Aviso: Esta obra menciona relacionamentos tóxicos, machismo e abuso de poder.
Quando o colorista viu o corpo estendido no chão, quase desmaiou.
Theo reconheceu primeiro o brocado e o enfeite desfeito nos cabelos. Deus, como ela era miúda! Ele a virou com cuidado, surpreso com a delicadeza de seus ossos. Prosérpina, sem dúvida alguma, o rosto todo sujo de poeira do chão. Ali estava a romã partida ao meio, caída debaixo do sofá, manchando o tapete. E ali em cima, na parede, um pequeno quadro mostrando Ruth e Boaz nos campos, uma pintura feita com carvão que Rossetti lhe dera seis meses antes, por ocasião de seu aniversário. A tela estava torta, como se alguém tivesse batido na parede.
— Quem é essa moça, patrão? — Samir perguntou, Pasha Doyle parado ao lado, roendo as unhas. — Precisa que eu chame a polícia?
— Acho que vou chamar a patroa aqui. — Pasha se afastou da porta, soando meio mareado. — Mal não faz em ter dois especialistas no local, né?
— É para chamar a polícia ou não? — Samir insistiu.
— Samir Ben Nasser, pelo amor do seu Deus, a menina pesa o mesmo que um saco de açúcar! O que ela pode fazer contra vocês? — Pasha bufou, embora ele mesmo não parecesse muito certo do que dizia. — Me destranca a porta, já volto…
Theo não estava ouvindo a conversa, nem percebeu que Pasha tinha saído ou quão assustado o marchand estava — sua atenção pertencia à moça, que respirava tão levemente que mal se notava. Ela era diferente da pintura em alguns aspectos: o nariz era um tiquinho maior, os braços e o rosto mais rechonchudos, o queixo um pouco mais para dentro (“erga a cabeça, senhorita”, ele imaginou o pintor dizendo, dando um jeito de disfarçar aquilo na tela), os dedos mais calejados do que esperava. O brocado perfumado com sândalo, o cabelo sedoso, tudo aquilo era encantador como o círculo mágico que os envolvia antes — só era real demais para fazer sentido.
A jovem abriu os olhos devagar, como se estivesse acordando de sono tranquilo em um leito de plumas. Quando se deu conta que Prosérpina percebia quem a estava observando, Theo se sentiu mareado, invadido por um calor inabalável: uma vibração que abalava cada fibra do corpo.
— Theo! — A moça se sentou com grande dificuldade, o brocado se recusando a deixar que se movesse como queria. — É você! É você! — ela falava como se tivesse aprendido o idioma de orelhada e nunca tivesse tido a oportunidade de treinar com outra pessoa.
— Prosérpina — ele respondeu, devagar.
— Nome diferente… — Samir disse, enquanto retornava para seu posto após escoltar Pasha para fora. Prosérpina olhou para o egípcio e começou a rir. — Algum problema, senhorita?
— Você… Você é bem do jeito que… Puxa! Sua voz!
— Senhora… Senhorita… — Samir se voltou para Theo — Senhorita, eu imagino, patrão?
— E você! — Prosérpina ergueu a mão para tocar os cabelos ruivos de Theo, com a timidez de uma criança com medo de queimar os dedos com a chama da vela. — Eu achei que era truque da luz. Mas, não, você é mesmo como um rubi! Puxa vida! Tão bonito. Tão bonito que nem dá para… Tão… tão…
E ela voltou a desmaiar no colo de Theo. Samir abriu espaço na única coisa que parecia remotamente com um sofá no local, um móvel capenga que ninguém mais na loja lembrava que existia de tão ocupado que era por papéis, caixas e outras tralhas. Foi lá que Theo, com alguma dificuldade, acomodou a moça desacordada. Ela parecia também tão humana, com cílios pálidos e compridos, os anéis apertados demais deixando vergões vermelhos nos dedos manchados de suco de romã.
— Ainda bem que o senhor Doyle foi chamar a esposa — Samir disse.
— Ele foi?
— Patrão, o senhor pode explicar isso, não pode? Quer dizer, a sala… As portas estavam trancadas! Ela entrou aqui como?! E por que está vestida desse jeito?
— Samir, me arranja um copo d’água. Depois eu explico, eu juro. Juro.
