Aviso: Esta obra menciona relacionamentos tóxicos, machismo e abuso de poder.
idades têm cores próprias, assim como as pessoas. A região onde Pasha morava — Lamb’s Conduit Street, próxima ao hospital para crianças abandonadas de Great Osmond Street — era de um tom esquisito entre o cinza das ruas e o marrom dos prédios. Mesmo as árvores pareciam sumir entre uma ponta e outra da escala de cor, e todas as lojas — a livraria, o encadernador, a modista — não conseguiam adicionar uma gota de vermelho ou de azul à paleta desanimada.
Theo não gostava de visitar pessoas sem aviso prévio — seria honesto dizer que raramente fazia visitas de qualquer tipo —, mas emergências demandavam medidas bruscas, e não ia esperar Pasha aparecer na loja para esclarecer suas dúvidas.
Tinha testado o quadro naquela manhã, depois que Samir partira com a lista matrimonial — perguntara à Prosérpina sua opinião sobre os candidatos a matrimônio que o anglo-egípcio trouxera naquela manhã. Cobrindo os olhos e aguardando alguns instantes, mesmo em plena luz do dia, o rosto da modelo se alterava em aprovação ou desaprovação. O ímã ainda estava ali, ainda mais forte do que na noite anterior. O vermelho se espalhava por ele como um manto, a ponto de fazê-lo tremer só de lembrar dos olhos da pintura encarando-o.
Se Prosérpina fosse uma mulher de verdade, teria feito misérias com Theo. Ela o encarava como se fosse pular da tela a qualquer momento para montar nele sem nenhum senso de pudor. Parecia o tipo que nem se incomodaria de tirar as roupas para isso.
E o pior é que teria deixado que ela o devassasse de muito bom grado — ele se pegou imaginando como seria se ela o devorasse do jeito que achasse mais conveniente. Debaixo de todo aquele brocado existiam maravilhas, ou pelo menos era o que pensava quando deveria estar dormindo.
Aquilo, Theo decretou para si mesmo, era péssimo. Tinha concordado em ajudar Pasha a desvendar um mistério, não em ser enfeitiçado por uma tela. As tintas não tinham nada de estranho, então só podia estar perdendo a sanidade de uma vez por causa de magia.
Ou era a solidão. Parte dele dizia que até tinha demorado para aquilo acontecer — não poderia se engolir por tanto tempo sem acabar com dor de estômago.
Precisava de ajuda. Mas, para seu azar, Pasha não estava em casa. Em seu lugar, estava a galesa com quem o falso-russo tinha feito seu ninho há quase uma década — Gwen, cabelos de obsidiana e olhos de baioneta, afiados e sem cor. Ela era o que os franceses chamavam de sage femme, o misto de parteira, curandeira, conselheira e agente de adoção de crianças rejeitadas pelos pais, fosse no mundo visível ou no mundo onde só as fadas caminham. Não era profissão que pudesse ser anunciada com placa na porta, mas as pessoas sempre a achavam, assim como Theo sempre achava candidatos para suas noivas sem colocar anúncio no jornal.
Gwen o recebeu na sala de visita, um local tão cheio de objetos curiosos quanto o apartamento de Theo — um gabinete de curiosidades de tons eslavos cheio de louças, enfeites, imagens de santos russos em tábuas douradas e um altar que Theo reconhecia como arte dos povos viajantes. Que Gwen tivesse deixado que visse aquilo indicava o tanto de confiança que tinha — ela não precisava esconder suas origens e nem sua formação para deixá-lo menos incomodado, como mulheres costumam fazer na presença do sexo oposto.
— É o quadro? — Ela foi direto ao assunto, um olho na empregada ainda na sala, outro em Theo se acomodando em um canto do sofá diante da lareira.
— A senhora sabia, então.
— Digamos que desconfiava… — Gwen baixou os olhos. A empregada tinha partido: agora podia falar com Theo sem precisar usar “senhor” e sem ser saudada como “senhora”. Apesar das saias azuis volumosas, das mangas compridas com renda de verdade nos punhos e da coiffure intricada, a dona da casa sabia dispensar os rigores da etiqueta com quem lhe era caro. — Pasha me disse que você seria a pessoa indicada para o trabalho, e eu confio no julgamento dele.
— Sou a pessoa indicada por quê? Por que entendo de cores ou por que não tenho coração? — Antes que ela pudesse responder, Theo levou a mão ao pescoço, querendo se esganar por ter sido rude. — Desculpe… Meus nervos…
— Você não precisa se desculpar por isso. — Gwen se sentou diante do visitante, o cuidado em pessoa. Era assim que ela tratava suas pacientes? Era rosa, aquela voz. Rosa por causa do perfume na sala? Por causa das flores dos vasos? Ou por causa dos calos nas mãos de Gwen, espinhos que traíam seu trabalho pesado? — O que aconteceu, afinal? Nunca vi você se assustar com magia.
