Aviso: Esta obra menciona relacionamentos tóxicos, machismo e abuso de poder.
— Então você pulou de quadro em quadro até chegar aqui. É isso? — Gwen estava admirada. Não era, nem de longe, a resposta que esperava ouvir. A criatura diante dela, corset desfeito para que conseguisse respirar um pouco melhor, cabelos desarrumados e poeira grudada em todas as dobras de pele, estava ainda trêmula de susto, mas também incrivelmente orgulhosa de seu feito.
— Não foi legal? — Prosérpina olhava para as flores nos vasos de vidro com curiosidade que seria adorável em qualquer outro momento, mas não quando Gwen tentava entender o que acontecera, e não enquanto Pasha e Theo batiam boca do lado de fora do consultório na casa em Lamb’s Conduit Street. — Eu já passeava antes, quando morava lá no palácio. À noite, ninguém me via nem nada, ia de tela em tela. Onde houvesse algo com tinta, conseguia me esgueirar. Mas nunca consegui sair assim antes.
— E por que você não fugiu da casa do lorde Farrington, se conseguia sair do quadro?
— Por que eu faria isso, se não tinha onde ficar? Não quero ficar lá, mas também não sou besta de sair correndo sem ter um lugar aonde ir.
— E então Theo Jansen apareceu.
— Ele não é lindo? — Prosérpina riu de novo, o som como um sininho. — Ele é tão… tão… tão gracioso! Ele tem uma voz tão sonora! E gostava de conversar comigo. Tão atencioso! Mas… mas ele disse que precisava devolver o quadro… e eu… eu precisava fazer alguma coisa, não é?
Só porque dissera “gracioso”, algo desabou do outro lado da porta e um palavrão em holandês ecoou pelo ambiente. Pasha, pelo amor de Deus! Ela é problema seu, e não meu! Gwen soltou um longo suspiro, enquanto olhava para a paciente sentada no divã. Se não soubesse sua origem, diria que era apenas uma mulher jovem e saudável, de classe abastada: uma dama em quase todos os sentidos — exceto pelas mãos calejadas ou pelos modos nem um pouco delicados.
— E você acha que Theo pode ajudá-la em quê, exatamente?
— Não sei. Eu posso ser algo para ele, não posso? Aquela casa é uma bagunça. E ele está sempre solitário, mesmo recebendo tantas visitas. Mesmo aquelazinha…
— Aquelazinha? — Gwen tentou não rir do tom enciumado da jovem.
— É! Um pardalzinho anêmico que se senta no colo dele e o beija até onde não deveria e depois foge para que ninguém a veja. E ele fica ainda mais triste quando ela vai embora, e ninguém nem percebe. Ele é tão sozinho! Com esse monte de gente em volta e ele é sozinho que dói. Fiquei mais com pena dele do que de mim.
A curandeira imaginou que o “pardalzinho” deveria ser alguma prostituta — Theo, afinal, era solteiro, e criado na adolescência por uma alcoviteira que literalmente o resgatou da rua; ele não tinha o mesmo nojo que os homens de sua classe em relação àquele tipo de profissão. O que mais a surpreendia não era a menção àquele tipo de visitantes, mas o modo como Prosérpina se referia ao colorista — às vezes como se fosse uma noiva conivente com os excessos de seu prometido, outras tantas vezes como uma virgem iludida e, no fim, como uma mulher muito mais velha e experiente do que aparentava. O último sentimento até fazia sentido: o quadro de onde viera, afinal, havia sido pintado há mais de quarenta anos…
— O que você se lembra de sua vida, Prosérpina?
— Não muito. Eu não existia e depois passei a existir. Eu vi o pintor e a modelo do mesmo jeito que Theo e aquele pardalzinho. E vi como foram mortos. Depois, não vi muito mais, porque cobriram a tela. Aí veio o palácio e toda a vida nele. Depois um navio. Uma casa e outra e outra até aquela casa e aquele sujeito que chamou o tal Pasha para me tirar daqui de dentro. Ele passava horas na minha frente, aquele sujeito. Horas e horas e mais horas, olhando e olhando, sem falar nada, com aqueles olhos de sapo. E aí o tal Pasha me embrulhou e me trouxe até Theo.
— Que também te olha por horas.
— Ah, mas com ele é diferente! Ele me fazia cosquinhas. Sabe como é passar todos esses anos parada numa droga duma pose ridícula e ninguém nunca te fazer cosquinhas? É tão gostoso, por que nunca me fizeram isso antes? E era… Era tão bom, madame, como ele conversava comigo. E o jeito como é atencioso com todo mundo. Eu poderia ficar horas ouvindo ele falar. Tenho certeza de que ele vai me ajudar, sim. Senão, não tinha nem tentado dar no pé.
Nova onda de gritos do lado de fora. Escuta aqui, seu brutamontes comedor de batata… A voz de Pasha estava começando a se esgarçar, porque Theo conseguiu interrompê-lo sem esforço: Não, você escuta, seu russo pulguento… Quando Pasha respondeu com: Já disse que não tenho pulgas, cacete!, Gwen soltou outro suspiro e abriu a porta do consultório de supetão.