Tão logo eu entenda o que aconteceu, Theo pensou consigo mesmo. Mas isso vai demorar um pouco…
***
Samir tinha saído há algum tempo quando Prosérpina voltou a despertar. A primeira coisa que ela viu, de novo, foram as sardas e o cabelo rubro de Theo, e de novo começou a rir. Não era um riso alegre, o colorista notou — era o riso nervoso que as mulheres davam quando estavam em uma situação comprometedora e não tinham como escapar usando a força física.
— Está tudo bem. — Theo achou melhor acalmá-la, mesmo que não conseguisse acalmar o próprio coração.
— Você é Theo. Você. Então eu consegui mesmo? — Prosérpina arregalou os olhos — Eu consegui mesmo!
— Conseguiu o quê? Fugir do quadro?
— Sim, sim! Eu sempre soube que conseguiria, um dia. Era só questão de… de… — Ela ergueu a mão para tocar o rosto do colorista. — Puxa vida! Como você é quentinho!
— Madame! — Theo se afastou um pouco, chocado.
— Agora eu sou “madame”, é?
— Bem, eu…
— Você era mais simpático antes.
— Mas eu…
— Que culpa eu tenho se você é quentinho? E sua pele pinica um pouco quando se põe a mão, que esquisito isso! E, puxa vida! O tal Samir… Eu achava que o jeito dele falar era por causa do filtro da tela. Mas não, ele soa daquele jeito mesmo!
— Prosérpina… Seu nome é Prosérpina? Você tem um nome?
— Não faço a menor ideia. Prosérpina serve.
— Prosérpina. Certo. Por que você fez isso?
— Porque eu não posso voltar para as mãos daquele sujeito. Não posso e não quero e não vou!
— Que sujeito? Pasha?
— Pasha? — Prosérpina teve dificuldades para pronunciar o nome. — Eu não sei de nenhum homem com esse nome ridículo.
— Pasha Doyle. Paul ou Pável, depende de quem fala… O homem que te trouxe até mim. Aquele com os olhos de duas cores. O filho das fadas. — Theo se ergueu com cuidado e pegou um vidro na mesa, um líquido oleoso e malcheiroso que mergulhou em um trapo. Theo esfregou o tecido em um dos dedos de Prosérpina com força. — Mas como assim? A tinta não deveria dissolver?
— Mas claro que não! Não sou feita de tinta. Quer ver? — Ato contínuo, Prosérpina o agarrou pelo pescoço e o beijou com tanto ímpeto que Theo ficou sem fôlego. Quando ela se soltou, começou a rir como uma criança bem-sucedida em uma traquinagem. — Ela tinha razão! Isso é bom! Dá para sentir seu coração batendo nos lábios e tudo! Ora, você ficou ainda mais rubro? Por quê? Você deixa aquele colibri irritante fazer isso com você, por que eu não posso? Pelo menos eu gosto de você.
Vermelho. Aquele beijo desajeitado era de um vermelho tão forte que poderia matar alguém, que poderia afogar uma pessoa sem chance de escapar. Vermelho como incêndios, como o interior das romãs, como coisas que faziam Theo se engasgar e se perder enroscado em sentimentos confusos. E enquanto ele se afogava, Prosérpina só ria, deliciada com o que tinha arrancado dele. Será que ela não percebeu o que fizera?
Ele ainda estava tossindo quando Gwen Doyle entrou na sala, acompanhada por Samir. A galesa era o oposto da mulher em dourado: azul profundo nas roupas, preto-azulado no cabelo escondido em um respeitável chapéu forrado por seda cinza.
— Eu conheço você! — Prosérpina apontou o dedo fininho para a recém-chegada. — Você é a curandeira! A mulher que o tal Pasha beija embaixo das saias! Mas por que você está aqui? Não estou doente.
— Só está tagarelando de nervoso, e isso não é nada bom — Gwen respondeu com voz nada rosa. Ela estava ali a trabalho, e escondendo o susto atrás dos olhos de baioneta treinados para não deixar nada passar. — Jansen, acho melhor levá-la para casa para ser examinada…
— Mas eu não quero ir com você! — Prosérpina protestou, lágrimas caindo. — Theo, por favor, eu juro que não vou dar trabalho. Posso cuidar bem da sua casa. Seus amigos não precisam nem me ver. Pode me apresentar como uma parente distante ou como sua governanta. E não precisa se preocupar, eu sumo das vistas de todo mundo quando aquelazinha aparecer para te beijar. Por favor, por favor, eu não tenho outro lugar para escapar daquele sujeito. Theo, por favor, se eu voltar para a casa do tal de Pasha, ele vai me levar de volta e eu não quero ir!
