Giovanna ficou revoltada. Ela mostrou um vídeo de um homem fritando ovo na rua de Manaus. Detalhe, ele fritou o ovo no asfalto no dia que os termômetros da cidade marcam 43 graus. Então, minha irmãzinha começou um monólogo sobre saudades de suas amigas do Rio de Janeiro.
— Vou me emancipar. Volto para o Rio de Janeiro de qualquer jeito. — Giovanna quando queria era chata demais, então, usei a arma infalível para deixá-la distraída.
— Olha. Alguém deu um deslike na tua foto. — falei.
— Como assim? Onde? — pegando o celular e olhando as redes sociais.
— Perdi de vista. — menti olhando para a titia e piscando.
— Valeu. — murmurou a tia Olívia.
Nos perdemos. As ruas do Parque 10, o bairro onde moraríamos, são estreitas e vazias. Não havia ninguém para pedir informação. Depois de quase 30 minutos, consegui falar com o corretor e ele nos mandou a localização do imóvel.
Finalmente, após um bom tempo dentro do carro, chegamos na nossa casa. Era para ser o lugar dos nossos sonhos, entretanto, havia algo errado. Ficamos parados na entrada durante dois minutos.
— Tia. A senhora tem certeza? — questionei olhando em volta.
— Ela. Eu. Bem... — titia estava sem palavras, algo difícil de acontecer.
— Não. - soltou a 'drama queen' da família entrando no carro. — Eu só saio desse carro se for para ir ao Aeroporto. Que humilhação.
Olhei para a foto da casa e para a casa. A expressão expectativa x realidade nunca fez tanto sentido. Acho que o papai confiou demais nas pessoas que alugavam o imóvel. A entrada parecia uma floresta, cheia de mato, paredes velhas e descascadas, janelas enferrujadas e cocô de cachorro na entrada. O lugar estava uma bagunça.
— Qual é, gente. Não tá tão ruim assim... — soltou titia, fingindo um otimismo.
Amava a minha tia, eu realmente a amava, mas a positividade dela me dava nos nervos. Ela sempre conseguiu achar algo de positivo em tudo e em todos. Para uma advogada, Tia Olívia deveria ser mais esperta. Só que essa não foi a pior parte. Do nada, eu disse do nada, caiu um temporal. Ficamos presos no carro por duas horas.
Estava triste pela situação da casa. A tia ligou para a imobiliária para verificar a situação dos outros imóveis da família. Perdido nos pensamentos, quase não vi o meu Deus grego. Ele passou na frente de casa com alguns amigos. Eles pareciam felizes juntos, mas como um zero à esquerda chegaria perto deles? Não viaja, Yuri. Você nunca terá amigos.
Dormimos em um hotel perto do Teatro Amazonas. Achei aquele lugar lindo. No outro dia, a minha tia levantou cedo e foi às compras. Eu fiquei no hotel e levei meus irmãos para tomarem café.
O Amazonas é um lugar com uma gastronomia impressionante. Comi um sanduíche com queijo, banana frita e outras coisas. No quesito alimentação, eu estava em casa. Claro que não poderia exagerar, afinal, já estava fora do meu peso ideal, porém, aquilo realmente chamou a atenção. Comi quatro.
Titia me ligou e avisou que os entregadores já estavam indo para casa. Tivemos apenas 10 minutos para preparar nossas coisas. Lá fomos nós, uma adulta, um adolescente e duas crianças. A missão? Reformar uma casa gigante. Já que o pessoal do seguro demoraria a nos atender.
Tintas, pincéis e material de limpeza. Confesso que foi engraçado no início, a Giovanna e o Richard, até que ajudaram, mas o sol de Manaus, meu Deus. Você precisa vir aqui para saber como ele é forte. Graças a Deus, que assim como a temperatura é quente, ao mesmo tempo, é instável.
Do nada começou a chover, nem preciso dizer que acabou com parte do nosso trabalho, entretanto, aproveitamos a chuva para brincar. Na caixa de som tocava a música Don't Look Back In Anger, do Oasis. Essa canção é uma espécie de mantra.
