Aviso: Esta obra menciona relacionamentos tóxicos, machismo e abuso de poder.
Ou melhor: o quadro ainda estava na parede, na mesma moldura antiquada, com o mesmo jardim pacífico no fundo do cenário, as mesmas colunas de mármore travertino e as cortinas de veludo vermelhas, as ovelhinhas no pasto distante. Mas Prosérpina não estava mais ali.
Theo fez Samir checar cada uma das trancas das portas e das janelas do apartamento. Nenhum sinal de arrombamento, nenhum sinal de invasão. Até a poeira das estantes e das cortinas permanecia intocada, todos os cacarecos do gabinete de curiosidade nas mesmas posições. O colorista arrancou o quadro do lugar com tanta pressa que levou junto o prego da parede; com a mesma pressa, examinou cada um dos encaixes da moldura, cada minúscula dobra de tecido sobre a estrutura de madeira. Era a mesmíssima estrutura que tinha pendurado na parede e que examinara durante todo o mês — como era possível que não houvesse mais uma Prosérpina segurando uma romã pintada na tela?
— Patrão, olhei até embaixo dos tapetes. Dentro dos armários. Olhei até debaixo de seu leito! Ninguém entrou aqui. E, se tivesse entrado, o senhor teria ouvido…
— Como se explica isso, então? — O colorista apontou a tela vazia. — Isso tem cara de uma daquelas malditas pegadinhas que o Rossetti apronta. Eu juro que vou torcer o pescoço daquele moleque!
— Patrão, com todo respeito, que tem cara de ser piada do senhor Rossetti, até tem… Mas esse quadro não parece nem um pouco com as pinturas que seus amigos conseguem fazer. Desculpa a honestidade… É arte de mestre e aqueles meninos ainda não são mestres.
Isso era verdade: os garotos com quem Rossetti andava, o grupo de artistas que Theo e Pasha ajudavam, eram todos talentosos, mas não eram capazes de imitar os detalhes daquela tela com tanta precisão. E Theo conhecia cada milímetro dela, afinal. Tinha literalmente se debruçado sobre ela por semanas a fio. Aquela era a pintura original, não havia a menor dúvida. E, no entanto…
Theo se sentou na poltrona tentando não chorar de nervoso, a garganta se fechando em uma onda de desespero. Tinham sequestrado Prosérpina? Por mais que tentasse manter um mínimo de racionalidade, era como se a moça da pintura fosse de verdade, e não um retrato. Se aquilo era uma brincadeira, alguma vingança tola de Eliza Silver ou alguma das malditas traquinagens de Holman Hunt ou Rossetti…
Algo caiu no quarto de dormir. Theo se ergueu correndo e cruzou a breve distância rapidamente para ver o que tinha acontecido. Na pequena alcova, a aquarela com a paisagem de Delft (herança paterna, Theo nunca estivera em Delft na vida, nem fazia muita questão de visitar o local) estava torta na parede. Ele ajeitou o quadro com as duas mãos — como era possível que uma aquarela fosse tão pesada? — quando escutou a porta da frente se abrir.
— Samir, meu querido! Seu patrão está em casa? Eu realmente precisava… Ah, não! Bem o que eu temia que fosse acontecer. — Era a voz de Pasha na sala.
Theo entrou no recinto como um furacão e enfiou as mãos no pescoço do filho das fadas, prendendo-o na parede entre as estantes em um golpe seco. Pasha era mais alto do que Theo, mas ainda assim, o colorista conseguiu erguer o outro homem com facilidade, como se estivesse lidando com um galho de árvore.
— O que foi que você fez? — Theo sibilou.
— Me solte e eu conto!
— Conte primeiro e eu solto! O que você fez? Onde ela está?
— Boa pergunta! Ela deveria estar aí! O que você falou para ela?
— Para ela quem? — Samir se intrometeu na conversa. — Vocês dois perderam o juízo de uma vez ou o quê?
Theo soltou Pasha, que desabou no tapete encardido com um ruído seco. Os dois tinham se esquecido de que Samir estava ali — e de que o anglo-egípcio não sabia dos pormenores mágicos entre eles. O falso-russo escondeu o rosto entre as mãos, fingindo estar sem ar enquanto tentava ajeitar a face desmontada.
— Faça-me um favor — Theo se voltou para o secretário, esforçando-se para manter um tom de voz minimamente normal e dando tempo e espaço para Pasha se recuperar —, feche a loja e dispense os funcionários. Hoje não estou com cabeça para atender ninguém. Diga a eles que todos receberão pelo dia, mas não precisam ficar.
Samir achou prudente não discutir. Mas também não obedeceu à ordem na mesma hora — escondeu-se atrás da porta para ouvir a conversa entre o marchand e o patrão, sabendo que Theo poderia ser ouvido até na China quando estava nervoso.
Mas não se ouvia nem mesmo um pio.
Do outro lado da porta, Pasha terminou de dizer um encantamento e se afastou. Pronto: o cômodo estava hermeticamente fechado. Ouvidos de fadas ou de humanos não poderiam captar a conversa mesmo que pusessem o prédio abaixo.
— Pelo umbigo da Virgem Maria… — Pasha se voltou para Theo, ainda pálido e com o rosto meio torto. Seus olhos mudavam de cor entre piscadelas, o queixo ia e voltava dentro do rosto sem se firmar em um formato específico. — De que cor estão meus olhos?
— Verdes.
— Ah, porcaria, não estou vestido para olhos verdes. Bom, podia ser pior… Da última vez que me atacaram desse jeito, acabei com um nariz adunco e queixo quadrado por uma semana. Nem um pouco elegante.
— Dane-se isso! — Theo voltou a agarrar o pescoço do marchand. — Explicações, seu russo pulguento. Agora! Como ela pode ter sumido?!
