Eu conseguia ver o sorriso nos rostos das pessoas, a alegria em seus olhos, sentia os abraços apertados dos meus parentes, mas para mim aquilo era parecido como uma execução. Mais uma vez, a minha tia resolveu se mudar. E eu não podia fazer nada. A não ser acompanhá-la nessa roubada. Tudo bem, entendo, eu era um pobre órfão vivendo às custas dela, então, lógico que para sustentar a mim e meus irmãos, uma mudança de cenário era necessária.
Estávamos familiarizados com os aeroportos. O meu pai era militar, ou seja, viajar fazia parte da nossa rotina. Chegamos a morar dois anos em Manaus, entretanto, pouco me lembro, tinha apenas quatro anos. Na cidade, meu pai decidiu comprar uma casa para investir em aluguéis, além de ganhar dinheiro do Exército.
Você sabia que o Amazonas é longe? São quase 10 horas de viagem. Quem viaja 10 horas? Fiquei impaciente no aeroporto do Rio de Janeiro. O voo estava marcado para às 3h. Fiquei tão cansado por empacotar minhas coisas que o sono bateu. Pela reclamação, deve ter percebido que sou adolescente, né? Mas, sou um dos bonzinhos, aqueles que não dão trabalho, juro.
Tenho 16 anos. Sou gordinho, se considerar alguém com 100 quilos, gordinho. Sou branco e sem qualquer tipo de habilidade aparente. Tenho dois irmãos: a Giovanna (12 anos) e o Richard (9 anos). Eles são lindos e lembravam muito meus pais. Prometi que cuidaria deles, então, essa se tornou minha missão nos últimos cinco anos.
Já a responsabilidade da nossa guarda ficou com a irmã da minha mãe, Tia Olívia. Começamos com o pé esquerdo, pois não aceitei muito bem a morte dos meus pais e tive alguns surtos como, por exemplo, destruir todo o meu antigo quarto. Depois de acompanhamento psicológico e alguns remédios, pude começar a deixar o sentimento de perda de lado e viver a vida com mais normalidade.
A profissão da tia Olívia exigia muito dela, então, sou um jovem que faz coisas que outros da minha idade não sabem, como: lavar roupa, cozinhar, medicar crianças, limpar chão de vinílico e lidar com pré-adolescentes. Apesar de ganhar bem, toda a economia da titia vai para nossas escolas e contas da casa.
Bem, voltando ao aeroporto. Andamos até a sala de embarque, Richard tentou correr na minha frente e tropeçou. Gente, como ele não consegue ficar com sono? São 3h20 da manhã. A Giovanna estava com cara de poucos amigos, mas não é por causa do sono. Na escola, ela era um projeto de abelha rainha e precisou abandonar todo o glamour para uma cidade nova. Acho que não tem nenhum traço deles em mim e vice-versa, quer dizer, tirando o fato de sermos loiros.
— Vai ficar com essa cara de desânimo? — questionou minha tia, me assustando.
— O quê? - questionei, fingindo demência, mesmo sabendo a resposta: sim, estou desanimado.
— Qual o motivo para tanto desânimo? — titia insistiu, andando do meu lado e olhando para cima, pois sou mais alto que ela.
— Não estou desanimado, tia. É o sono. Fora que estou cansado de mudar. Queria criar raízes, sabe.
— Eu sei querido, mas em Manaus, eles vão pagar o triplo do valor que ganho aqui. Fora que o teu pai tem aquela propriedade em Manaus. Não vamos pagar aluguel. — titia se armou de pontos que eu não poderia contra argumentar, então, apenas aceitei a derrota.
Tia Olívia pegou nos meus cabelos e bagunçou. Odeio quando ela faz isso. É tão infantil. Na verdade, odeio o contato humano como um todo. Isso é culpa da Jéssica Tavares que estudou comigo no maternal. Aquela 'vacazinha' sem coração me beijou no meio da classe toda. Eu lembro disso, um mico total. Vai dizer que não lembra das coisas que fez quando tinha 4 anos? Eu lembro.