— Mas vocês dois podem calar a boca um minuto?! — O berro que ela deu fez Theo e Pasha saltarem de susto. Como imaginara: estavam os dois a ponto de se estapearem. — Jansen, por favor, aqui dentro, sim?
Theo ainda torcia as mãos manchadas de pigmentos quando entrou no consultório e fechou a porta com um cuidado ensaiado. Prosérpina o olhou de alto a baixo e sorriu tão abertamente em aprovação que chegava a ser constrangedor. Que mulher olhava daquele jeito para um homem? Só uma criatura que não tinha o que perder se arriscaria a tanto.
— Ela está bem de saúde — Gwen suspirou —, mas esse não é o problema, como você pode imaginar.
— Theo — Prosérpina tentou se levantar do divã apesar do brocado pesadíssimo de seu vestido, e não conseguiu —, sei que parece tudo muito estranho, mas…
— Mas você não deveria estar aqui — o colorista interrompeu Prosérpina —, e precisa voltar para a sua “casa” imediatamente!
O susto foi tamanho que Prosérpina, roupa pesada ou não, ergueu-se do divã na mesma hora, o queixo caído e os olhos cheios de lágrimas, uma atitude nada esperada, nada compatível com uma dama em brocados e joias como ela. Theo achou, por um instante, que ela iria estapeá-lo.
— Mas não tenho para onde ir! — Prosérpina protestou. — E não diga que sou problema do tal de Pasha. Não saí da tela praquele filhote de fada cuidar de mim. Ele tem problemas o suficiente. Quero dizer, com o bebê e tudo o mais…
— Que bebê? — Theo franziu a testa e Gwen ficou praticamente púrpura de constrangimento. — Ah… Claro… Não dá para notar ainda. Meus parabéns, Gwen. É para quando?
— Fim do ano, Deus me ajudando. — A curandeira soou incrivelmente tímida. Theo sabia que aquele era um assunto doloroso para a curandeira e o marido feérico, tingido com esperanças e lágrimas o suficiente para encher um lago. — Podemos voltar ao assunto? Talvez ela fique melhor acomodada comigo e com Pasha. Longe dos olhos de seus amigos pintores, para começar.
— Que seja, trago a tela aqui. Como foi que você saiu da minha casa, para começo de conversa?
— Pulei para dentro do camafeu no seu bolso, enquanto você dormia. Quando você chegou na loja, fui pulando de canto em canto no mostruário de tintas até que me escondi na pintura de Ruth e Boaz… E aí eu apaguei.
Jansen fechou os punhos imediatamente, sem ver como Prosérpina se afastou, assustada. O camafeu! Como ela teve coragem? A imagem de sua mãe — a mecha de cabelo dela — a coisa que mais amava no mundo! A ideia de que ela tivesse usado aquele objeto como meio de transporte — por mais absurdo que fosse — sobrepunha-se ao pequeno pânico do fato revelado: ela sabia que carregava o camafeu no bolso do colete, próximo ao coração. Tinha acesso até aos hábitos mais íntimos de sua vida. Ele tinha carregado Prosérpina para fora de casa e não percebera.
Ela provavelmente o vira chorar escondido. Será que vigiava seu sono, escondida dentro da aquarela de Delft? Ou então saía do quadro enquanto ele não podia ver e mexia em suas coisas? Será que trocava as xícaras e os objetos das estantes de lugar, ou fuçava nos livros ou nos animaizinhos de corda que ele fazia, como diziam que os duendes das lendas aprontavam? Ou dormia em sua cama, fingindo ser a dona da casa?
— Ela vai ficar aqui enquanto busco a tela — Theo se esforçou para falar baixo. — E que seu marido nunca mais me peça nem um copo d’água. Devo minha vida a vocês, mas isso já é pedir demais.
— Theo… — Prosérpina tentou falar algo, mas o colorista tinha saído da sala, da casa, e se conseguisse andar depressa, era até mesmo capaz de sair do país, tamanha sua raiva. — Mas o que fiz de errado?
— Alguns retratos não servem de meio de transporte — Gwen se sentou diante da pequena escrivaninha, vendo o coração da jovem se despedaçar. — Não é nada pessoal. Você vai aprender a lidar com ele.
— Claro que vou. — Prosérpina ergueu o rosto, numa expressão que escondia mundos inimagináveis. Ela não iria desistir fácil de sua fuga, e nem de seu alvo rubro. Havia ferido Theo sem querer, mas pretendia corrigir o erro tão logo conseguisse revê-lo. Respirou fundo, e o som terrível do chiado em seu peito alertou Gwen de que algo estava errado. — E o que houve, madame curandeira?
— Economize suas forças até ele voltar com a tela — foi tudo o que Gwen disse.
Continua…
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CRÉDITOS
Autora: Anna Martino Edição: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Preparação: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves Revisão: Lavínia Rocha Diagramação: Val Alves Título tipografado: Samia Harumi
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