— O que posso dizer? Parece absurdo, mas a imagem na tela se move quando não estou olhando. E agora quando eu estou olhando também. Ela parecia tão… — De novo as mãos no pescoço, um resmungo para encontrar as palavras. — Para que precisam saber a origem desses pigmentos? Querem reproduzir a magia em outro quadro? Criar outra pintura que se mexa? — Ele ficou pálido quando pensou em outra opção — Ela é de verdade? Foi aprisionada na tela, é isso? Seu marido se aproveitou da dívida que tenho com ele para…
— Theo — Gwen interrompeu com toda a doçura do mundo —, você sabe que Pasha prefere cortar os dedos a pedir ajuda… E ele pediu sua ajuda porque você é o único que poderia testar as tintas. Seja lá que magia está na tela, não tem como te atingir. Acha mesmo que eu e ele faríamos isso contigo? — Ela cruzou os braços, o rosa da voz revelando tons mais fervorosos. Falava a verdade. — Então a imagem se mexe. Não me surpreenderia se ela tivesse se afeiçoado a você. Você é um homem interessante, afinal.
— Madame, deixe os elogios baratos para seu marido. — Theo bufou uma risada constrangida, de novo tocando o camafeu para se acalmar.
— Não sou de gastar meu fôlego com falsidades, Jansen. Nisso, somos parecidos, eu e você.
— Somos. — Ele assentiu com um gesto bravo de cabeça. — Sim, somos, e é uma pena você não ter irmãs.
— Acha que seria mais fácil se você fosse casado?
— Ter alguém para dividir esse fardo seria bom, sim. Mas já me acostumei com o fato de que essa pessoa teria de ser inventada, como nas lendas.
— Como seria essa pessoa inventada? Se você pudesse encomendá-la, como você faria o pedido?
— Bem, seria… — Ele parou, surpreso com o branco total no cérebro: um tom imenso de inverno, de neve pura e inalcançável. De novo, os dedos procuraram o camafeu. Por que a joia parecia mais pesada? — Eu não sei. Engraçado, não? Eu simplesmente… Simplesmente não sei. Teria que gostar de arte… de cores. Pelo menos teríamos sobre o que conversar. Não imagino que maridos conversem com as esposas, pelo tanto de experiência que tenho, mas eu gostaria de poder conversar com alguém que morasse debaixo do mesmo teto que eu.
— Parece sensato — Gwen concordou —, mas é engraçado como você não mencionou habilidades como saber cozinhar ou cuidar da casa.
— Estamos falando de uma possível companheira ou de uma empregada? Enfim, o que importa? Se essa pessoa me amasse… quero dizer, se fosse capaz de sentir algo por mim… Bem, isso seria o Paraíso. E é por isso que eu sigo solteiro. Não existe um paraíso para pessoas como eu. Diga uma coisa, sua gente… Você, ou Pasha, ou outra pessoa do seu povo… Vocês não podem fazer alguém se apaixonar com magia, podem?
— Claro que não. Poções de amor são truques para arrancar dinheiro dos tolos. Por que a pergunta?
— Só queria me certificar — Theo respondeu com tanta tristeza na voz que Gwen não achou em si resposta para oferecer. E, quando ele partiu para o trabalho, arrastando os pés como um condenado, a curandeira só conseguiu respirar fundo vários minutos depois, e só apenas ao ouvir passos conhecidos do outro lado da porta.
Um rosto que só ela conhecia — de olhos azuis profundos como o mar da Cornualha, e o cabelo cheio de pomada para conter as ondas cacheadas que insistiam em se erguer na parte de trás da cabeça — apareceu na fresta, com um ar cansado.
— Pável… — Gwen cruzou de novo os braços, nem um pouco surpresa com a aparição do marido. — Quanto você ouviu?
— O suficiente, moya lyubimaya… E talvez um tiquinho mais, de brinde.
— Vai adiantar dizer “eu avisei”?
— Depende do objetivo, como sempre… — Pasha entrou de vez na sala e se sentou ao lado da esposa. — Quando eu digo que o sujeito só pode ser gente do meu lado, você diz que estou sonhando. Cacete, o sujeito diz que não entende de magia, mas consegue conversar com a pintura. Eu fiquei meses analisando a mesma imagem e ela nem piscou! — Fez uma careta de desgosto que ganharia aplausos em um palco. — Meu charme não é mais o mesmo, pelo visto…
— Vai ver, a mocinha prefere os ruivos. — Gwen beijou o rosto do marido e ele desfez a carranca fingida. — Vá buscar a pintura de volta, por favor. Estou falando sério. Não tem dinheiro que pague a sanidade de uma pessoa. Ainda mais a sanidade de um homem como ele.
— Você quem manda, amor.
— Eu não mando, apenas peço e verifico a disponibilidade… Se bem que, nesse caso, acho que vou abrir exceção e mandar mesmo. Por favor, vá recolher a pintura!
E Pasha teria mesmo feito isso, se, por acaso, o quadro não tivesse sumido.
Continua…
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CRÉDITOS
Autora: Anna Martino Edição: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Preparação: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Revisão: Lavínia Rocha Diagramação: Val Alves Título tipografado: Samia Harumi
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