Finalmente anunciam o voo, e seguimos para a área de embarque em um daqueles ônibus sem acento. Tenho vontade de rir, pois parecemos aqueles animais que são transportados para outros lugares. O termômetro marcava 15 graus, até aquela característica fumaça saia de nossas bocas. Giovanna pareceu uma maluca tirando selfie na frente do avião.
— Yuri. Tira uma foto minha aqui na frente do avião. — ela me pediu, entregando o telefone e fazendo uma pose estranha.
— Quantas fotos você já tirou hoje? — questionei acionando a câmera.
— 394, mas quem tá contando? — ela disse de forma irônica.
— Credo.
Não sou fã de aviões. Na última vez, paguei o maior mico da história da aviação brasileira. Não vou entrar em detalhes, mas, basicamente, minha bexiga não aguentou e urinei no acento em que estava. O médico receitou alguns calmantes, a tia Olívia queria ter certeza que nenhum acidente aconteceria.
— Tome agora. Antes de subirmos. — ela pediu novamente, mas, dessa vez, me entregando os remédios e uma garrafa de água.
— Tia, não é necessário. — tentei argumentar, sem sucesso.
— Da última vez você mijou nas calças. — lembrou minha irmã pegando o celular da minha mão.
— Você vai fazer xixi de novo. Posso filmar? — questionou meu irmão, mais animado do que deveria.
— Ninguém vai fazer nada. — titia repreendeu meus irmãos e passou o remédio. — Vamos amor, tome logo.
— Aff. — peguei o medicamente e tomei na frente deles.
— Vamos, crianças. Entreguem os bilhetes para os atendentes, por favor. — titia nos orientou antes de subir.
Aviões. Cruzes. Como essas coisas podem voar? Sempre tenho ataque de ansiedade quando viajo em aviões. Da última vez, quando minha bexiga me traiu tive que viajar o resto do percurso dentro do banheiro e permaneci lá por quatro horas. Fora que para as pessoas com os bumbuns mais avantajados, como eu, aquelas cadeiras são horríveis, ficamos apertados e o espaço entre um acento e outro é mínimo. Malditas empresas capitalistas.
Sentei ao lado da janela e uma forte chuva começou a cair. Olhei para a minha tia em pânico,. Ela se debruçou entre as poltronas e baixou a cortina. 10 horas. 10 horas. Era quase o tempo que eu gastaria para ir aos Estados Unidos. Conhecia muito pouco o Amazonas, claro que não ao ponto de achar que na cidade só haviam índios. Sou muito bom em História e Geografia, por sinal. Só queria que a tortura acabasse logo.
Havia atualizado minha playlist. Coloquei todas as bandas que eu gostava: Oasis, Coldplay, The Keane, Rediohead, ABBA, entre outros. Meu gosto musical era a única coisa que salvava em mim, pelo menos, eu achava. A primeira música que tocou foi The Scientist, do Coldplay. Felizmente, o remédio fez efeito mais rápido do que o esperado e acabei adormecendo.
Por causa dos medicamentos, sonhei com o dia do acidente dos meus pais. Minha mãe me acordou de madrugada e pediu para que tomasse de conta dos meus irmãos, porque o papai estava passando mal. Eles seguiram para o hospital, porém, nunca chegaram lá. Era um dia chuvoso e um barranco caiu em cima do carro deles. Eu demorei muito para digerir tudo. E a minha tia, mesmo com 24 anos, assumiu a responsabilidade de nos criar. Ela era muito ligada com mamãe.
— Yuri, querido. Acorde. Chegamos. — titia disse me chacoalhando.
— Chegamos, como assim? É impossível. Eu dormi por 10 horas? — perguntei confuso.
— Dormiu. E babou toda a poltrona. Pelo menos, não fez xixi. Tirei umas selfies, depois olha meu face. Hashtag sem noção. — disse Giovanna rindo e balançando o celular em sua mão.
— Pessoal. Vamos. Quero ver os macacos, as araras. O meu amigo Thomas falou que vou morar em cima das árvores. — soltou Richard correndo de um lado para o outro.
— Querido, calma. Não vamos morar em cima das árvores. — garantiu tia Olívia para tristeza de Richard.
