um amigo meu que frequenta uma sinagoga… Acho que encontrei um candidato.
— Você checou os antecedentes?
— Patrão, não faço serviço pela metade. — Samir cruzou os braços. — Solteiro, sem filhos, trabalha como carteiro… Meu amigo disse que, se a gente quiser, o rabino pode até escrever uma carta de recomendação.
— Pois diga ao seu amigo que aceito, sim. Candidato que vem com carimbo eclesiástico me dá menos dor de cabeça. E vamos para o próximo caso… Essa aqui é amiga da Eliza… Viúva, com dois filhos para cuidar… Samir, o que houve?
— Nada não, patrão — Samir baixou a caderneta devagar. — É esse quadro aí.
— Que tem ele? — Theo empalideceu.
— Não combina com a sua casa. Com todo o respeito…
— É, eu sei que não. — Samir era observador: um apartamento de dois cômodos, eternamente empoeirado e com móveis de segunda mão, não era lugar para aquela pintura opulenta. Mas seu secretário não parecia ser observador o suficiente para notar que o quadro tinha magia. — Sabe que até gosto dela? Me faz companhia. Ela é bem simpática, não acha?
— Ah, bem, patrão, quanto a isso… — Samir tamborilou os dedos compridos na mesa. — Estava aqui pensando uma coisa, se não se incomoda… O senhor se esforça tanto para ajudar os outros… Tem tanta candidata, decerto achamos uma pro seu gosto.
— Tem até graça… — Theo desviou o olhar. — Feio, estrangeiro e arrivista? Quem ia querer alguma coisa comigo?
— O senhor não é arrivista, patrão. Herdou a loja honestamente. Eu estava lá, sou testemunha — Samir insistiu. — E dois terços dessa cidade é de gente estrangeira. Eu sou “estrangeiro” aos olhos de todos, e veja que sou nascido e criado aqui… Isso não é impedimento. Depois de tudo o que o senhor passou, não acha que merece uma família? O quadro é bonito, mas não responde quando o senhor diz "bom dia".
Theo fechou a cara, e Prosérpina se moveu de tal jeito na tela que foi um milagre Samir não ter ouvido nada. Pelo menos o secretário mudou de assunto, e manteve-se longe de palpites pelo resto do dia.
***
De nada adiantou aquele silêncio envergonhado do anglo-egípcio, porque a frase ecoou dentro do crânio de Theo. E, no fim do dia, quando não haviam mais pintores ou modelos, nem Eliza ou Samir ocupando espaço em Gower Street, quando Theo pôde se dar ao luxo de ficar de pijama na sala, fumando e lendo, a imagem da tranquilidade doméstica, ele se sentiu profundamente incomodado com tudo ao seu redor.
Estava quieto em uma casa que era dele, que não precisava dividir com ninguém e da qual não poderia ser expulso. Havia carvão na lareira, cobertores na cama. Só faltava mesmo o gato ronronando no tapete ou a esposa bordando na cadeira ao lado para completar a imagem.
Aqueles eram os elementos de uma pintura — de várias pinturas, repetidas à exaustão a ponto de ficarem gravadas na memória como se fossem a Verdade Absoluta. Theo era alérgico a pelo de gato e sabia que morreria solteiro: por que estava incomodado com o silêncio de sua residência?
Samir precisava parar de falar bobagens, isso sim. Família? Ele? Ele tinha a loja, não era preocupação suficiente?
Ergueu o rosto. Prosérpina parecia diferente naquela noite, mirando algo fora do quadro com a testa um tanto franzida. Por instinto, Theo seguiu o ângulo de visão da modelo — se fosse de verdade, estaria vigiando a porta de entrada do apartamento, com um arzinho bem enciumado. Será que ela achava que Eliza iria invadir o território de novo?
— Pode parar de se preocupar. Hoje não tem função — Theo falou em voz alta, enquanto enchia novamente o cachimbo. — Vai ter que se entreter comigo lendo meu livro até que eu caia de sono na poltrona. Sinto muito.
Theo se ergueu, indo ostensivamente acender o cachimbo na copa. Quando voltou, as sobrancelhas da moça na pintura estavam erguidas e o olhar surpreso — alguém pego em flagrante delito — parecia iluminar toda a tela. A romã quase caía de seus dedos finos.
— Que foi? — Theo se permitiu dar risada. — Achou que eu não iria perceber? Você não é muito discreta! O que achou da peça? O cenário é pobre, mas o elenco é de primeira, não é? — A risada logo murchou. — Vou descobrir do que você é feita e aí você vai embora. Não vai precisar ficar vendo esse cortiço aqui por muito mais tempo. Não se preocupe, o seu segredo está a salvo comigo.
Ele cobriu os olhos por alguns segundos. Prosérpina parecia terrivelmente assustada, como se tivesse ouvido a pior notícia de sua vida. A romã desabou de seus dedos, os olhos arregalados em um pânico que vinha à mente como um tom vítreo de azul.
— Mas que cara é essa? Esse foi o combinado. Seu lugar não é aqui. Samir tem razão, você não combina com essa casa. É simples demais para um quadro tão bonito. — Ele ergueu a mão para tocar de leve os arranjos no cabelo cor de linho da pintura. — Você deve ter visto coisas piores, não é? Parada em um palácio como o da Imperatriz Joséphine, se é que a história é verdadeira. Já deve ter visto de tudo. Aposto que você contaria histórias ótimas, se pudesse falar. Eu iria gostar de ouvir.
A expressão de Prosérpina não estava mais tão assustada. Parecia ainda surpresa, com uma mão firme contra a casca da romã e outra tocando os enfeites no cabelo, o mesmo local onde Theo tinha pousado a mão. Os dois se encararam em silêncio por alguns instantes, presos em um círculo mágico, algum tipo de ímã mais forte do que qualquer material encontrado por cientistas ou exploradores.
Estranho: como um quadro dourado poderia fazê-lo ver vermelho?
Ele tinha esquecido que aquele tom existia. A última pessoa que conseguiu arrancar seu fôlego daquele jeito não tivera muito uso para o sentimento. Pobre Frederick, pensou — pobre deles dois, por todos os pecados que nunca tinham sido cometidos e que ainda assim queimavam na consciência.
Não era justo. Tanto que havia dentro dele desde então, trancafiado, apodrecendo — e não conseguia falar, não conseguia pôr para fora.
Removeu a mão lentamente, trêmulo de medo, desviando o olhar para que Prosérpina do outro lado não pudesse ler o que se passava dentro dele, esperando involuntariamente algum tipo de milagre. Que Prosérpina respondesse, que conseguisse quebrar a barreira que os separava. Nada aconteceu, porém, e ele foi para o quarto sem olhar para trás, sem perceber que a figura no quadro estava com as duas mãos espalmadas contra a tela, tentando chamar sua atenção de volta, tentando sem sucesso impedi-lo de se afastar.
Continua…
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CRÉDITOS
Autora: Anna Martino Edição: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Preparação: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Revisão: Lavínia Rocha Diagramação: Val Alves Título tipografado: Samia Harumi
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