Apesar das nossas diferenças, que eram gritantes, a gente funcionava bem como uma família. Eu sabia que podia contar com eles para qualquer coisa. Até Giovanna que é toda fresca brincou conosco na chuva. Depois de um tempo, alguns móveis chegaram. Era uma TV, colchões e quatro splitters, ou seja, nossa mobília até o momento.
***
Resolvi explorar o bairro. Mentira, a minha tia me obrigou a comprar lanche para nós. Andar em um lugar desconhecido é desesperador, uma rua errada e eu nunca mais poderia voltar para casa. Dramático? Um pouco.
De repente, recebi uma pancada no rosto e minha vista ficou embaçada. Me estabanei no chão como uma mortadela gigante. O que será que me atingiu? Pensei comigo mesmo, porém, continuava deitado no asfalto quente.
A visão turva dificultou a captação de informação. Consegui ver uma mão estendida na minha direção e pego nela. Fechei os olhos por um tempo, quando os abri, por um segundo, fiquei sem fala. É o gatinho que vi anteriormente. Caramba, de perto ele conseguia ser ainda mais gato. Ele começou a falar comigo, porém, preferi prestar atenção em outros detalhes.
— Você está bem? — ele perguntou, ainda segurando minha mão.
— Sim. — respondi depois de um tempo e olhando para a minha mão que ele segurava.
— Que bom. — ele disse soltando minha mão, o que me deixou triste.
— Moço, desculpa. — pediu uma garota de cabelos longos, quase uma rapunzel amazônica.
O pedido de desculpas se transformou em uma confusão. Ainda estava sob o efeito anestesiador da bola no meu rosto. Agradeci pela preocupação e eles começaram a discutir entre si. Pelo pouco que entendi, a culpa foi da moça de cabelos longos que se chamava, Letícia.
— Eu disse para você não chutar forte, Letícia. — disse um rapaz fortinho, um típico boy de academia.
— Já pedi desculpa, Brutus.
— Gente. Tá tudo bem. — tentei acabar com a discussão, pois minha cabeça estava doendo.
— Tem certeza? Posso te acompanhar. — falou o meu crush, que ainda não sabia o nome, mas estava louco para descobrir.
Se fosse em outro universo e eu tivesse coragem para fazer qualquer coisa, pularia em cima dele e o lamberia como se fosse um picolé. Além de gato, ele era gentil, porque se preocupou comigo, um completo estranho. Com certeza, já tinha uma namorada. Que horror. Para de olhar para ele. Yuri. Para. Fala alguma coisa. Fala que está bem.
— Estou ótimo! — quase gritei e me afastei dele.
Do nada, um deles fez uma piada gordofóbica. Eita, que uma bola bateu na outra, disparou o rapaz. Ele riu da própria piada ruim e foi repreendido pelos outros. Eu conhecia esse tipo de gente, sempre faz uma brincadeira para atingir a aparência física dos outros.
— Cala boca, Vando. Que cara sem noção. — rebateu Letícia.
— Babaca. — disse o meu príncipe encantado.
— Falei brincando. Eu hein. Desculpa aí, irmão. — Vando bateu no meu ombro e se distanciou do grupo.
— Relaxa. — falei.
Que dia, cara. Além de tudo, ainda teve o comentário do tal de Vando. Tá, não foi nada comparado a outras coisas que já ouvi. Rolha de poço, baleia, Bolha Assassina, Gordão, Majin Boo, são apelidos comuns para mim.
Graças a Deus, que eu podia contar com uma coisa: comida. Nossa, a comida me fazia esquecer de todos os problemas.
Continuei o meu caminho e achei uma pequena padaria chamada Doce Horizonte. Tão fofinha. Acho que o tema do estabelecimento era Mundo Encantado, porque tudo remete aos contos de fadas. Entrei e vi uma infinidade de delícias. Todas esperando por mim.
A dona do local logo se apresentou. Se chamava Helena, uma mulher gordinha e toda delicada. Parecia escolher cada palavra com todo cuidado. Falei que era novo no bairro e ainda estava conhecendo os empreendimentos.
— E o que você vai querer? — ela perguntou.
— Sete pães, três salgados de queijo, três sonhos e quatro fatias de pizza. — pedi, enquanto olhava as opções da vitrine.