Theo era imune a muita coisa, mas mulher chorando era golpe baixo — e Prosérpina chorando, pelo visto, era um golpe duas vezes mais baixo. Parecia que estavam arrancando seu coração com os pincéis finos que vendiam na loja. Olhou para Gwen, procurando algum tipo de apoio, ou pelo menos algum outro plano para fazer a garota em brocado dourado parar de se debulhar em lágrimas.
— Escute, menina, eu sou de confiança. — Gwen encarou o colorista. — Theo, você confia em mim?
— Sim, confio bastante.
— Com sua vida?
— Devo ela a vocês, não devo? A você e Pasha.
— Então…? — Gwen se voltou para Prosérpina de novo e removeu a capa que vestia. — Venha, é melhor você se cobrir… Meu marido está com a carruagem lá fora. Theo vai nos ver em uma hora, não é mesmo? E aí nós vamos nos organizar. Aqui você não pode ficar. Não é lugar seguro, você entende?
Gwen tinha a incrível qualidade de fazer as pessoas obedecerem a seus comandos sem perceberem que estavam recebendo ordens — e não tinha medo de usá-la quando preciso. A garota da pintura enxugou as lágrimas e saiu pelos fundos da loja coberta pelo manto azul-marinho da curandeira — um eclipse, Theo pensou ao ver a cena de longe, o perfil de Pasha dentro da carruagem, pronto para mandar o cocheiro se apressar. Prosérpina ainda se deu ao trabalho de olhar para trás e tentar acenar, os olhos cor de âmbar cheio de lágrimas de novo.
Theo não teve muito tempo para relaxar — tão logo as duas mulheres partiram na carruagem desajeitada que servia aos Doyle, Samir se postou ao lado do chefe como sempre.
— Devo me preocupar, patrão?
— Com a garota ou comigo? — Theo se surpreendeu com o fato de que conseguia falar algo coerente, e em idioma que seu amigo conseguisse entender, porque dentro de sua cabeça as palavras nadavam em holandês: gevaar, bedreiging, perigos e ameaças.
— Com a moça, obviamente! O patrão vai precisar de que tipo de ajuda?
Theo olhou para o fiel companheiro por um longo instante antes de compreender o que ele queria dizer. Claro — uma moça que foge, foge de alguém. No raciocínio linear de Samir, se aquela mulher escolhera seu patrão como protetor, era porque tinha seus motivos e cabia a ele apenas auxiliar no que fosse possível. O anglo-egípcio provavelmente já estava listando as possibilidades: um local respeitável para abrigar a garota, algumas desculpas para explicar a situação, e gente para correr atrás do provável rufião que a obrigara a se esconder na loja vestida daquele jeito.
Do outro lado da rua, um rapaz alto e de ombros muito largos pegava algo do chão com gestos muito lentos, como se tivesse dificuldade em se abaixar. Por algum motivo, Theo gravou a cor dos cabelos do sujeito: um tom de marrom muito difuso, que lembrava coisas decadentes, papel guardado, coisas escusas, ameaças veladas. Ele conhecia bem aquele tipo de cor, tinha acabado com a vida de tanta gente antes…
— Não sei de que ajuda preciso, ainda. Mas obrigado por oferecer — Theo disse por fim, desviando o olhar. O rapaz do outro lado da rua seguiu seu caminho, e o colorista entrou de novo na loja. No escritório, o quadro de Rossetti seguia torto na parede. Ele olhou para a imagem de Ruth e Boaz na parede e quase começou a rir. Abençoada fosse a ironia: aquela era a história de uma mulher que viera pedir por abrigo de surpresa, e um homem que se viu obrigado a ajudar.
Continua…
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CRÉDITOS
Autora: Anna Martino Edição: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Preparação: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Revisão: Lavínia Rocha Diagramação: Val Alves Título tipografado: Samia Harumi
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