— Pode parar por aí que não tenho pulgas. Piolhos, talvez, mas não pulgas. Quanto às suas explicações… não tenho nem uma mísera migalhinha para oferecer. — Isso fez com que Theo soltasse Pasha. — Desculpa, não tenho. Não tenho mesmo. É a primeira vez que isso acontece comigo. Claro, já tinha ouvido falar de alguns casos, mas…
— Casos? Que tipo de casos?
— Você mesmo me disse: um artista que vende a alma para o que ele chama de demônio. Nada mais é do que uma fada que oferece o próprio talento para o sujeito… Ou, então, artistas devastados por uma perda dão tudo de si em uma pintura e a tristeza acaba ganhando vida na tela. Nos dois casos, dizem, a obra pode se tornar senciente… Mas não foge da porcaria da tela!
— Certo. Mas essa daí fugiu. — Theo voltou a coçar sua cabeça. — A quem pertence essa pintura, afinal?
— Um lorde chamado Farrington. Um velhaco meio metido a místico. Ele me disse que ganhou esse quadro de presente, logo depois que o nosso exército derrotou Napoleão Bonaparte de vez. — Pasha se sentou no banquinho que fora ocupado por Eliza semanas antes. — Bobagem romântica, você diria, mas… o pintor e a modelo do quadro se apaixonaram. O marido da moça matou os dois quando soube. Dizem que o retrato foi testemunha do crime. Farrington está ansioso para descobrir se a lenda era verdadeira, pelo que entendi. Ele diz que não acredita em magia, mas certamente é um desses tolos que caem em truques como mesas que giram e pessoas que falam pelos espíritos. Escuta, você tem outras pinturas na casa, meu caro?
— Só uma aquarela. E, bem, tem o calendário na cozinha. Mas eu olhei, não tem nenhuma Prosérpina neles.
— Pode alcançar a aquarela aqui para eu ver? Só por precaução.
Theo fez como foi pedido. Pasha analisou cada detalhe da aquarela com uma lupa que carregava no bolso do terno, mas não havia nada de estranho com a pintura claramente feita por um amador (ao ver a assinatura na base esquerda, “Petronella Jansen”, Pasha decidiu não comentar sobre a qualidade do desenho. Filhos não costumam aceitar bem críticas a respeito de heranças maternas). Era só o desenho de um moinho e de um rio, nada de mais. Não era mágico. Era só uma memória triste.
— Pois bem, queira me perdoar pelo uso pouco polido do idioma… Mas estamos fodidos. — Pasha enfim desistiu, passando a mão pelo rosto que voltava a se transformar. — Não, correção: eu estou fodido. O lorde lá vai comer meu fígado!
— Dane-se seu fígado, ele cresce de novo. Onde está a Prosérpina? Ela não saiu andando! Ou saiu?
Pasha encarou Theo, um olho de cada cor e o cabelo se mexendo em ondas como se tivesse vida própria. Talvez o sujeito não estivesse de todo errado…
***
Quando Samir terminou de dispensar os funcionários da loja, decidiu adiantar o trabalho do dia, já que estava por ali. Tinha uma pilha de correspondência para separar e três caixas de pigmentos para estocar, não era boa ideia deixar tudo acumulado para o dia seguinte. O patrão não teria cabeça para resolver nada, mesmo com a ajuda do senhor Doyle. Aquele sujeito, vai entender… Dia desses, era capaz de pôr o resto do mundo maluco feito ele. O que tanto o patrão devia para o sujeito? Ou era o contrário?
Que história estranha, aquela da tela trocada! Se foi brincadeira do tal Rossetti, tinha de tirar o chapéu: ele soube mesmo como deixar Theo Jansen profundamente irritado.
Não, irritado não era bem a palavra. Ele tinha visto o patrão irritado muitas e muitas vezes, por muitos motivos, mas a última vez que vira Jansen desacorçoado daquele jeito foi quando o antigo dono da loja falecera — e ainda assim, foi só um relance.
O ataque contra o senhor Doyle foi o mais próximo de emoção sincera que Jansen demonstrara em dois anos. Aquilo era perigoso como fagulha em palheiro, isso sim, perigoso demais para ser deixado sem supervisão. E, pelo visto, a “supervisão” teria de ser ele… de novo. Já não bastava o que acontecera quando o antigo patrão largou a loja? Somente os céus sabiam o quanto ele e Jansen tinham se esforçado para ninguém notar os buracos, para manter tudo funcionando. Será que a maluquice era herança do cargo?
Perdido em pensamentos administrativos e em preocupação com o estado de nervos das pessoas ao seu redor, Samir demorou para notar o montinho de mantas e cortinas no canto do escritório. O patrão, ele sabia, não tinha mais o costume de dormir na oficina, e nenhum dos outros funcionários se atreveria a tanto, pelo menos não dentro do escritório do mandachuva.
Ao se aproximar, colocando as cartas e caixas sobre a escrivaninha, notou cachos cor de linho escapando debaixo das mantas. Olhando mais de perto, percebeu que não eram mantas, tampouco: eram as muitas dobras de um imenso vestido de um tecido amarelado, pesado o suficiente para derrubar qualquer um no chão.
Que engraçado, pensou, parecia com aquela moça do tal quadro esquisito que o patrão tinha pendurado na sala de casa. Mas como ela tinha entrado ali? As portas estavam trancadas e a sala não tinha janelas.
Ele não sabia se devia se aproximar ou sair correndo e chamar ajuda. O instinto o mandou seguir a segunda opção.
Continua…
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CRÉDITOS
Autora: Anna Martino Edição: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Preparação: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Revisão: Lavínia Rocha Diagramação: Val Alves Título tipografado: Samia Harumi
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