— Nossa. Família grande, né?
— Sim. Demais. — dei um riso amarelo.
Cheguei em casa, entreguei os pães para a minha tia e comi o resto. Sim. Podem julgar, não ligo, porém, a comida me fazia esquecer os problemas. É como se fosse uma droga, uma droga deliciosa. Espero não encontrar a turma da rua por um bom tempo. Acho que eu virei motivo de chacota para todos.
A semana seguinte foi de adaptação, entretanto, era impossível enfrentar aquele calor todo. A minha tia começou a trabalhar, então, a responsabilidade de cuidar de tudo ficou nas minhas costas. Os móveis novos chegaram também, a parte de montar foi a mais difícil, aqueles manuais de instrução são horríveis.
— A gente não deveria montar isso lá dentro? Estou derretendo. — perguntou Giovanna fingindo passar mal.
— A furadeira deixa tudo sujo. E para de chorar que estamos acabando. — a repreendi ao perceber o teatrinho.
— Giovanna. Posso colocar fogo no teu cabelo? - questionou Richard segurando um maçarico.
— Mete esse negócio no teu ...
— Ei! - falei alto para não deixar minha irmã terminar a frase e peguei o maçarico — Já conversamos sobre você segurar esse tipo de material. — olhei para Giovanna de forma séria. — Cuidado com essa boca.
Meus irmãos tinham personalidades distintas, eu era o mais velho e precisava dar o exemplo para eles. Nem sempre foi fácil, na verdade, nunca foi fácil. A tia Olívia tentava, entretanto, não era uma boa dona de casa, sem julgamentos. Ela não dizia nada, mas, muitas vezes, sabia como era estressante para ela. Cuidar de três crianças e ainda ter que trabalhar. Por isso, eu mesmo resolvia os problemas deles.
Não conseguia montar a última parte do móvel. A Giovanna já estava estressada, e claro, me estressando. Ouvi uma voz familiar, virei e encontrei o meu crush parado na mureta de casa. Ele tem um sorriso espetacular e não pude parar de olhar.
— Oi. — Giovanna cumprimentou o rapaz toda animada. — Quem é você?
— Sou José Eduardo, mas pode me chamar de Zedu. — ele respondeu com um sorriso que poderia iluminar o mundo.
Zedu. Então, esse era o nome do meu príncipe encantado manauara? Bom saber. Ele pulou a mureta com uma facilidade de impressionar. Expliquei o que estava fazendo e o Zedu se ofereceu para ajudar. Quem adorou foi a Giovanna que, em movimento rápido, entregou todas as ferramentas na mão dele.
— Por favor, monte a prateleira, ela vai ficar na sala, mas não faz muito barulho. — pediu Giovanna entrando em casa.
— Não liga para ela. Meio biruta a coitadinha. — falei tentando diminuir os estragos do furacão Giovanna. — E você. — falei olhando para o Richard. — Você entra e vai tomar um banho.
— Posso levar o maçarico para o banheiro? — ele perguntou como se fosse a coisa mais normal do mundo.
— Só sobre o meu cadáver. Vai... agora! — ordenei.
Fiquei sozinho com o Zedu. Tentava buscar na minha mente opções de conversas casuais para se ter com o crush, mas não havia nada. Por sorte, ele era um cara bem descontraído e não demorou para falarmos sobre todos os assuntos possíveis.
Infelizmente, como toda felicidade na minha vida dura pouco, a Giovanna saiu desesperada e avisou que o banheiro estava pegando fogo. Zedu e eu, entramos na casa e vimos uma fumaça saindo pelas frestas da porta. Em um ato rápido, Zedu chutou e derrubou a porta. No meio da fumaça encontrei Richard desmaiado. O peguei no colo, enquanto Zedu usava a ducha higiênica para extinguir o fogo.
O meu irmão teve a brilhante ideia de colocar fogo na cortina do banheiro com o maçarico. Precisei ligar para os bombeiros e solicitar uma ambulância. Graças a Deus nada demais aconteceu, o Richard apenas inalou muita fumaça e o banheiro não ficou tão queimado.