A aeromoça permitiu que fossemos para a área de desembarque. Estávamos cheios de malas, então tivemos que esperar alguns minutos. Ao todo, eram 10 malas enormes, toda a nossa vida no Rio de Janeiro foi condensada nelas. Até que o aeroporto estava bem refrigerado. Ahhh... o pessoal exagera com o calor do Norte, pensei comigo mesmo.
Pegamos carrinhos para carregar todas as malas e nos dirigimos para o estacionamento do Aeroporto. Quando as portas se abriram senti apenas um leve vento quente que deixou meu rosto vermelho. Puta merda, pensei em seguida.
Calor. A única coisa que eu pensava era em mergulhar em uma piscina cheia de gelo. A minha tia alugou um carro no aeroporto e instalou o GPS. Ao entrarmos, a primeira coisa que fizemos foi ligar o ar-condicionado. Ainda bem que fui no banco da frente. Sempre foi assim, titia dirigindo, eu sendo o co-piloto e os pestinhas atrás.
Fiquei impressionado com Manaus. Nunca vi tanto verde na minha vida. O caminho parecia uma floresta. Será que os comentários que via na internet estavam certos? Até que vi o Rio Negro pela primeira vez. As águas escuras balançavam de um lado para o outro, ao longe pude ver uma ponte enorme.
O nome da praia era Ponta Negra. A minha tia parou um pouco, mas logo fomos embora, o sol estava forte e não tinha sinal de vento. No caminho, observava tudo o que passava como um shopping, a sede da marinha e uma igreja enorme, ou melhor, várias igrejas enormes.
A nossa casa ficava afastada do aeroporto, então, demoramos um pouco para achar. Para passar o tempo, colocamos uma seleção de músicas chamada Nossa Bagunça, onde cada integrante da família colocou as canções que mais gostava. Tinha de tudo ali, continuei fiel ao meu gosto musical, ou seja, quando tocava um Oasis, Coldplay ou Radiohead, podia ter certeza que a opção era minha.
Giovanna deu um gritinho bem afetado quando os primeiros acordes de 'Atura ou Surta' começaram a tocar. Realmente, a canção tem uma batida bem animada e viciante. E para a minha surpresa todos sabiam a letra, afinal, a Giovanna vivia metendo essa canção goela a baixo.
Na verdade, adoro esses momentos com a minha família. Uma adulta e três crianças contra o mundo. Não somos perfeitos, longe disso. Brigamos bastante, porém, nos amamos além da conta. Ver o sorriso no rosto dos meus irmãos é algo que não tem preço. Por isso, mesmo contra vontade, entrava na brincadeira deles. Cantamos o refrão gritando, alguns motoristas que passavam do lado nos olhavam de forma estranha.
***
Faço o que eu quiser
Não vou me explicar
Você sabe bem
E vai ter que me aguentar
Eu te avisei atura ou surta
Ou surta
Eu te avisei atura ou surta
Ou surta
E você sabe
Eu não quero compromisso
Não sou louca de mexer com isso
Nã ã ã ã ã ã ão
(Francinne)
***
Passamos na frente de um grande shopping (o terceiro ou quarto, perdi as contas). Letras garrafais na fachada formavam a palavra: Manauara. Então, deveria ser o nome do shopping. Uma outra música familiar começa a tocar, uma das minhas favoritas na real, 'The Blower's Daughter', do Damien Rice. Cara, esse homem é demais.
Quando passamos próximos a uma quadra de areia vi o garoto mais bonito do universo. O mundo parou naquele momento, e claro, eu agradeci. Ele era alto, cabelo baixo, moreno e estava praticando slackline. Haviam outras pessoas com ele, entretanto, meus olhos só o enxergavam. Nunca senti o coração tão acelerado.
— Uma delicia. — soltei, inconscientemente.
— Uma delicia?! O que é delicioso? — questionou minha tia me tirando do estado de transe.
— Oi? Como assim? — perguntei confuso em um dos meus habituais 'gay panic'.
— Você disse delicia. — repetiu titia.
— Disse não. — falei ficando vermelho.
— Disse sim. Eu ouvi. — soltou Giovanna, com uma voz afetada e chutando o banco que eu estava sentado.
— Eu também escutei. Se for comida eu quero. — ressaltou Richard rindo.
— Estava falando do clima. O clima é delicioso. — usei a única desculpa que veio à cabeça.
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