Minha tia chegou e ficou uma fera. O Zedu até tentou me ajudar, mas ouviu um belo sermão junto com a gente. O Zedu, Giovanna, Richard e eu, sentados no sofá escutando tudo o que a minha tia tinha para falar. Segundo mico próximo ao Zedu. Alguém tá contando?
— Deixo vocês sozinhos por cinco horas. E vocês me colocam fogo na casa?! — percebo o nervosismo na voz da titia, mas aquilo me deixou chateado.
— Tia, foi muito rápido e...
— Você era o responsável, Yuri. E se tivesse acontecido algo? — ela questiona me cortando.
— Não aconteceu tá! - gritei me levantando. — Eu não deixei nada acontecer! Se a gente estivesse no Rio de Janeiro, nada disso teria acontecido. — encarnei o lado dramático da Giovanna e sai da sala.
— Chocada. — cochichou Giovanna para Zedu.
— Ele tá bravo. — meu irmão confirmou o óbvio.
— Bem. — titia disse se recompondo e indo até Zedu. — Meu jovem, obrigado pela sua ajuda, mas você pode ir.
— A senhora pode falar para o Yuri que mandei um abraço? — ele pediu, levantando do sofá e saindo de casa.
— Claro.
Levei uma bronca desnecessária. Sorte que o Richard ficou duas semanas de castigo. No meu quarto, descontei toda a frustração em cima da comida. A tia Olívia não tinha o direito de brigar comigo na frente dos outros, principalmente, do Zedu. Naquela casa, eu sempre fui tão responsável quanto ela. Queria gritar, chorar e ir embora. A comida era a única amiga.
Em casa, a gente tinha uma regra clara: não podíamos ficar muito tempo com raiva uns dos outros. Naquela noite, a Tia Olívia bateu à porta do meu quarto. Tive que esconder os pacotes dos doces que estava comendo. Após o susto, me recompus e deixei ela entrar.
— Desculpa amor. Mas imagina que você está no trabalho e recebe uma ligação dos bombeiros falando sobre um incêndio na sua casa. — ela disse me abraçando.
— Tudo bem, tia. — falei, mesmo sabendo que nada estava bem.
— Não, não está. Eu sei como você é cuidadoso com seus irmão, principalmente, com o Richard. — ela disse fazendo carinho na minha cabeça.
— Eu sei, tia. Eu cuido. Foi um minuto e... — por algum motivo, o Yuri sentimental tomou conta de mim e lágrimas escorreram pelo meu rosto.
— Ei. Nada demais aconteceu. — titia tentou amenizar a situação com um abraço carinhoso.
Não muito longe dali, Zedu se encontrou com seus amigos. Eles se reuniam em um lanche, onde conversavam e matavam o tempo. Quatro pessoas faziam parte do grupo:
Zedu: Ele era a cabeça do grupo. Sempre bolava ideias para a diversão dos amigos. Ele gostava de música, futebol e judô;
Bruno: Melhor amigo de Zedu, conhecido também como Brutos, devido ao seu porte físico. Não era muito inteligente, mas uma pessoa de bom coração.
Letícia: A bela do grupo, porém, nem ouse dizer isso para ela. Ela é bonita, ótima em esportes e uma verdadeira moleca;
Ramona: A zen do grupo. Sempre acompanhava seus amigos, mas não se arriscava em praticar esportes radicais.
***
Parece que o incêndio na minha casa se tornou notícia no bairro. Os amigos de Zedu sabiam de todos os detalhes. Ele ficou reflexivo por tudo o que aconteceu e se perdeu nos pensamentos.
— Zedu! — falou Brutos estralando os dedos na direção de Zedu. — O cara tá no mundo da lua hoje. Geralmente, esse é o papel da Ramona.
— Cala a boca. Idiota. — respondeu Ramona, que mostrou o dedo do meio para o amigo.
— Oi. O que foi? — perguntou Zedu.
— Estamos comentando da casa que pegou fogo. — informou Letícia, roubando uma batata frita de Ramona.
— Foi um incêndio pequeno no banheiro. Nada demais. — explicou Zedu de forma casual, surpreendendo os amigos.
— Você estava lá? — perguntaram os três em coro. O Zedu ficou envergonhado, mas contou tudo o que houve.
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